Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Meu encontro com Raul Drewnick

Estava eu na Livraria Cultura, praticando descaradamente o vício impune, e abastecendo-me de inspiração para nele cair várias vezes ao longo do feriadão de Corpus Christi, quando entrevejo uma figura familiar. Um rosto simples, de amigo que não sabe que sou seu amigo. Vejo seus olhos pequenos e afáveis (olhos de quem gosta de ler), e um sorriso afável e imenso.

Desconfio de que seja o escritor e jornalista Raul Drewnick. Lembro-me de uma foto sua, na coluna que mantinha no Estado de S.Paulo. Adivinho o que estaria ele fazendo ali, na livraria, antro maldito…

No momento de pagar o preço da minha orgia, ele se coloca ao meu lado. É ele, agora não há mais dúvidas. É Raul Drewnick mesmo. O Raul (‘desvairadamente corintiano’, assim se define) que foi colunista da Veja, e publicou crônicas semanais no Estadão, entre 1986 e 1998 – crônicas que eu lia com gosto. Várias delas recortei e guardo até hoje.

Raul Drewnick!? Que bom conhecê-lo pessoalmente!

Ele não me reconhece (pois de fato não me conhece!), mas me acolhe com simpatia, samaritano das letras. Afinal, estamos juntos, praticando em público o mesmo pecado.

Sem a menor esperança de ser lembrado, embora animado pela acolhida, menciono que há cerca de 8 anos eu lhe enviei um exemplar do meu primeiro livro. E não é que os seus olhos brilham e ele se lembra de mim? De mim, não, do livro. E voltamos a ser, automaticamente, os amigos que jamais fomos, e que nunca deixaremos de ser.

Condenação comum

E o assunto só pode ser o assunto proibido: leitura, o vício impune. Além dos livros que está lendo, escondido do mundo, revela-me o autor que anda escrevendo. E eu, a ele, que estou escrevendo também. Irmanados na mesma alegre desdita, trocamos sorrisos de cumplicidade.

E, conversando, concordamos em como é lamentável haver pessoas tão puras, tão isentas do mal. Pessoas incapazes de gastar energias e dinheiro nessa perversidade que é ficar diante de páginas abertas. Pessoas, e entre elas jornalistas e escritores, que alegam ler pouco para não se deixarem influenciar!

Foram minutos apenas de uma conversa que parecia ser o recomeço de outra, nunca iniciada, e prenúncio de muitas outras, que jamais acontecerão.

Despedimo-nos sem nos prometermos impossíveis e-mails, impossíveis telefonemas.

Dispensamos a mentira bem-educada.

Basta-nos a certeza de que fomos abençoados pela mesma condenação.

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Doutor em Educação pela USP e escritor