“Ah, eu sou do tempo em que todos os telefones eram pretos e todas as geladeiras eram brancas.” (“O macuco tem ovos azuis”, 1982, Recado de Primavera, Record, 2ª ed., 1984.)
Quem me ensinou o talento imenso de Rubem Braga (1913-1990) foi Maurício Azêdo, no Centro do Rio, em algum momento do final dos anos 1960 ou início dos 70. Talvez eu ainda trabalhasse no Jornal do Brasil da Avenida Rio Branco. Ele, com certeza, na sucursal do Estado de S. Paulo, na Rua da Quitanda. Azêdo, que hoje preside a ABI, exaltou a qualidade do texto do cronista.
A sugestão frutificou mais de dez anos depois em leituras preciosas, das quais selecionei os trechos abaixo. Braga foi inteiramente um homem de jornal e revista (no final da vida, de televisão, na TV Globo). Foi repórter, correspondente de guerra na Itália. Se todos fossem iguais a ele, o jornalismo brasileiro seria a melhor academia de letras do mundo.
O cronista esbanja em tudo: ideias, vocabulário e ritmo – Braga pontua como poeta. Dica preciosa está em trecho sem título de Recado de Primavera no qual o cronista lembra conselho recebido de um amigo boêmio a quem perguntara se determinada frase estava certa – “Olhe, Rubem, faça como eu, não tope parada com a gramática: dê uma voltinha e diga a mesma coisa de outro jeito”.
A seleção feita aqui é absolutamente arbitrária e despretensiosa.
Rui jornalista
“‘De jornalista é que me não demitem’ – conforme disse Rui Barbosa na abertura de um artigo que, segundo parece, ele nunca escreveu, pois um dia citei esta frase e fui tão contraditado que hoje estou convencido de que eu mesmo a fiz, sonhando. Não será uma grande frase: mas que parece Rui, parece. Ela começava um artigo feroz escrito por Rui quando ele foi dispensado de não sei qual função pública. Começava assim e lept, lept! tome paulada no governo. Grande Rui! Mesmo inventado ele é bom.” (“Fumando espero aquela…”, 1982, Recado de Primavera.)
Aurélio
“Aprendi, ainda, que Anchieta era um mistagogo e não um arúspice, que os pelos de dentro do nariz são vibrissas, e que diuturno não é o contrário do noturno nem o mesmo que diário ou diurno, é o que dura ou vive muito. (…)
Latíbulo, jigajoga, julavento, gândara, drogomano, algeroz… tudo são palavras excelentes que alguns de meus leitores talvez não conheçam, e cujo sentido eu poderia lhes explicar, agora que li o livro; mas vejo que assim acabo roubando a freguesia de mestre Aurélio, que poderia revidar com zagalotes, ablegando-me de sua estima e bolçando-me contumélias pela minha alicantina de insipiente.” (“Mestre Aurélio entre as palavras”, 1966, 200 crônicas escolhidas, Record, 4ª ed., 1980.)
Vinícius
“Meu caro Vinicius de Moraes:
Escrevo-lhe aqui de Ipanema para lhe dar uma notícia grave: a Primavera chegou. Você partiu antes. É a primeira Primavera, de 1913 para cá, sem a sua participação. Seu nome virou placa de rua; e nessa rua, que tem seu nome na placa, vi ontem três garotas de Ipanema que usavam minissaias. Parece que a moda voltou nesta Primavera – acho que você aprovaria.
(…)
Agora vou ao Maracanã, reino de Ferreira Gullar, cuja poesia você tanto amava, e que fez 50 anos. O tempo vai passando, poeta. Chega a Primavera nesta Ipanema, toda cheia de sua música e de seus versos. Eu ainda vou ficando um pouco por aqui – a vigiar, em seu nome, as ondas, os tico-ticos e as moças em flor. Adeus.” (“Recado de Primavera”, 1980, do livro homônimo.)
Esquecimento
“Esquecemos da maneira mais torpe os mais fantásticos crepúsculos que nos emocionaram.” (“Sobre o amor, etc.”, 1948, 200 crônicas escolhidas, Record, 3ª ed., 1984.)
Beatriz
“Ah!, quando penso em outras, que me dilaceraram o peito em troca de ilusões; quando penso em vós, minhas antigas amadas, agora que conheço Beatriz, tenho pena do que fui e do que sois, e pela primeira vez sinto-me infiel à vossa lembrança. Pela tua risada, pela tua beleza, pela tua bondade, pela graça de teu corpo, pela tua amizade necessária e dada – entre todas te alcandoro e te abençoo, ó branca, ó alta, ó bela, inesquecível Beatriz!” (“A inesquecível Beatriz”, Recado de primavera.)
Quarto
“Conheci seu quarto de solteira; lembro a cama, o armário, a estante, a cômoda, a mesinha, o abajur e o grande espelho. O grande espelho onde às vezes, ainda mocinha, vinda do banho, você se olhava demoradamente – pensativamente – nua.” (“Quarto de moça”, 1959, 200 crônicas escolhidas.)
Joaquina
“À meia-noite sentimos que o apartamento estava mal apoitado no bairro e derivava suavemente na direção da lua. Às seis da manhã havia uma determinada tepidez no ar quase imóvel e duas cigarras começaram a cantar em estilo vertical. Às sete da manhã seis homens vieram entelhar o edifício vizinho, e um deles assobiava uma coisa triste. Então uma terceira cigarra acordou, chororocou e ergueu seu canto alto e grave como um pensamento. Sobre o mar.
Joaquina dormia inocente dentro de seus olhos azuis; e o pecado de sua carne era perdoado por uma luminescência mansa que se filtrava nas cortinas antigas. Havia um tom de opala. Adormeci.” (“Opala”, 1953, O verão e as mulheres, Record, 1986.)
Desamarrada
“Quando começou a discussão sobre pintura figurativa, abstrata e concreta, houve um momento em que seu marido classificou certo pintor com uma palavra forte e vulgar; ela ergueu os olhos para ele, com ar de censura; mas nesse olhar havia menos zanga do que tédio. Então senti que ela se preparava para o enganar.
Ela se preparava devagar, mas sem dúvida e sem hesitação íntima nenhuma; devagar, como um rito. (…)
– A senhora viu o filme?
Ela fez que sim com a cabeça, lentamente, e demorou dois segundos para responder apenas: vi. Mas senti que seu olhar já estudava aquele homem com uma severa e fascinada atenção, como se procurasse na sua cara morena os sulcos do vento do mar e, no ombro largo, a secreta insígnia do piloto de longo, longo curso.
Aborrecido e inquieto, o marido bocejou – era um boi esquecido, mugindo, numa ilha distante e abandonada para sempre. É estranho: não dava pena.
Ela ia navegar.” (“A mulher que ia navegar”, s/d, Recado de primavera.)
A mulher alheia
“Mas cobiçar, meu Deus, não devia ser pecado, porque muitas vezes é somente castigo e aflição; eu que o diga!” (“Buchada de carneiro”, 1955, O verão e as mulheres.)
Desamor
“Assim somos na paixão do amor, absurdos e tristes. Por isso nos sentimos tão felizes e livres quando deixamos de amar. Que maravilha, que liberdade sadia em poder viver a vida por nossa conta! Só quem amou muito pode sentir essa doce felicidade gratuita que faz de cada sensação nova um prazer pessoal e virgem do qual não devemos dar contas a ninguém que more no fundo de nosso peito. Sentimo-nos fortes, sólidos e tranquilos. Até que começamos a desconfiar de que estamos sozinhos e ao abandono, trancados do lado de fora da vida.” (“Sobre o amor, etc.”)
Alma
“Naturalmente devo contar essa história a um psicanalista. Mas então ele começará a me escarafunchar a pobre alma, e isso não vale a pena. Respeitemos a morna paz desse brejo noturno onde fermentam coisas estranhas e se movem monstros informes e insensatos.” (“O homem rouco”, 1948, do livro homônimo.)
Nascituros
“Nascem varões neste inverno; a lua é cheia, o mar vem crescendo de fúria sob um céu azul. Mas sua fúria sagrada é impotente; nós sobrevivemos: o mundo continua. E as ondas recuam, desanimadas.” (“Nascem varões”, 1949, O homem rouco.)
Bogotazo
“Bogotá teve seu terremoto de Lisboa, teve sua espanhola do Rio de Janeiro, teve sua bomba de Hiroshima; mas não foi subsolo enlouquecendo nem micróbio se transmitindo nem átomo se rebentando que fez a desgraça, foi o homem de Bogotá. Foi o pobre peito, foi a alma triste do homem de Bogotá – mísero homem, nosso semelhante, nosso irmão, a que chamaremos de hórrido bandido e condenaremos, árdegos de inveja.” (“O ausente de Bogotá”, 1948, O homem rouco.)
Unidade nacional
“Quieto, magro, simples, com seu bigode grisalho e sua roupa cáqui, ele não sabia que era um desses homens que ainda explicam e fazem a gente entender esse absurdo tranquilo que é a unidade nacional.” (“O Homem dos Burros”, 1953, O verão e as mulheres.)
Agropecuária
“É uma fazendola atrás da outra, tudo cultivado, as vaquinhas pastando com inteligência.” (“Blumenau”, 1953, O verão e as mulheres.)
Outono
“Não consigo me lembrar exatamente o dia em que o outono começou no Rio de Janeiro neste 1935. Antes de começar na folhinha ele começou na Rua Marquês de Abrantes. Talvez no dia 12 de março. Sei que estava com Miguel em um reboque do bonde Praia Vermelha. Nunca precisei usar sistematicamente o bonde Praia Vermelha, mas sempre fui simpatizante.” (“Chegou o Outono”, 1935, 200 crônicas escolhidas.)
Sombra e silêncio
“Um pequeno barco preto passava para oeste, como se quisesse procurar as sombras e precisasse pescar na penumbra. (…) Dentro de casa, no silêncio, parecia ainda haver um vago eco das vozes que tinham falado na noite: os móveis e as coisas ainda respiravam a presença de corpos e mãos.” (“Madrugada”, 1953, O verão e as mulheres.)
Copacabana
“1. Ai de ti, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas.
2. Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite.
(…)
21. Assim qual escuro alfanje a nadadeira dos imensos cações passará ao lado de tuas antenas de televisão; porém muitos peixes morrerão por se banharem no uísque falsificado de teus bares.
22. Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas joias, e aviva o verniz de tuas unhas e canta a tua última canção pecaminosa, pois em verdade é tarde para a prece; e que estremeça o teu corpo fino e cheio de máculas, desde o Edifício Olinda até a sede dos Marimbás, porque eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá. Canta a tua última canção, Copacabana!” (“Ai de ti, Copacabana!”, 1958, 200 crônicas escolhidas.)
Carnaval
“A secreta gravidade e a espantosa riqueza do carnaval chocam-se com essa arrumação extraordinariamente pífia que os decoradores da Prefeitura fizeram na Avenida, em um requinte de mau gosto que tenta ser popular e fica sendo apenas ruim – e com a indigência mental desses carros alegóricos subvencionados, sem espírito, nem beleza, nem nada.
(…)
Mas no seio do povo rebentam as imaginações como flores de loucura, esses sambas chorando, esses batuques heroicos, essa invenção incessante onde se despeja toda a fantasia, toda a tristeza, toda a opressão dos homens.” (“Os romanos”, 1949, O homem rouco.)
Feira
“Só ele poderá entender as coisas de barro e de palha, a glória dos tomates, o espanto de pedra no olho dos peixes eviscerados, e o constrangimento amarelo desses abacaxis sem sabor que amadureceram no meio do inverno.” (“A feira”, 1953, 200 crônicas escolhidas.)
Virtude
“Proponho que cada pessoa faça um exame de consciência e pergunte a si mesma com que direito se arvora em juiz dos outros. Pense nos seus próprios pecados, nos seus próprios ridículos. Procure ver a si mesmo como se fosse alguém a quem quisesse ridicularizar. Como seria fácil! Quem sabe que a virtude de que você mais se envaidece é menos uma virtude do que medo da polícia, ou, mais comumente, do ridículo?” (“Votos para o Ano-Novo”, s/d, As boas coisas da vida, Rio de Janeiro, Record, 1988.)
Felicidade
“De muito longe, de outra esquina, vem também o som de um realejo. Conheço o velho que o toca, ele anda sempre pelo bairro; já fez o periquito tirar para mim um papelucho em que me são garantidos 93 anos de vida, muita riqueza, poder e felicidade.
Ora, não preciso de tanto. Nem de tanta vida, nem de tanta coisa mais. Dinheiro apenas para não ter as aflições da pobreza; poder somente para mandar um pouco, pelo menos, em meu nariz; e da felicidade um salário mínimo: tristezas que possa aguentar, remorsos que não doam demais, renúncias que não façam de mim um velho amargo.” (“O vassoureiro”, 1949, O homem rouco.)
Vida
“Mas olho o chão. E vejo toda uma horda de siris minúsculos, cada um erguendo no ar uma puã única, mas do tamanho de seu corpo. Com essa patola gigantesca para seu talhe, esse caranguejinho parece um pequeno povo que gasta em armamento toda a sua receita. (…)
Junto a um tronco vejo passar uma formiguinha vermelha. Carrega com esforço uma folha grande; caminha penosa, mas implacavelmente. Isto é a vida, essa teimosia obscura e feroz de cada dia. Um instinto sem finalidade além da vida mesma – a vida que se defende para se repetir em mais uma geração de siris, de formiguinhas ruivas e de homens, tropeçando nos mesmos enganos, avançando com a mesma sinistra obstinação… para quê?” (“Como se fosse para sempre”, s/d, As boas coisas da vida.)
Esperança
“É costume dizer que a esperança é a última que morre. Nisto está uma das crueldades da vida; a esperança sobrevive à custa de mutilações. Vai minguando e secando devagar, se despedindo aos pedaços de si mesma, se apequenando e empobrecendo, e no fim é tão mesquinha e despojada que se reduz ao mais elementar instinto de sobrevivência.” (“O motorista do 8-100”, 1949, O homem rouco.)
Sonhar
“Mas que me deixem sonhar, que ainda esta é a maior diversão dos feios e pobres, e a grande orgia secreta dos tímidos.” (“Os olhos de Isabel”, 1949, O homem rouco.)