A causa da liberdade provoca paixões. Paixões que alucinam. Empolgado na defesa de sua proposta de abolição da Lei de Imprensa, na sessão em que o Supremo Tribunal Federal começava a discutir o tema, o deputado Miro Teixeira exagerou na metáfora clássica do ‘quarto poder’: a imprensa não seria apenas representante do povo, seria o próprio povo. Assim resumiu O Globo a fala do deputado, na edição de quinta-feira (2/4):
‘A imprensa são os olhos do povo. Requeiro que desapareça a possibilidade de pena a jornalista ou responsável pela publicação sempre que houver causalidade com o direito do povo e que nós possamos ter um país em que o povo possa controlar o Estado e não que o Estado possa controlar o povo, como temos hoje’.
E o povo, como todo mundo sabe, ‘se vê’ na Globo.
Caberia perguntar, então, qual o sentido da democracia e da realização regular de eleições diretas para os mais variados cargos legislativos e executivos do poder do Estado, qual o sentido da existência dos mais diversos movimentos sociais e organizações da sociedade civil, se quem nos representa – perdão: quem incorpora nossa identidade – são as empresas de comunicação?
Grandes empresas privadas de comunicação, segundo o modelo vigente no país.
Grandes empresas privadas podem ser a referência de expressão do interesse público?
Quem sabe a pergunta nem faça sentido, pois é forçoso reconhecer que, identificada com o ‘povo’, a imprensa estabeleceria essa ‘linha direta’ – portanto, sem mediações – comprometida com a expressão daquilo que outro deputado, em outra ocasião, chamou de ‘instintos mais primitivos’. Afinal, o ‘povo’ é assim.
Entretanto, vindo de quem vem, o raciocínio nem é tão surpreendente. Num passado relativamente recente, numa das muitas vezes em que os exageros televisivos expressavam precisamente esses ‘instintos’ e levaram à discussão sobre a necessidade de se estabelecer limites para a programação, Miro Teixeira, então ministro das Comunicações, argumentava singelamente que ‘o melhor controle é o controle remoto’ [CartaCapital, ‘Globo: questão de Estado’, 1/10/2003]. Era uma declaração absolutamente coerente com a lógica neoliberal da democratic marketplace, na qual o cidadão é assimilado ao consumidor e o consumidor ‘tem sempre razão’. Hoje, porém, com o abalo provocado por uma crise financeira global de consequências ainda imprevisíveis, conviria refrear um pouco esse ardor em torno do mercado.
Liberdade de expressão x liberdade de imprensa
Retornemos ao argumento original. Esse ‘direito do povo’ a que o deputado se refere é o direito à liberdade de expressão, automaticamente identificado ao da liberdade de imprensa. Seria importante desfazer o equívoco, porque afinal se trata de duas coisas diferentes: bastaria indagar, por exemplo, se o jornalista funcionário de uma empresa goza de tal liberdade; ou mesmo se ‘o povo’ não teria a sua liberdade de expressão restrita quando envia uma carta não publicada ou – nesses tempos de ‘cidadãos-repórteres’ – manda uma colaboração ou denúncia que acaba descartada. (Neste segundo caso, a resposta óbvia é não, porque não há jornalismo sem edição, e editar significa fazer escolhas. Jornais devem zelar por sua linha editorial. Além disso, em qualquer suporte diferente da internet, têm espaço limitado).
Mas essa confusão é muito adequada quando se deseja tratar abstratamente desse tema tão delicado que é a liberdade de imprensa, esquecendo-se convenientemente as condições concretas em que se pratica o jornalismo e os interesses envolvidos no negócio da imprensa, especialmente num contexto de forte concentração dos meios de comunicação.
Ressalvas ignoradas
Na exposição de motivos em que sustenta a proposta de revogação da lei, Miro Teixeira busca fundamentação em uma série de juristas, entre os quais pelo menos dois apontam conflitos que ultrapassam a demanda específica da petição. Assim, José Joaquim Gomes Canotilho ressalta:
‘A liberdade interna de imprensa (…), que implica a liberdade de expressão e criação dos jornalistas bem como sua intervenção na orientação ideológica dos órgãos de informação (…), pode considerar-se em colisão com o direito de propriedade das empresas jornalísticas’.
Logo a seguir, José Afonso da Silva argumenta:
‘A liberdade de informação não é simplesmente a liberdade do dono da empresa jornalística ou do jornalista. A liberdade destes é reflexa no sentido de que ela só existe e se justifica na medida do direito dos indivíduos a uma informação correta e imparcial. A liberdade dominante é a de ser informado, a de ter acesso às fontes de informação, a de obtê-la. O dono da empresa e o jornalista têm um direito fundamental de exercer sua atividade, sua missão, mas especialmente têm um dever. Reconhece-se-lhes o direito de informar ao público os acontecimentos e ideias, mas sobre eles incide o dever de informar à coletividade de tais acontecimentos e ideias objetivamente, sem alterar-lhes a verdade ou esvaziar-lhes o sentido original, do contrário, não se terá informação, mas deformação. Os jornalistas e empresas jornalísticas reclamam mais seu direito do que cumprem seus deveres’.
A liberdade ‘natural’
O jurista prossegue nos termos clássicos que reiteram o papel da imprensa como ‘quarto poder’, elemento de expressão da vontade popular e de defesa contra os excessos do Estado. Não envereda pela discussão das questões complexas e sempre polêmicas sobre objetividade e imparcialidade, que estão no cerne da prática jornalística. Apenas anota a crítica: jornais e jornalistas reclamam mais seu direito do que cumprem seus deveres.
É quanto basta, sobretudo porque a frase jamais será mencionada – muito menos destacada – em qualquer jornal.
E, embora sirva-se do argumento de dois juristas que fazem tais ressalvas, Miro sustenta que ‘o pensamento e sua manifestação, assim como a informação, são naturalmente livres’.
Naturalmente: vivemos num mundo – e num país – igualitário, sem coerções ou constrangimentos.
Liberdade e responsabilidade
Ao justificar seu voto pela extinção total da Lei de Imprensa, o ministro Ayres Britto, relator da ação proposta pelo deputado, mencionou a necessidade de ‘permanente conciliação entre liberdade [para a atuação da imprensa] e responsabilidade’, porque, ‘sob o prisma do conjunto da sociedade, quanto mais se afirma a igualdade como característica central de um povo, mais a liberdade ganha o tônus de responsabilidade’. Entretanto, não explorou esse caminho, que conduziria a uma estimulante discussão sobre a suposta, ou pretendida, ‘mudança de paradigma’ – da liberdade de imprensa para a responsabilidade da imprensa – ensejada há mais de 60 anos pelo famoso relatório da Comissão Hutchins, como Venício A. Lima expôs em artigo neste Observatório (ver ‘A responsabilidade social da mídia‘).
Pelo contrário, logo no início de sua declaração de voto, o ministro cita a Primeira Emenda da Constituição americana, sem recordar que, desde 1919, a Suprema Corte daquele país estabelece limites à livre expressão, como o advogado José Paulo Cavalcanti Filho demonstrou em artigo também publicado neste Observatório (ver ‘O drama da verdade – ou discurso sobre alguns mitos da informação‘).
A sequência do discurso é a reiteração do pensamento liberal clássico. Ayres Britto define a imprensa como ‘o espaço institucional que melhor se disponibiliza para o uso articulado do pensamento e do sentimento humanos como fatores de defesa e promoção do indivíduo, tanto quanto da organização do Estado e da sociedade’ e considera que ‘é pelos mais altos e largos portais da imprensa que a democracia vê os seus mais excelsos conteúdos descerem dos colmos olímpicos da pura abstratividade para penetrar fundo na carne do real‘.
No entanto, deixa-se ficar na abstratividade, ao reforçar o argumento de Miro Teixeira, que vê ‘a imprensa como alternativa à explicação ou versão estatal de tudo que possa repercutir no seio da sociedade’, e daí concluir que ela significa o ‘garantido espaço de irrupção do pensamento crítico em qualquer situação ou contingência’ (o destaque é meu).
As ‘neves eternas da legalidade’
Vício de jurista, talvez, como escreveu certa vez o também jurista Nilo Batista, com a verve que lhe é peculiar:
‘Juristas sofrem de uma doença profissional perigosa, proveniente do contraste entre as altas temperaturas da fundição do discurso do poder e as neves eternas da legalidade compreendida pelo viés positivista, que congela esse discurso na lei. Tal enfermidade nos habilita a perceber conflitos sociais como simples deficiência de normatização, que o inesgotável Estado do bem-estar jurídico tratará logo de suprir, motivo pelo qual adquirimos a capacidade mágica de superá-los com dois ou três artigos e parágrafos. Ficamos sempre um pouco desorientados perante a força bruta que rompe os modelos legais, ansiosos por repousar no porto seguro de alguns incisos e alíneas’.
(A propósito, o trecho é parte de um artigo que o autor enviou à Folha de S.Paulo, no qual tentava polemizar com um professor norte-americano que, em artigo reproduzido no caderno ‘Mais!’, defendia a política de guerra de Bush. ‘Tentou em vão’, como escreveu na revista da qual é editor, e na qual finalmente publicou seu texto. ‘Parece que a opinião de juristas brasileiros, salvo poucas exceções, não interessa muito ao `Mais!´, ou interessa mais ou menos’).
Penetrando ‘a carne do real’
Assim, só é possível pensar que a imprensa é esse ‘garantido espaço de irrupção do pensamento crítico’ se desconsiderarmos as situações objetivas e optarmos pelo consolo dos incisos e alíneas, como numa paráfrase à máxima do Direito: dentro da lei, dentro da vida.
Dessa forma, o ministro pode afirmar que ‘quem quer que seja pode dizer o que quer que seja’. Pode, ainda, elogiar o caminho da autorregulação da imprensa, buscando o exemplo do noticiário sobre o parlamentar americano que se suicidou em frente às câmeras: as imagens foram congeladas antes do disparo fatal. Entretanto, se quisesse ‘penetrar fundo na carne do real’, poderia ficar por aqui mesmo e recordar o recente episódio da cobertura em ‘tempo real’ do sequestro e assassinato da jovem Eloá Pimentel, em Santo André; ou do acompanhamento ao vivo do ‘caso Isabella’; ou dos ataques do PCC em São Paulo, em 2006; e paremos por aqui porque a lista é interminável.
Um equívoco de origem ancestral
Como se há de perceber, este artigo não pretendeu discutir a necessidade ou não de uma Lei de Imprensa, embora esta seja uma questão de extrema relevância. Pretendeu apenas demonstrar os descaminhos de um debate central para a cidadania, quando se desconsidera a realidade concreta para a definição do direito de informar e ser informado.
Não seria possível concluir sem mencionar uma hipótese para as origens desse equívoco tradicional que suspeita do poder do Estado e aceita placidamente o poder econômico. Como argumentei certa vez, a idéia de autonomia ou independência da imprensa significa implicitamente autonomia ou independência em relação ao Estado – o que ratifica o conceito de ‘quarto poder’ –, enquanto a dependência em relação ao poder econômico é vista como parte da ordem natural das coisas.
A origem dessa dicotomia sugere uma remissão completamente descontextualizada ao entendimento do mercado como uma extensão da vida doméstica, na qual os cidadãos deliberam ‘livremente’. Ou seja, enquanto a naturalização do papel político da imprensa como fiscal do poder tem dois séculos, a naturalização da subordinação da imprensa às leis do mercado é um pouco mais antiga: remete à polis grega, ao oikos como extensão da vida privada.
O que mais impressiona é que, na era da mais extrema concentração de capital do mundo globalizado, esse equívoco ainda sobreviva.
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Jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)