Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Memórias contemporâneas

O livro Memória da imprensa contemporânea da Bahia, organizado pelo jornalista e professor Sérgio Mattos, reúne 23 depoimentos de profissionais do século 20, muitos dos quais ainda atuando em Salvador. A obra foi lançada no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), em 15 julho, com o selo da Coleção Cipriano Barata, iniciada em 2005. O prefácio é da presidente do IGHB, professora Consuelo Ponde de Sena, e a impressão do livro foi patrocinada pela superintendência do Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas da Bahia (Sebrae-BA).

Memória da imprensa contemporânea da Bahia é o resultado das entrevistas feitas em 2002 e 2003 por alunos do professor Sérgio Mattos quando ele lecionou no curso de Jornalismo da Unibahia. Dos 23 entrevistados, cinco participaram da etapa inicial da Tribuna da Bahia e seus depoimentos contribuem para a reconstituição da história desta empresa jornalística criada, em 1969, sob a orientação do jornalista Quintino de Carvalho. Trata-se, portanto, de obra oportuna, que é levada ao público às vésperas das comemorações dos 40 anos deste jornal. Um dos cinco depoentes é o próprio organizador de Memória da imprensa contemporânea da Bahia.

O livro inclui a entrevista inédita que o ex-governador da Bahia e ex-presidente do Senado Federal, Antonio Carlos Magalhães, deu, em 14 de novembro de 2002, à então estudante de jornalismo Cinthya Brandão. É o depoimento mais amplo do ex-jornalista do Estado da Bahia e do Diário de Notícias, jornais dos Diários Associados, sobre sua trajetória de repórter e redator nas décadas de 1940 e 1950. Além de Antonio Carlos Magalhães, é o jornalista José Olympio da Rocha quem já não está entre nós.

O organizador

O jornalista Sérgio Mattos é doutor em Comunicação pela Universidade do Texas (campus de Austin) e portador do Prêmio Luiz Beltrão de Maturidade Acadêmica, com que foi distinguido pela Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom), em 2000. É reconhecido no mundo acadêmico como o historiador da televisão brasileira. Ocupa, desde o ano passado, a coordenação dos cursos de jornalismo das Faculdades da Cidade e da FTC, período em que também tem prestado a sua colaboração como secretário-geral do centenário Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.

O organizador de Memória da imprensa contemporânea da Bahia ordenou os depoimentos nesta seqüência alfabética: Agostinho Muniz, Álvaro Henrique, Antonio Carlos Magalhães, Carlos Navarro, Emiliano José, Fernando Rocha, Fernando Vita, Florisvaldo Mattos, Germano Machado, Ivan Pedro, João Falcão, José Olimpio da Rocha, José Valverde, Manoel Canário, Nelson Varón Cadena, Pancho Gomes, Paolo Marconi, Perfelino Neto, Raimundo Varela, Reynivaldo Brito, Samuel Celestino, Sérgio Mattos e Tasso Franco.

No prefácio, a presidente do IGHB, professora Consuelo Ponde de Sena, vaticina: ‘Este trabalho representa o começo de um inventário sistemático, que deverá ter seguimento, a fim de que se preserve a história contemporânea da imprensa baiana, relatada por cada jornalista, conforme escreve Sérgio Mattos’. Na apresentação, o organizador do livro firma o seguinte compromisso: ‘Com a publicação deste primeiro livro, inicia-se a construção de um inventário da história contemporânea da imprensa da Bahia, contada a partir do depoimento de jornalistas. […] Ao mesmo tempo, o projeto enriquece a participação da Bahia na recuperação da memória histórica da imprensa brasileira que completa o segundo centenário agora em 2008’.

Em 2011, o bicentenário

O texto que a jornalista Matilde Schnitman assina a orelha [ver o texto abaixo] adverte o leitor de que o autor de Memória da imprensa contemporânea da Bahia almeja que as entrevistas subsidiem pesquisas e depoimentos que, publicados, possam enriquecer a programação festiva dos 200 anos da imprensa na Bahia em 2011. Neste instante, pelo menos três instituições baianas estão encaminhando providências para a comemoração do 14 de maio de 2011: a Associação Bahiana de Imprensa (ABI), a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.

As providências, em verdade, poderiam ter sido tomadas desde maio de 2001, ocasião em que pesquisadores da história da imprensa baiana realizaram, na ABI, uma reunião, de que participou o presidente em exercício, José Jorge Randan, quando se discutiu o projeto de criação do Núcleo de Estudos dos Impressos da Bahia (Nehib) em que figuram várias propostas alusivas ao bicentenário, uma das quais a Coleção Cipriano Barata, que foi iniciada quatro anos depois, em 2005. Outras propostas referem-se aos levantamentos bibliográfico e iconográfico relativos à história da imprensa da Bahia; à elaboração de perfis de jornalistas e de empresas de comunicação baianas; à criação de site e a montagem de exposição sobre os 200 anos da instalação da imprensa no estado.

A Coleção Cipriano Barata, de natureza interinstitucional, foi iniciada em 2005 com o auxílio da Assembléia Legislativa do Estado da Bahia. Em parceria com a Academia de Letras da Bahia, o Legislativo patrocinou a primeira edição de Apontamentos para a história da imprensa na Bahia, coletânea de que participam, dentre outros, os ex-governadores Luiz Viana Filho e Octavio Magabeira, e A primeira gazeta da Bahia: Idade d’Ouro do Brazil, da professora doutora Maria Beatriz Nizza da Silva. Desta obra, a Editora da Universidade Federal da Bahia – Edufba – foi, também, co-editora.

Em 2005, comemorando seus 90 anos, a Empresa Gráfica da Bahia (Egba) patrocinou a publicação de Nome para compor em caixa alta: Arthur Arezio da Fonseca, livro em que foi transformada a tese de doutoramento de Luis Guilherme Pontes Tavares. Em 2007, foi publicado Anais da Imprensa da Bahia, de Alfredo de Carvalho e João Nepomuceno Torres, numa co-edição do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia com a Universidade Católica de Salvador. No corrente ano, a Academia de Letras da Bahia, com o apoio da Assessoria Geral de Comunicação (Agecom) do governo do estado da Bahia e da Egba, publicou a segunda edição de Apontamentos para a história da imprensa na Bahia, livro que foi lançado em 13 de maio passado, no IGHB, de modo a marcar a passagem dos 200 anos da instalação da imprensa no Brasil.

O 14 de maio

O português Manoel Antonio da Silva Serva chegou a Salvador por volta de 1797 e aqui se instalou como comerciante. Não há uma biografia mais consistente sobre este personagem que, em 13 de maio – data do aniversário do príncipe regente dom João – de 1811, inaugurou na capital a primeira tipografia instalada em território baiano. Um dos primeiros impressos foi o prospecto que anunciou para o dia seguinte – 14 de maio – o lançamento do Idade d’Ouro do Brazil, o primeiro jornal impresso na Bahia. Idade d’Ouro circulou até 1823, ano da confirmação, na Bahia, da independência do Brasil, daí porque não coube mais ao periódico manter a defesa da manutenção dos laços coloniais com Portugal.

O que se sabe sobre Manoel Antonio da Silva Serva é o que está escrito nos livros de Renato Berbert de Castro, Cybele e Marcelo de Ipanema e Maria Beatriz Nizza da Silva. Estes autores ajudam a compor o personagem. Silva Serva nasceu no norte de Portugal, era alto e gordo, cultivava barba grande e era um extraordinário empreendedor. Com ele nasce a indústria gráfico-editorial baiana. Ele fabricou, com o propósito de substituir importações, em Salvador, prelos, tipos móveis, preparou mão-de-obra e até obteve recursos para instalar uma fábrica de papel, de que não há, por enquanto, documentação a respeito. A audácia de Silva Serva o levou quatro vezes ao Rio de Janeiro para vender serviços gráficos, livros impressos na sua gráfica e assinaturas do Idade d’Ouro do Brazil. Da última viagem, em 1819, ele não retornou. Morreu e foi enterrado no Rio, então sede da Corte.

Reverenciar Silva Serva em 2011, nos 200 anos de sua tipografia e do Idade d’Ouro do Brazil é indispensável e neste sentido devem caminhar as instituições que representam a indústria, o comércio, a educação e, sobretudo, a comunicação da Bahia. Em 1911, quando se comemorou o primeiro centenário da imprensa baiana, houve festa no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, ocasião em que foi lançada a primeira edição de Anais da imprensa da Bahia. A Associação Tipográfica Bahiana, na ocasião, ofertou ao IGHB álbum com a assinatura de todos os profissionais do ramo por ela representados. Os recursos de então eram bem mais precários, mas a Bahia não deixou o 14 de maio passar em branco em 1911. Assim, certamente, voltará a acontecer em 14 de maio de 2011.

O que há no livro

Os 23 personagens do livro Memória da imprensa contemporânea da Bahia foram entrevistados em 2002-2003 por duplas formadas pelos estudantes Andréa Mazza, Cinthya Brandão, Daniel Chalegre, Denise Correia, Eva Campos, Fernanda Carla Chagas da Silva, José Otávio Badaró Santos, Juliana Wândega, Leila Isandra, Lívia Cabral, Maíra Fixina do Carmo, Marcel Lima, Mércia Ribeiro, Maria Luiza de Araújo Souza, Marina Matos, Marluce Guimarães, Mônica França, Muriel Teixeira, Patrícia Maia, Patrícia Martins, Renata Hirsch, Rita Rocha, Valeria Ibalo Gomes, Vanessa de Assis e Wilma Nascimento.

O radialista Raimundo Varela, por exemplo, que foi entrevistado no primeiro semestre de 2003, na primeira onda de sua candidatura à prefeitura de Salvador, informou que ‘se tivesse que escolher entre bancar uma candidatura e continuar fazendo o programa, deixaria que o povo decidisse, perguntaria ao povo o que eles acham. E, posso garantir, se eu fosse prefeito muita coisa nessa cidade iria mudar. A primeira coisa que eu iria fazer era acabar com o ‘rapa’. Depois promoveria um programa de cada semana estar em um bairro da cidade, resolvendo todos os problemas daquele bairro e, assim iria resolver primeiro os problemas mais graves da população. O povo precisa de moradia digna, saneamento básico, transporte público e emprego. Essas seriam as minhas prioridades’.

Outro exemplo é a análise que o jornalista José Valverde fez da composição política do governo de Lula: ‘Nunca foi realizada uma análise, por exemplo, do vice-presidente de Lula, pelo fato de ele ser o maior empresário de Minas Gerais. Por que a chapa do PT é uma aliança entre a burguesia paulista e mineira e o PT? As classes empresariais se sentiram traídas por Fernando Henrique Cardoso. Por quê? Pelo processo de desestatização da economia, pela venda das empresas estatais. O governo não deu moleza para os empresários brasileiros comprarem essas empresas. Comprava quem tinha dinheiro. Quem tinha dinheiro era o Fundo de Pensão e Fundo Mútuo, ou seja, os fundos dos funcionários do Banco do Brasil e da Petrobrás. Os grupos paulistas não tinham dinheiro. Achavam que o BNDES iria emprestar dinheiro para eles comprarem estatais, mas o BNDES não emprestou. Esse é um dos fatos que induziram a ruptura entre o governo FHC e as classes empresariais paulistas representadas pela FIESP. […] José de Alencar, vice-presidente, é um dos grandes empresários do Brasil. Então, eu nunca vi uma análise de um jornalista político do país sobre esse encontro de interesses do PT, buscando o poder, e do empresariado paulista’.

Por fim, um flagrante do confronto da imprensa baiana com a censura da ditadura militar de 1964-1985, nesta lembrança do ex-secretário de redação de A Tarde, jornalista Fernando Rocha:

‘Uma vez, um militar se aproximou e disse:

– Posso falar com o senhor?

– Pode, diga.

O militar pegou o caderno de Classificados e perguntou:

– Aqui sai notícia?

– Eu não sei. Não costumo ler esse caderno.

– Ah, então eu vou ler.

– Tá bom, leia, mas o jornal tem que sair cedo, viu?

No dia seguinte o tal militar retornou dizendo que não leria mais Classificados:

– Eu queria pedir um favor ao senhor.

– O que você tiver de falar tem que falar rápido; eu não estou pra conversa. Você sabe que eu sou contra a censura?

– Eu queria que o senhor me fizesse um favor.

– E o que é?

– Nessa matéria aqui. Onde estão as entrelinhas?

Imagino que depois de levar o caderno Classificados tomou um esporro e alguém mandou ele ir atrás das entrelinhas. Agora vê se pode?’

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Memória da imprensa

Matilde Schnitman (*)

Dois aspectos merecem destaque nesse primeiro título do Projeto Memória da Imprensa Contemporânea da Bahia, organizado por Sérgio Mattos. O fato de ser uma atividade acadêmica de futuros jornalistas e o ineditismo de abordar a história da imprensa na Bahia tomando como fonte o trabalhador da notícia, o ‘cidadão-jornalista’, observador privilegiado dos fatos e responsável por levar a público fatos transformados em notícia.

Instilar nos jovens jornalistas o gosto da pesquisa, especialmente da pesquisa histórica, é indubitavelmente um gesto do pesquisador incansável, do jornalista atento à sua contemporaneidade. Gesto de um professor que faz a importante e necessária ponte entre a pesquisa acadêmica, que contribui para a análise crítica e teórica da atividade jornalística, e a pesquisa que qualifica a fonte e revela o contexto do fato antes da divulgação da notícia. De que tanto carece o jornalismo atual no Brasil e no mundo.

A contribuição do trabalho organizado por Sérgio Mattos se amplia se levarmos em consideração a dificuldade de definir um entre os muitos e múltiplos aspectos que envolvem o registro da história da imprensa, inserida que está na sociedade da qual é motor e é reflexo. Puxar uma linha entre as muitas linhas que compõem esse intrincado novelo de relações imprensa e sociedade é um ato que só poderia ser perpetrado por um observador arguto, um estudioso. Por um jornalista atuante e atento ao seu tempo, o que assinala a atualidade e a importância do Projeto Memória da Imprensa Contemporânea da Bahia.

Ao registrar a história da imprensa a partir do depoimento de jornalistas, o Projeto coloca trabalhador da notícia numa história geralmente contada a partir do meio e/ou dos proprietários dos meios. Não bastasse, Memória da Imprensa Contemporânea da Bahia é oportuno por ser mais uma contribuição da Bahia para as comemorações do bicentenário da imprensa ano Brasil; por alavancar as contribuições para o bicentenário da imprensa na Bahia, em 2011. E mais.

Em meio a teia de aspectos abordada na perspectiva dessas comemorações, é importante repensar o papel do jornalista para definir mecanismos que garantam o exercício consciente e responsável dos profissionais de comunicação. Entre eles, a ‘cláusula de consciência’.

(*) Jornalista e professora

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Jornalista, professor, produtor editorial e doutor em História pela USP