Em número totalmente dedicado ao Brasil no mês passado, a Wallpaper abriu espaço, entre alguns assuntos mais previsíveis como top models, Oscar Niemeyer e música popular, para uma chamada de capa que anunciava um boom de livros no Brasil. A reportagem referia-se não só às editoras, mas também às livrarias. Não há dúvida de que as coisas mudaram para melhor, como constatou a revista britânica. Nos últimos três anos, o número de livrarias no país cresceu 10%, segundo o Diagnóstico do Setor Livreiro, que a Associação Nacional de Livrarias (ANL) divulga na terça-feira, às vésperas dos dois principais eventos literários do ano no Brasil: a cultuada Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) e a superlativa 21ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo.
Nesse novo capítulo da história do livro nacional, o Valor promoveu uma enquete com um grupo de críticos e professores para identificar qual é a melhor editora do Brasil. A Companhia das Letras ficou em primeiro lugar (81%), e a Cosac Naify em segundo (76%). E, mesmo que em quantidade de votos menor, número significativo de outras editoras foi mencionado, numa evidência de que o mercado editorial brasileiro vive um bom momento em qualidade e diversidade. Os votantes e os responsáveis pela linha editorial das duas casas mais votadas concordam que o panorama é um dos melhores da história do livro no Brasil. Para o diretor editorial da Cosac Naify, Cassiano Elek Machado, a reportagem da Wallpaper foi um sinal inesperado dessa vitalidade.
‘Estamos vivendo um momento de esplendor’, afirma Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, empresa que teve faturamento de R$ 56 milhões no ano passado. ‘O mercado todo se profissionalizou e os governos vêm investindo em educação, o que para as editoras é melhor do que isenção fiscal.’ Augusto Massi, editor-presidente da Cosac Naify, vê na própria empresa, fundada há 13 anos, os reflexos ‘de um público mais formado e de um comércio de livros mais profissionalizado’. ‘De três ou quatro anos para cá, a editora amadureceu, mudou de patamar e de visibilidade’.
Destaques
A pesquisa promovida pelo Valor não teve a intenção de medir a eficiência empresarial, mas indicar as editoras que mais se destacam culturalmente. A votação se encaminhou naturalmente para a ênfase nas áreas artístico-literária e das ciências humanas e muitos dos votantes mencionaram a capacidade de interferir na vida cultural e de formar leitores como critérios para medir a qualidade de uma editora. Aos 21 especilistas consultados, foi pedido que fossem escolhidas as três melhores casas editoriais. Ficaram de fora as áreas mais especializadas, como as dos livros técnicos, os de autoajuda e os didáticos e paradidáticos, embora a grande movimentação nesses setores nos últimos anos, em que ocorreram grandes fusões e incorporações, certamente influi no quadro geral.
Muitos dos votantes atribuíram à Companhia das Letras, que completa 25 anos em 2011, o estabelecimento de um padrão de qualidade que se tornou referência no mercado editorial. Massi concorda e considera a Cosac uma beneficiária desse precedente. Alguns dos integrantes do júri compararam a Companhia à antiga José Olympio, a casa editorial brasileira mais importante do Brasil entre os anos 30 e 60, traçando uma linhagem das boas editoras brasileiras. Algumas das mais tradicionais ainda estão em forma. É o caso da Martins Fontes, que, para a professora Maria Lúcia Dal Farra, ‘é uma daquelas editoras sérias que seguram o tranco sem aparecer muito, apesar de sempre ativas’.
O próprio Schwarcz, ao criar a Companhia das Letras, vinha da experiência de trabalho na Editora Brasiliense, que marcou época entre o fim dos anos 70 e início dos 80 com uma linha de livros voltada para o público jovem. Schwarcz percebia a existência de um leitor em formação que a Brasiliense não tinha entre suas prioridades acompanhar e essa foi uma das percepções que o orientaram na nova editora. ‘Foi um pouco empírico’, diz ele sobre seu projeto inicial. ‘Eu acreditava que havia a possibilidade de uma editora mais radical, em termos de proposta de qualidade, com um misto do que já havia no mercado’ – isto é, a atualização gráfica de uma, a qualidade do catálogo de ciências humanas de outra, o modelo empresarial moderno de outra ainda.
A radicalidade veio da determinação em contrariar a regra amplamente aceita de que os títulos comerciais pagam os de prestígio. ‘A ideia era que a Companhia das Letras não precisaria de best sellers, mas também não se permitiria encalhes’, conta Schwarcz. Segundo ele, a editora foi pega de surpresa quando alguns dos primeiros lançamentos entraram nas listas dos mais vendidos. O exemplo típico é o de Rumo à Estação Finlândia, o relato da Revolução Russa escrito pelo crítico literário americano Edmund Wilson, livro que foi uma espécie de cartão de visita da Companhia ao entrar no mercado.
O clássico de Wilson marcou também uma das apostas iniciais de nicho da editora, a ‘não ficção narrativa’, tradição intelectual anglo-saxã pouco explorada num ambiente cultural mais caracterizado pela tradição europeia. ‘O projeto inicial era definido como o de uma editora literária de ficção e não ficção. Com o tempo ele se ampliou, se abrindo para a literatura jovem e infantil. A primeira área separada foi a dos policiais e hoje chega até comida e aventura.’ A editora se tornou mais comercial? ‘Não mudou, na minha opinião. Nós publicamos Thomas Bernhard [O Imitador De Vozes] . Mantemos a aposta em autores brasileiros. Há um ou outro livro no limite do comercialismo, mas mesmo Stieg Larsson [trilogia Millennium] é um autor de qualidade no gênero policial.’
Numa referência aos requisitos de qualidade de uma editora, um dos votantes, o professor Sergio de Sá, da Universidade de Brasília, citou o ‘cuidado no tratamento gráfico-editorial do produto, com uma identidade reconhecível à primeira folheada’. Nos projetos tanto da Companhia das Letras quanto da Cosac Naify esse aspecto fez parte da própria criação da identidade da empresa. ‘Pretendi ter uma marca, com a escolha da tipologia, do papel e até da entrelinha’, diz Schwarcz. ‘Dizem que Deus está nos detalhes. Nos livros isso é uma verdade absoluta.’ Na Cosac Naify, a marca existe, mas, paradoxalmente, sua característica principal é uma diversidade extremada.
Ousadia pura
A editora começou com a publicação, em 1997, de livros de artes visuais, algo incomum no Brasil, e mantém uma imagem diferenciada, para dizer o mínimo, entre as concorrentes. ‘As boas editoras cumprem a importante função de balancear o compreensível interesse comercial com ousadia, mas a Cosac parece ser só ousadia’, comentou um dos votantes. Massi concorda em parte. ‘O nosso luxo é a ideia’, afirma ele, relativizando a fama de que a editora produz livros caros, que seriam, portanto, vendidos a preços igualmente caros.
Um dos títulos mais vendidos da Cosac Naify, Bartleby, o Escrivão, de Herman Melville, tinha uma concepção arrojada e barata, usando revestimento impermeável de carburador para a capa. Ganhou um prêmio de design e na época de lançamento, 2005, saiu com preço abaixo de R$ 30,00. Prêmio de design, por sinal, é o que não falta no currículo da editora, que já vendeu ilustrações feitas para seus livros a casas europeias.
‘Nós introduzimos algo de novo no mercado, pensando para cada livro um conceito exclusivo’, diz Massi. Ele já percebe a influência desse projeto em outras editoras. ‘Todo mundo mudou suas capas, fazendo escolhas que antes não faziam’, observa. O esforço em estabelecer uma marca visual faz parte da intenção geral de ‘criar repertório’ e ‘formar um leitor especial’.
Para isso, a editora adotou o hábito de acompanhar os livros de autores ou artistas consagrados com prefácios, posfácios e quartas capas, encomendados a especialistas (muitas vezes inesperados, como o cientista social Paulo Sérgio Pinheiro para comentar Ressurreição, de Liev Tolstói, que trata, em parte, do sistema prisional), índices onomásticos e sugestões de leitura. Trabalha-se com frequência com uma certa noção de parentesco entre os títulos publicados que criam um universo de relações para o leitor – obras dos mesmos autores, como William Faulkner, para o leitor adulto e para a criança, artistas que têm a obra enfocada num livro e criam a capa de outro, além de livros de referência que sistematizam as áreas temáticas cobertas pela editora.
Tudo isso já se encontrava, de alguma forma, no início da editora, que foi um pouco problemático. Ela foi criada em bases marcadamente idealistas pelo editor Charles Cosac, colecionador e crítico de artes plásticas, com uma proposta de intervenção num setor incipiente no Brasil. Mas já havia outras iniciativas em áreas que até hoje dão sustentação à editora, como a coleção de cinema a cargo do crítico Ismail Xavier, a reedição de autores brasileiros importantes, como João Antônio, e mesmo um início de produção no campo da literatura infantil, que depois seria um dos pontos fortes do catálogo e responsável pelo seu maior sucesso comercial – os livros do personagem Capitão Cueca, que atingiram uma tiragem de 70 mil exemplares.
Chegou-se, e já faz algum tempo, a um nível em que a editora toma cuidado para não crescer mais, pretendendo se manter numa escala ‘média’ dentro do mercado. Segundo Massi, o risco seria perder o vagar necessário para a produção de um livro como o recém-lançado Maria, volume exaustivo sobre a obra da escultora brasileira Maria Martins, que demandou dois anos para ser feito. O projeto revê praticamente a obra integral da artista. Todas as obras disponíveis ao público foram fotografadas especialmente para o livro por Vicente de Mello, mesmo aquelas que já contavam com registros de boa qualidade, como as expostas no Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York. Apesar da sofisticação e do impacto desse tipo de iniciativa, Massi aponta a delicadeza que caracteriza um esforço quase artesanal: ‘É um trabalho miúdo que pode se desfazer rapidamente’.
Dificuldades no caminho
Quando foi contratado pela Cosac Naify, dois anos e meio depois da fundação, a editora se encontrava deficitária, cercada de rumores de que iria fechar que persistiram durante um bom tempo. O começo da recuperação se deu com a criação da coleção ‘Prosa do Mundo’, constituída de títulos de autores clássicos já passados para o domínio público, o que permitiu uma economia em direitos autorais, compensada por investimentos no tratamento propriamente editorial.
Assim, logo no lançamento da coleção, a editora conseguiu emplacar dois sucessos de venda com duas obras consideradas eruditas, O Diabo e Outras Histórias, de Tolstói, e Niels Lyhne, de Jens Peter Jacobsen, autor dinamarquês muito pouco conhecido. Com esses e outros bons resultados comerciais, foi possível manter a atividade ‘de ponta’ da editora, presente em publicações como ensaios clássicos na área de ciências humanas e nos já tradicionais livros de arte, que hoje abrangem praticamente todas as áreas criativas, da arquitetura à moda.
A Companhia teve um início melhor porque surgiu no clima de entusiasmo do curto período de vigência do Plano Cruzado, um intervalo nos tempos de inflação desenfreada. Com o confisco do Plano Collor, no início de 1990, ‘80% do dinheiro sumiu’, segundo Schwarcz. A primeira tentativa de contornar a situação comercialmente foi o lançamento de uma coleção de livros pequenos de análise conjuntural. Não deu certo. A editora estava com o primeiro volume da coleção História da Vida Privada pronto para rodar. ‘A gente não tinha como pagar a gráfica, mas a gráfica também não tinha serviço’, lembra-se Schwarcz. Foi assim que a penúria criou a oportunidade para um estouro editorial, que popularizou no Brasil a escola da história das mentalidades. Schwarcz considera esse um dos pontos altos da editora, ao lado das biografias (Chatô, Anjo Pornográfico etc). Ele espera um impacto semelhante dos lançamentos do selo Penguin Companhia, resultante da associação da editora com a Penguin Classics.
Num país imenso, com poucas livrarias e hábitos de leitura ainda sendo criados, a distribuição é um dos grandes problemas do mercado editorial, embora a Companhia das Letras e a Cosac Naify considerem as dificuldades em boa parte superadas. A Companhia partiu para o sistema de consignação total, que hoje é prática comum. Foi o jeito, na época de inflação pesada, de lidar com uma situação em que havia boas vendas, mas a editora não formava caixa e ainda tinha de arcar com as devoluções. A Cosac investe num contato de divulgação direto com as livrarias individualmente e com seus vendedores, aproveitando a fase de sofisticação do setor. ‘Fala-se muito em livro eletrônico, mas as livrarias ainda têm uma vida longa e sólida pela frente’, afirma Luiz Schwarcz.
Nem tudo é elogio para as vencedoras da enquete. Há quem considere a Companhia das Letras uma editora excessivamente paulista. ‘Talvez a presença física da sede da editora em São Paulo influa um pouco nas escolhas’, afirma Schwarcz. Alguns dos votantes também criticaram as duas editoras por não lançarem tantos autores brasileiros quanto seria desejável, comparando-as desfavoravelmente à editora Record nesse aspecto. Schwarcz responde: ‘A Companhia pode não ser a mais garimpeira de novos talentos, em parte porque não abandonamos nossos autores; somos bem exigentes e talvez seja um erro não investir em alguns talentos que ainda não estão prontos’. Também a Cosac se considera um pouco devedora na publicação de autores brasileiros, embora Massi também afirme a fidelidade da editora a seus autores.
As duas editoras adotam uma mesma estrutura que se distancia da antiga tradição centrada na figura de um único editor – marca, por exemplo, da respeitada Perspectiva, ‘casa de poucos recursos, não comercial e civilizadora’, nas palavras da professora Leda Tenório da Motta. A Companhia trabalha com o que Schwarcz chama de ‘máquina pesada’ de editores juniores e seniores que, entre outras coisas, responde por repetidas leituras e revisões, participação em todas as etapas de produção, acompanhamento do autor e conhecimento do público-alvo. A Cosac Naify, que tem um editor para cada área temática e semanalmente realiza uma ‘reunião de conceito’ com toda a equipe, está agora derrubando paredes de sua sede, em São Paulo, para intensificar a interação profissional.
Flip e Bienal
O período que se aproxima é de exposição, com a participação das editoras na Flip e na Bienal. Entre outras, a Companhia das Letras levará para o debate com o público o polêmico Salman Rushdie. A Cosac trará tanto para a Flip quanto para a Bienal o biógrafo americano de Clarice Lispector, Benjamin Moser. A editora também dará atenção especial à área infanto-juvenil na Bienal. Um dos lançamentos será a estreia das historinhas do Snoopy na Cosac, com comentário de Umberto Eco. ‘Até nosso Snoopy é cabeça’, brinca Cassiano.