Tuesday, 05 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A mitologia da prostituição

Talvez por um certo tédio ao que o tema me remete ou por prever tudo o que estaria escrito, custei a me aventurar no livro de Gabriela Leite. Finalmente, respirei fundo, virei a primeira página e de um só fôlego concluí a leitura. Se eu precisasse escrever agora o que mais me chamou a atenção nos relatos que encontrei em Filha, mãe, avó e puta, Gabriela Leite livrodiria que foi a forte consciência política de Gabriela, o irrefreável desejo de organizar e também conscientizar um grupo que está ao largo de tudo o que é civilizado. Mesmo diante de criaturas indomáveis e altamente competitivas, como são as prostitutas, ela não fraquejou. Infelizmente, no Brasil atual, movimentos com conotação política, que visam à inclusão de minorias, acabam sabotados pelo retrógrado sistema político que deveria abraçá-los. Não foi diferente neste caso. O Projeto de Lei 4.211/2012, que inclui as prostitutas no universo dos direitos, está mofando em nosso arremedo de Congresso.

A fama de Gabriela Leite brotou da sua atividade na Vila Mimosa. Ali ela se reinventou na militância que pretendia romper preconceitos e libertar a prostituição dos porões do exílio social. No entanto, como autora, percebi a mesma falha que me salta aos olhos em tantas narrativas contadas por ex-prostitutas que se destacam na mídia. Há sempre uma proposital falta de transparência sobre a aridez do universo em que habitaram; quando não é uma tendência a glamorizar, é uma tentativa de romancear e buscar um toque folclórico à rotina da zona. A pior face é traçada en passant. A Vila Mimosa, por exemplo, desde seus tempos no Estácio, onde hoje fica a estação do metrô, até seus dias contemporâneos na Praça da Bandeira, é um esgoto a céu aberto. Quando entramos pela rua Ceará e pisamos sobre os paralelepípedos da Sotero Reis, o que vemos são sobrados em ruínas, ratos circulando, água estagnada nas sarjetas e um cheiro ácido no ar. São as piores condições possíveis num lugar assustadoramente insalubre. Assim é o gueto onde mulheres mercantilizam seus corpos para trabalhar e sobreviver.

Gabriela Leite foi uma figura crucial. Expôs em carne viva uma existência que só admitimos se for clandestina. Ao mesmo tempo, ela buscou elevar a autoestima das profissionais do sexo, criou uma grife e fez de tudo para derrubar o peso pejorativo da palavra puta. Apesar disso, só se referiam a ela como a prostituta que estudou Ciências Sociais na USP. Porém, Gabriela se perdeu ao mostrar a zona como um território de personagens folclóricos, com quartos privativos, cafetinas gentis e alguns policiais achacadores. Não. A Vila Mimosa, por exemplo, é um lugar violento, onde não é incomum encontrar sujeitos ensanguentados se arrastando pelo chão; é um território dominado por uma milícia peculiar que se rotula como a segurança da rua; a propriedade das casas de lazer se dá através de testas de ferro; são sobrados e boates onde as prostitutas fazem sexo em baias que parecem chiqueiros; é campo aberto para o tráfico de drogas; é praça de guerra entre policiais que disputam poder e influência. Assassinatos à queima-roupa e tiroteios dentro da zona são notícias que encontramos com facilidade nas páginas dos jornais que mostram o mundo cão.

Amor libertino

Na minha pesquisa informal dentro da zona, cruzei com sociólogos, antropólogos, universitários, professores e escritores. Leio teses e artigos com foco em estatísticas, mapeamentos, no interesse dos gringos, nos ganhos financeiros das meninas e muito pouco nas reais condições físicas e psicológicas em que elas sobrevivem. Sempre me pergunto no que esses trabalhos acadêmicos contribuem para a dignidade das mulheres que trabalham com sexo. Registrar e quantificar é uma burocracia científica fascinante para os cientistas, mas a Vila Mimosa continua imunda e alijada; só existe como território delinquente por onde circulam milhões de reais. Como não me cabe o ceticismo, espero, sinceramente, que qualquer iniciativa cerebral tenha utilidade prática. Nem mesmo a criação de uma Rede Brasileira de Prostitutas mudou a realidade precária do baixo meretrício e dos lupanares espalhados pelo país. O que me preocupa é pressentir que o cientificismo se limita ao papel de um rufião temático, que não agrega qualquer colaboração humanística à questão.

Gabriela afirma que para ser puta uma mulher precisa amar os homens, mas não explica o porquê de muitas profissionais da zona se tornarem lésbicas. Eu arriscaria dizer que a maioria adota outra orientação sexual depois que se torna prostituta. A autora defende que as meretrizes não devem ser vistas como vítimas. Nisso também concordo; ela prega um certo orgulho pelo ofício. Porém, a própria Gabriela, assim que obteve um destaque relevante na sociedade por conta das lutas que encampou, largou o meretrício, casou-se e já pensava em outras perspectivas menos desgastantes. A prostituição é tanto uma escolha quanto uma necessidade, mas no fim das contas nunca se soube de nenhuma prostituta que amasse de fato a profissão. Continuam na zona por se acostumarem, por se alienarem do mundo e das oportunidades que não chegam a elas com força de convencimento. Há um absoluto desinteresse da sociedade pelas mulheres da vida.

Em determinado ponto, o livro revela um detalhe curioso, conta que os cariocas não fazem programa, querem namorar. É verdade. Na observação que fiz durante minha jornada pelo meretrício, testemunhei vários clientes que se “casaram” com garotas de programa, numa relação que envolve mais o sentimento de posse e a objetificação da mulher do que amor. Escondem o passado de perversão e tratam a cônjuge arrebatada como um prêmio. A possibilidade de seduzir uma prostituta é, para alguns machos, um banquete à vaidade, uma fantasia irresistível. Gabriela também diz que esses “casamentos” não dão certo. Realmente, nenhum dos que acompanhei se sustentou. Para muitos homens, a zona é uma espécie de agência matrimonial, num paradoxo cômico inexplicável.

Direitos e exílio

O PL Gabriela Leite continua estagnado em Brasília. Ele prevê a descriminalização dos donos de bordéis. Ou seja, oficializa a figura do cafetão, desde que respeitadas uma série de regras. Há quem seja contra. Há, inclusive, prostitutas que discordam. Bordéis e cafetões já funcionam à margem da lei. São fontes de renda para maus policiais que fazem girar a indústria da extorsão. Regulamentar seria uma forma de diminuir o círculo criminal da atividade ao abrir espaço para fiscalizá-la. Não resolveria todas as implicações que este comércio abarca, mas é a tentativa de um passo à frente. Infelizmente, a morte trágica e precoce de Gabriela pode ter prejudicado a vitória dessa bandeira progressista.

A prostituição não cultiva a barreira do gênero. É praticada por mulheres, por homens e travestis. Não é o domínio fácil que, às vezes, aparece descrito na literatura de quem passou por ele. É complexo, perigoso, subterrâneo e sempre ameaçado pelo desterro. Na zona, nas termas, nos privês e flats que pululam pelas cidades, existe o submundo que a luxúria reconhece, mas que os corações hipócritas rejeitam.

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Alexandre Coslei é jornalista