Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Menotti e a São Paulo dos anos 1920

 

I

Walter Benjamin (1892-1940) sempre considerou o cronista superior ao historiador clássico em sua capacidade de reter o tempo. Como diz o pensador alemão em Magia e técnica, arte e política (São Paulo: Brasiliense, 1985, p.223), numa de suas famosas teses ‘Sobre o conceito de história’, seu último escrito, o cronista narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, levando em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história.

Se, para Benjamin, na acepção histórica o cronista é o narrador da História, não se pode dizer que contemporaneamente tenha perdido essa condição, pois ainda hoje sua produção constitui um reflexo da rápida transformação e da fugacidade da vida moderna. Aliás, até o início da era cristã, fazer crônica era fazer história, um registro de acontecimentos ordenados em seqüência cronológica, como se lê em Massaud Moisés (A Criação Literária. Prosa II, São Paulo: Cultrix, 19ª ed., 2005, p.101).

Por isso, Ana Claudia Veiga de Castro, arquiteta e urbanista formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), mestre pela mesma instituição e professora de História da Cidade na Escola da Cidade, de São Paulo-SP, embora não tenha citado Benjamin nas referências bibliográficas de seu trabalho, andou bem em exumar as crônicas que Menotti del Picchia (1892-1988) publicou no Correio Paulistano na década de 1920 para escrever a sua tese de mestrado que acaba de virar livro: A São Paulo de Menotti del Picchia: Arquitetura, arte e cidade nas crônicas de um modernista (São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2008).

Embora ao final do século XIX e no decorrer do século XX já não tivesse a intenção de historiar, como em seus primórdios, a crônica, ainda que fugaz e transitória como o jornal e a revista que a publicam, constitui nas mãos do pesquisador um material de interesse para pensar a cidade, pois atua como uma forma de preservação do tempo e da memória, ‘um meio de representação temporal dos eventos passados, um registro da vida escoada’, como disse David Arrigucci Jr. em Enigma e comentário. Ensaios sobre literatura e experiência (São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p.51).

Dessa maneira, a partir das crônicas de Menotti del Picchia, Ana Claudia compõe um panorama dos diversos mundos de uma São Paulo que começa a se tornar metrópole, dentro de um trabalho multidisciplinar de pesquisa sobre o Modernismo e a modernização brasileira, que engloba arquitetura, jornalismo, arte, literatura e história. Ao mesmo tempo, ajuda a resgatar do limbo um autor pouco estudado e até mal visto pela pesquisa acadêmica, talvez porque não só esteve ligado à oligarquia cafeeira, derrubada do poder pelo golpe civil-militar de 1930 a que chamam de Revolução de 30, como ainda acabou por se vincular a um grupo fascista nos anos 1930-1940.

 

II

Como o livro se refere só de passagem a esse período, é preciso lembrar que, antes de ingressar no Correio Paulistano, em São Paulo, o jovem advogado Menotti del Picchia dirigiu a redação de A Tribuna, de Santos, de 1918 a 1919, época em que escreveu vários artigos defendendo a repressão policial às reivindicações dos trabalhadores da Companhia Docas e da Companhia City, empresa de capital canadense que movimentava o serviço de bondes na cidade. Essa repressão, aliás, era comandada pelo delegado regional Ibrahim Nobre (1890-1970), também poeta, que haveria de se destacar na história de São Paulo como um dos ícones da Revolução Constitucionalista de 1932, que exigiu do governo Vargas a devolução do estado de direito ao País.

Da mesma época, era o médico e poeta Martins Fontes (1884-1937) que, embora tivesse no plano político um comportamento revolucionário, de apoio às causas operárias, que contrariava os interesses de sua classe social, era na poesia um parnasiano, fiel até o fim à memória de seu amigo Olavo Bilac (1865-1918). Sua poesia seria desqualificada na Revista Klaxon (nº 8-9, 1922-1923) por Mario de Andrade (1893-1945), corifeu do movimento modernista, que considerou o seu livro Arlequinada ‘uma porção de alexandrinos fragílimos’. E talvez por isso condenada ao ostracismo.

Já Menotti del Picchia, colaborador de Klaxon e um dos mais aguerridos combatentes na fase pré-revolucionária modernista e nos anos subseqüentes a 1922, tem até hoje o seu nome ligado ao Modernismo, embora, tal como Martins Fontes, tenha uma obra nitidamente vinculada à belle époque, naquilo que prolonga o Simbolismo e suas mutações. Nada disso, é claro, desqualifica a obra de Menotti del Picchia, que teve a sua importância, mas que hoje afigura-se como extremamente datada.

 

III

Com o cuidado próprio dos bons pesquisadores, Ana Claudia percorreu cerca de 1700 crônicas que Menotti del Picchia escreveu quase diariamente de 18 de setembro de 1919 a 24 de outubro de 1930, assinadas com o pseudônimo Helios sob a rubrica ‘Crônica Social’, procurando encontrar aqui e ali imagens de um momento de aceleração histórica em que a ‘cidade moderna’ começava a aflorar, embora São Paulo seja hoje, com seu gigantismo e problemas sociais, um exemplo de tudo o que não deve ser uma cidade moderna. Mas isto é outra discussão.

Ana Claudia lembra que o Correio Paulistano, porta-voz oficial do Partido Republicano Paulista, a principal força política do período, que representava os interesses dos oligarcas do café, era lido por parcela expressiva da população letrada, dividindo a preferência com O Estado de S.Paulo, que sobrevive até hoje. E as crônicas de Menotti del Picchia refletiam a construção de uma imagem de cidade que se queria moderna, mas que se revela ‘muitas vezes ambígua e contraditória’.

Na primeira parte do livro, Ana Claudia fez uma breve biografia de Menotti del Picchia, percorrendo sua trajetória, desde o nascimento em São Paulo, filho de um italiano da região da Toscana que viera para o Brasil não para trabalhar na lavoura, como tantos italianos contemporâneos, mas para atuar nas cidades como artesão especializado em construções, uma espécie de arquiteto sem diploma, construtor e mestre-de-obras. Depois de participar da construção do Teatro Municipal de São Paulo, seu pai transfere-se para o interior do Estado em busca de oportunidades de trabalho, a uma época em que os barões do café não só construíam grandes residências como algumas cidades tratavam de erguer seus teatros municipais.

Alfabetizado, o pai de Menotti assinava revistas estrangeiras, o que, com certeza, deve ter despertado a veia intelectual do filho. Vivendo parte de sua infância em cidades do interior, Menotti volta a São Paulo para cursar Direito na famosa Faculdade do Largo de São Francisco, onde se formou em 1913. Um ano antes, casara-se com uma namorada de infância, filha de uma tradicional família de Itapira, cidade de uma região enriquecida com o auge do café. Formado, voltou a Itapira para cuidar da fazenda da família da mulher, mas, em 1918, termina a sua carreira como fazendeiro, ao perder a safra de café depois de ‘uma chuva de pedra’. É, então, que decide ganhar a vida atuando como advogado e jornalista. Primeiro, em Santos, dirigindo A Tribuna e, depois, em São Paulo.

Na segunda parte, a partir das crônicas publicadas no Correio Paulistano, a pesquisadora recupera personagens que se tornam usuários privilegiados dos novos equipamentos e dos novos meios de transporte da cidade juntamente com outros que parecem pertencer a um mundo anterior, o do século XIX, que na visão do cronista mostram-se condenados a desaparecer.

Já a terceira parte concentra a discussão da imagem da cidade de São Paulo através de sua materialidade e arquitetura. As crônicas escolhidas, segundo a estudiosa, ganham interesse porque resgatam uma discussão típica da época, em torno de uma ‘raça paulista’, do lugar de São Paulo e do lugar do imigrante. É dessa época, ressalte-se, a construção do mito do bandeirante por historiadores paulistas, que pouco tem a ver com os verdadeiros ‘aventureiros paulistas’ que emergem dos documentos do século XVIII, a partir até mesmo da indumentária que vestiam.

Resgata a autora que Menotti del Picchia discutia a necessidade de São Paulo ter edificações mais condizentes com o desenvolvimento contemporâneo e, comparando a cidade com a capital da República, dizia que lhe faltavam imponentes palácios para dar ao visitante a noção da grandeza do Estado.

Tudo isso foi resultado de um contexto em que São Paulo procurava assumir-se não só como o Estado-líder da Federação, mas também como a região fundadora da nação brasileira. Portanto, não bastava apenas construir a cidade nova apagando os vestígios do passado, mas era preciso reconstruir um passado do ponto de vista épico, reinventando-o inclusive. Foi o que fez Menotti del Picchia, assumindo como cronista papel semelhante ao dos historiadores paulistas da época.

 

IV

Como se depreende do livro de Ana Claudia, Menotti também se deixou influenciar pelas idéias do ucraniano Gregori Warchavchik (1896-1972), especialmente depois de visitar, em 1928, a casa que este mandara levantar na Rua Mello Alves, a que considerou ‘uma pequena maravilha’. Warchavchik defendia a beleza e a arquitetura de seu tempo como a beleza da máquina, da indústria e da objetividade, tendo conquistado a adesão de muitos jovens arquitetos para a nova concepção que se dizia modernista. Warchavchik dizia que não mais havia sentido em buscar no passado inspiração para a arquitetura do presente, como faziam então os tradicionalistas, mas sim pensar a nova arquitetura como um reflexo dos novos princípios e das necessidades do ‘espírito do tempo’, como observa a autora.

Com a chegada ao Brasil do arquiteto franco-suíço Le Corbusier (1887-1965) ao final década de 1920, a discussão sobre uma nova arquitetura ganha maior ênfase. E Warchavchik sai fortalecido em sua pregação. É a partir daí que surge a arquitetura modernista brasileira, de que Lucio Costa (1902-1908) e Oscar Niemayer (1907) seriam os maiores expoentes.

Mas a respeito de Warchavchik, chegado ao Brasil em 1923, ainda há muito a se descobrir e desmitificar, a partir de um depoimento que o arquiteto João Batista Artigas Vilanova (1915-1985) deu em 1983 à arquiteta Christina Bezerra de Mello Jucá, professora da Universidade de Brasília (UnB), considerando-o ‘moralmente meio suspeito’, pois não tinha ‘capacidade nenhuma para desenhar’ e que ‘sempre contratava alguém para fazer as coisas para ele, mas para fazer tudo’.

É provável que tenha sido um grande falastrão e não mereça tudo o que se lhe é atribuído na concepção da arquitetura moderna no Brasil – e que também tenha levado não só Menotti del Picchia como muitos outros intelectuais modernistas no bico. Mas isso só um novo trabalho de pesquisa deverá mostrar.

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Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003)