A eufórica rememoração dos 20 anos da derrubada do Muro de Berlim logo seguida pelo destroçamento da Cortina de Ferro necessita de alguns contrapesos. A mera exaltação em torno de triunfos produz perigosos desvios cuja soma pode resultar na subversão dos fatos.
A mídia – internacional e brasileira – tem se mostrado exímia em simplificar os significados da derrubada daquela barreira entre as duas Alemanhas. Com as mesmas imagens, sutis manipulações lingüísticas e rememorações incompletas fabrica-se uma História virtual, reduzida, diferente da real.
A queda do muro berlinense e o fim do império soviético não significaram o fim do socialismo. Essa balela não honra uma imprensa qualificada que se pretende isenta e livre. O que caiu – de podre – foi o comunismo, sobretudo a sua versão stalinista, estúpida, sanguinária, totalitária.
O socialismo democrático, ou mais precisamente a social-democracia, não foi despedaçado a golpes de martelo e picareta em 9 de novembro de 1989. Ao contrário, forneceu o cimento de altíssima qualidade para a construção não apenas da República Federal Alemã, a Alemanha Ocidental, como do Mercado Comum Europeu na qual se alimentou e prosperou.
Mesmo quando fora do poder o Partido Social Democrático Alemão (SPD) conseguiu manter todas as características de um welfare-state, estado previdencial, rigorosamente democrático, herdeiro legítimo do humanismo da República de Weimar.
Imperiosa outra correção de caráter histórico-filológico: o liberalismo vitorioso não foi propriamente o liberalismo político, essencialmente democrático, mas o econômico (logo depois apelidado de neoliberalismo), aquele que abomina a função reguladora e social do Estado. O chanceler Helmuth Kohl representava o conservadorismo alemão, mas comparado com os congêneres de outros rincões, sobretudo o anglo-americano, poderia ser qualificado como progressista. Margaret Thatcher e George Herbert Walker Bush representavam o capitalismo agressivo, sem controles, implacável. Este mesmo capitalismo que se estatelou em 2008 e agora Barack Obama e Mikhail Gorbachev tentam consertar.
Messianismo futurista
Examinados pelo espelho retrovisor e com um intervalo de duas décadas, estes equívocos podem parecer insignificantes. Na realidade, foram os responsáveis por uma ilusão extremamente perigosa. A partir de 1989 – e mais visivelmente a partir de 1991 – o mundo foi intoxicado por um monolitismo medieval. E a mídia foi o arauto de uma diabólica arrogância que não apenas liquidou o Outro, como liquidou as noções de alternativa e alternância.
Fomos empurrados prematuramente para a era da Infalibilidade e das Certezas; o triunfalismo de 1989 não deixou lugar para as dúvidas, questionamentos e ceticismo. E a imprensa só existe, só funciona e só é necessária quando consegue vocalizar dúvidas, questionamentos e ceticismo.
O desvario da mídia brasileira começou justamente nesta época. Foi a fase da ‘brindologia’, farta distribuição de brindes encartados nas edições de domingo. Os jornais queriam aumentar as tiragens de qualquer maneira. Perderam as referências, esqueceram os limites e os compromissos. Quem mandava era o marketing e os consultores internacionais. Foi exatamente naquele momento que desembarcou em nosso país a turma da consultoria Inovación Periodística a serviço da Universidade de Navarra e da Opus Dei.
Jornais e semanários de informação resolveram dar marcha a ré, retroceder na busca da qualidade. Uma imagem vale mil palavras, lembram-se desta bobagem? A vitória sobre o ‘socialismo’ animou os esquartejadores: o mundo estava salvo, a informação qualificada era agora desnecessária. A felicidade e a prosperidade estavam disponíveis, universais. Dispensaram-se os correspondentes estrangeiros, enxugadas as páginas de noticiário internacional, criados os ‘pátios dos milagres’ (páginas de medicina e saúde alimentadas por press releases da indústria farmacêutica).
As primeiras negociações para a criação do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) na Unicamp – embrião deste Observatório – datam justamente de 1993, quando o circo da mídia começou a funcionar em alta velocidade.
Naquele vale-tudo pós-Muro e pós-Cortina de Ferro, apareceram as novas tecnologias de informação, a internet, o messianismo futurista, o endeusamento dos gadgets, o culto da obsolescência. Sem clima para duvidar e sem tempo para exercitar a prudência, todos se aboletaram nas modas, ondas e bolhas.
Mundo de ontem
O Muro de Berlim resultou da vitória sobre o nazi-fascismo. Sua derrubada liquidou um dos protagonistas desta façanha, o totalitarismo de esquerda. O esfacelamento deste criou um totalitarismo vândalo, sem filiação, rotativo, fragmentário. Igualmente opressor.
Os mediadores entregaram-se à pressa e aceleraram mudanças que sequer suspeitavam. A mídia assistiu ao desmoronamento do Muro e da Cortina de Ferro sem os entender. Ao contrário da mobilização contra o terror nazi-fascista dos anos 1930 e 40, em 1989 e 1991 a mídia clicou flashes e câmeras sem perceber o que acontecia. Iludiu-se e iludiu.
O suspiro nostálgico do Eric Hobsbawm ao afirmar que o Muro de Berlim mantinha o mundo em segurança precisa ser entendido no contexto da sua Viena e do mundo de ontem. O historiador condenava o caos e o desvario que substituíram a Alemanha dividida e liquidaram os valores que a humanidade perseguiu sistematicamente ao longo de alguns milênios.
Leia também
Capitalismo precisa de sua perestroika – Mikhail Gorbachev
Antes do Muro de Berlim – Alberto Dines
O muro interior – Marcos Flamínio Peres entrevista Eric Hobsbawm [para assinantes da Folha/UOL]