Thursday, 28 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mitsuko Kawai, jornalista tardia

Semana passada, no modesto café que existe na Rua Pedro Fioretti – centro de Osasco, SP – onde faço a primeira refeição todo dia, fiz um achado literário. Enquanto aguardava, perguntei à dona, que é descendente de japoneses, se ela sabia do lançamento do filme Corações Sujos. Ela disse que não, mas ficou interessada. Então a conversa enveredou por este caminho até que ela mencionou que tinha uma tia que foi jornalista e fez traduções de lendas japonesas para o português e de livros de literatura brasileira para o japonês. Fiquei encantado e pedi, se possível, para ela me emprestar os livros, o que de fato ocorreu.

A autora é Mitsuko Kawai. Reproduzo abaixo a melhor referência sobre ela encontrada na internet [O texto abaixo é reproduzido do Jornalistas & Cia].

Imigrante, mulher, jornalista

A vida de Mitsuko Kawai daria um filme. Aliás, vários filmes, tantos foram os traumas que encarou desde que nasceu e enfrentou com estoicismo incomum, um após outro, no Japão e no Brasil – até, aos 54 anos, tornar-se jornalista e iniciar uma trajetória na qual conquistou o domínio das duas línguas, que sabia traduzir indistintamente. Escreveu livros, incluindo a autobiografia intitulada Sob Dois Horizontes, além do confessional Jornalista por acaso.

O primeiro trauma surgiu na primeira infância. Segundo descreve, “quando nasci, em 28 de novembro de 1921, era uma menina feia, com cara de menino e de nariz chato, o que deixou minha mãe muito decepcionada. Ainda por cima tinha o cabelo ondulado (…). Era chamada pelas amigas de ‘mestiça’. Minha mãe não gostou e certo dia mandou raspar minha cabeça com navalha. Eu tinha cinco anos. No dia seguinte, a repentina aparição de uma menina careca assustou toda a vizinhança.”

Nascida e criada em Kiryu, a “cidade da seda”, a 100 km de Tóquio, Mitsuko adorava ir à escola, era sempre a primeira da classe. Uma vez, ganhou um prêmio com este tanka (poema curto japonês, de 31 sílabas): “Digno pinheiro/verdes as suas folhas/ainda que o açoitem/o vento e a neve”. Seu professor se entusiasmou com talento tão precoce e confidenciou ao avô coruja dela: “Mitsuko possui tanta vontade pelo saber que promete ser alguém na vida.” A crise econômica arrostou a profecia e, aos 12 anos, ela seguiu com a família para o Brasil. Adeus, estudos; adeus, futuro. Em vez disso, puxar enxada o dia todo. “Como era duro!”

Ao se casar, então, aposentou as ilusões de adolescente. Sentiu que não iria iniciar vida nova: “Naquela época, o casamento significava um braço a mais na família, por isso o rapaz procurava a moça mais robusta e a família dele também dava preferência às moças com saúde de ferro e que tivessem muita força. Se era bonita ou inteligente, não tinha a mínima importância.” Quanto à cerimônia, nada de especial: “Não houve festa, nem igreja, nem cartório, nem lua-de-mel, nem aliança. Ele prometeu que mais tarde, quando tivesse dinheiro, compraria a aliança. Já se passaram 50 anos de vida conjugal e ainda não vi esta aliança.”

O dia a dia se arrastava nos verbos capinar, plantar, derrubar, cozinhar, lavar… cuidar das crianças, tirar água do poço. Mitsuko garante: as mulheres, na roça do seu tempo, trabalhavam duas vezes mais que os homens. “Como trabalhavam!”, recorda nas memórias, olhando para trás como se contemplasse outra pessoa, submissa, passiva, prestativa. Prova disso é a manobra articulada pelo marido, quando conseguiu parar com a faina pesada e foi admitido no escritório da cooperativa. Sem ela saber, foi “contratada” como ajudante de cozinha da única pensão do lugar. O que seria seu salário servia para quitar as refeições que o marido fazia no expediente.

A primeira filha nasceu em 11 de fevereiro, dia em que o Japão comemora sua fundação. Outros quatro viriam. Todos nasceram sem assistência de parteira ou médico. O próprio marido cortava o cordão umbilical e dava o primeiro banho. E, 24 horas depois de dar à luz, Mitsuko retomava sua rotina de trabalho.

Mas trauma maior, mesmo, viria quando se espalhou a notícia de que a guerra acabara. À noite, uma multidão cercou o barraco onde a família morava, exigindo que o marido saísse à porta. Morto de medo, ele avisou a mulher: “Vou sair. Se me executarem, talvez poupem a vida de vocês”, decidiu, entregando-lhe um 38, com orientação expressa: “Esses homens, que já estão fora de si, são capazes de matar vocês também. Antes que isso aconteça, mate todas as crianças. Não erre. Encoste o cano na cabeça de cada uma e puxe o gatilho. Depois de matar todas, você atire na própria cabeça.”

Foram, ela lembra, os instantes mais dramáticos de toda a vida. Matar os próprios filhos, que amava mais do que tudo naquela vida miserável? Deixou o revólver sobre um armário e abraçou-se às crianças, que dormiam. Depois do que considerou uma eternidade, ouviu pancadas na porta. Era o marido, ensanguentado, quase moribundo, mas vivo. Tinha sido salvo pelo farmacêutico do lugar, que afugentara a turba dando tiros para o alto.

O primeiro emprego real

Várias pragas depois (gafanhotos, borboletas brancas, bichos), que consumiram energia e paciência, a família mudou-se para a capital. O cotidiano difícil continuou. O marido arranjava bicos na rua; ela tricotava e costurava para obter algum extra. Mesmo afogada nos afazeres domésticos, Mitsuko defrontou-se com um impasse. Como acompanhar a educação escolar dos filhos, se não dominava a língua? “A meu modo”, escreveu na biografia, “eu abria a cartilha da mais velha e começava a estudar.” Descobriu, em seguida, a biblioteca municipal Amadeu Amaral, perto de onde morava, no bairro paulistano do Jardim da Saúde. Resolveu frequentar o local. Toda semana, pegava livros para ler. “As funcionárias, que no começo me olhavam com curiosidade, tornaram-se minhas amigas. Elas gentilmente me ajudavam a encontrar todos os livros de que precisasse”, relembrou Mitsuko.

Quando se sentiu segura, articulada no manejo do português, dedicou-se a traduzir, para o japonês, artigos que lia em jornais paulistanos. Para sua surpresa, um dia recebeu carta do Diário Nippak convidando-a para trabalhar, como tradutora e redatora. Era, e foi, seu primeiro emprego real, aos 54 anos! Nem a família apostou muito. O marido: “Experimente. Se não servir, você logo será despedida.” A filha: “Apesar da idade, a senhora é muito ingênua e inexperiente. Será que dará conta do recado?”

Chegou na redação, apresentou-se e logo recebeu uma pilha de revistas e jornais para traduzir. Claro, escolheria, do material, os artigos que considerasse mais interessantes. Assim se iniciou sua jornada de 12 horas de redação, que se prolongaria, sem férias e sem outros benefícios. Mas estava feliz, estava fazendo aquilo que sempre sonhara: escrever. “Escrevia praticamente 12 horas por dia, mas nunca me cansava”, escreveu Mitsuko. Lia seus textos várias vezes, para corrigir erros, chegava a descer do metrô e retornar à redação apenas para mudar uma palavra que no caminho considerara mais adequada do que a que havia usado.

Tanta dedicação despertou a atenção da chefia, que delegou a ela uma tarefa desafiadora: traduzir A Muralha, de Dinah Silveira de Queiroz, para publicação em capítulos diários. Até então, a matéria-prima dos folhetins eram romances japoneses. A repercussão foi absolutamente favorável, e o Nippak passou a publicar traduções de O Guarani, O Lampião. Um dia, Mitsuko foi chamada pelo diretor Toshihiko Nakabayashi e ouviu um elogio que considerou um grande prêmio: “Não tem mais nada para corrigir nos seus artigos, a senhora pode se considerar uma jornalista!”

Sentiu a barra

Do mesmo Nakabayashi, Mitsuko aprendeu as três regras de ouro do jornalismo diário. Segundo suas memórias: “O ponto principal é saber escrever rápido. O acontecimento de hoje tem que ser publicado amanhã, senão a notícia perde o valor.” A segunda lição: “Nunca esquecer que o artigo será amanhã lido por centenas, milhares de pessoas. Os amadores não têm medo de escrever, mas o profissional deve ter o máximo de cuidado para não cometer erro. É questão de senso de responsabilidade.” E a principal: “O jornalista tem que ser imparcial, do começo ao fim. No artigo, não podem entrar a sua opinião, o seu gosto e seu sentimento.”

Depois de quatro anos de Nippak, Mitsuko recebeu um convite do São Paulo Shimbun. Topou. A redação era bem maior, exclusivamente composta por homens. Ela sentiu a barra, lembra: “Eu era a única redatora, uma intrusa no mundo dos homens (…). Soube que existia outro tabu na redação: nenhuma mulher durava mais de três meses. A redação tinha veteranos que já trabalhavam ali havia dezenas de anos. Às vezes, vinha uma cara nova do Japão, com diploma na mão, mas não durava muito. As pessoas da colônia raramente se candidatavam, porque nenhuma delas passava no teste com o redator-chefe, por falta de conhecimento da língua japonesa.” Do alto de seus quase 60 anos, temperados em suor e determinação, Mitsuko se impôs. Trabalhou 11 anos no São Paulo Shimbun, traduzindo, redigindo e, claro, adaptando romances, como Chão Bruto, de Hernani Donato. Editou uma página infantil onde apresentava fatos importantes da cena brasileira.

Com o marido doente, ela se demitiu do jornal. Passou, então, a escrever livros, em português e em japonês. Viajou ao Japão em 1985, quando completou 51 anos de Brasil. Emocionou-se ao rever a pequena Kiryu, ao saber que boa parte dos amiguinhos morrera na guerra. E voltou a São Paulo. “Até hoje”, explicou no fecho de Sob Dois Horizontes, “muitas pessoas me perguntam como consegui ser jornalista numa idade em que muitos se aposentam. Não sei. Pode ser o resultado de muita força de vontade e perseverança. Pode ser que tenha tido sorte, circunstâncias que me favoreceram, ou destino. Talvez alguma coisa que estava oculta dentro de mim e que veio à tona com a primeira oportunidade. Talvez. O certo é que tudo isso, como água que corre para terreno mais baixo, aconteceu naturalmente.”

Mitsuko Kawai morreu aos 76 anos, num acidente de trânsito, em fevereiro de 1998. [Jornalistas & Cia– rolar a página]

A Flip e os holofotes da mídia

Um pequeno depoimentoda autora também pode ser lido na TV Cultura. Na Wikipédia não há um verbete específico para Mitsuko Kawai, mas ela é citadana página da Associação Brasileira de Desenhistas de Mangá e Ilustrações. A obra dela também é citadapelo doutor Francisco Handa, um estudioso da cultura e da literatura japonesa. A obra desta jornalista nipo-brasileira também já foi referida na TV Brasil. Estes são os links mais significativos que consultei.

Os livros de Mitsuko Kawai que estou agora devorando são Lendas do Japão 5, Lendas do Japão 7 e O teatro kabuki e outros temas japoneses. Na introdução dos mesmos, lê-se que, entre outras traduções, Mitsuko Kawai fez uma tradução para o japonês do livro O Guarani, de José de Alencar. Fiz uma pesquisa na internet e descobri que somente é possível comprar os livros desta autora no sebo. Isto é lamentável, mas em se tratando de Brasil não chega a ser uma surpresa (pelo menos para os que tiveram contato com o livro Devorando o Tempo – Brasil País sem Memória, de Annette Leibing, livro que também pode ser adquirido… no mesmo seboem que as obras de Mitsuko Kawai são encontradas).

Há bem pouco tempo, encerrou-se a Flip. Sob os holofotes da mídia lá estiveram alguns dos autores consagrados da literatura brasileira e centenas de autores menores que pretendem o estrelato. Aos primeiros, nada tenho a dizer. Aos demais, lembro o exemplo de Mitsuko Kawai. Ela não desfrutou os prazeres do estrelato e mesmo assim deixou uma obra literária respeitável e significativa – certamente nenhum grande autor que foi a esta Flip fez tanto pela literatura brasileira e japonesa quanto a nipo-brasileira. Além disso, se considerarmos verdadeiras as palavras de Annette Leibing, o sucesso literário no Brasil é ou pode ser tão enganoso quanto as imagens criadas pelo Texugo brincalhão referido no livro O teatro kabuki e outros temas japoneses.

Aqui e agora, entretanto, o esquecimento não devorou completamente a obra de Mitsuko Kawai. No futuro, o tempo certamente não devorará as obras de muitos outros escritores hoje considerados menores. Esqueçam os holofotes da Flip e continuem escrevendo.

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[Fábio de Oliveira Ribeiro é advogado, Osasco, SP]