É curioso. Um filme que retrata a vida de uma revolucionária, Olga, de Jayme Monjardim, foi exaltado por setores da comunidade judaica que nunca esconderam suas predileções conservadoras. Olga Benário Prestes virou celebridade instantânea, personagem cult, irmã judia. Que elixir milagroso destruiu preconceitos ideológicos e jogou Olga nos braços dos inimigos de suas idéias? Como diria o Barão de Itararé, há algo no ar além dos aviões de carreira.
A situação é semelhante, por exemplo, ao caso de Che Guevara. A imagem do guerrilheiro desfila nas camisetas de milhões de jovens que não fazem a menor idéia de quem foi aquele cabeludo-barbudo. A exibição da foto sedutora do rebelde com causa e jeitão de hippy esconde a ignorância dos consumidores de boas grifes. O mesmo com Olga. Quando se ressalta uma duvidosa identidade judaica, abafa-se o seu traço principal: a militância permanente, começada na adolescência, pela destruição do capitalismo. Falar da companheira de Prestes sem colocar em primeiro plano esta identidade política é falsificar a verdade histórica.
Moacyr Scliar escreveu sobre a ‘irmandade espiritual’ que une mulheres ‘judias e revolucionárias’ como Olga, Emma Goldman e Rosa Luxemburgo [‘Olga e suas irmãs’, Carta Maior, 28/8/04, (http://agenciacartamaior.uol.com.br/agencia.asp?coluna=visualiza_arte&id=2318)]. Olhando de perto, entretanto, constata-se com facilidade que nenhuma destas três figuras extraordinárias tinha a mais remota ligação com qualquer vertente do judaísmo. Nenhuma inspirou-se em conhecimentos judaicos para formular teorias políticas ou atuar na sociedade. Nenhuma demonstrou sequer um vínculo afetivo com a história e as tradições judaicas.
É claro que, sob o ponto de vista ‘técnico’, eram judias, pois nasceram de ventres judeus. Também se pode argumentar que, no caso de Olga, os assassinos não tiveram a menor dúvida sobre sua identidade judaica. Os racistas ‘sabem’. É o pertencimento definido de fora, pela segregação. Será que genética e preconceito são suficientes para definir quem é judeu? Duvido.
História familiar
É um exercício interessante abrir as trajetórias de Olga, Emma e Rosa para se tentar detectar rastros de identidade judaica.
Olga Benário, nascida em Munique, foi criada dentro de uma típica família alemã de classe média. Não recebeu nenhum tipo de educação judaica, formal ou informal. Dentro de casa, não se celebravam as festas judaicas. Muito cedo mergulhou na política, paixão que nasceu da leitura dos processos de trabalhadores defendidos por seu pai, Leo Benário. Com 16 anos, saiu de casa para morar em Berlim com Otto Braun, jovem dirigente comunista. A partir de então, sua vida se confunde com a atividade revolucionária.
Olga não teve relação familiar harmoniosa. Repudiava a vida fútil de sua mãe e tinha sérias divergências políticas com o pai. Ruth Werner [Olga Benário: a história de uma mulher corajosa, Editora Alfa-Omega, 1990] relata uma passagem em que Olga, então em Moscou, comenta que só teve um verdadeiro lar quando se hospedou na casa de uma família de operários, em Munique. É sintomática a maneira carinhosa como se dirigia a dona Leocádia, mãe de Luiz Carlos Prestes. Chamava-a sempre de ‘mamãe’, revelando a descoberta de um carinho antes desconhecido no convívio familiar.
Não se conhece qualquer passagem da vida de Olga que se possa associar ao judaísmo. Sua deportação para a Alemanha nazista, gesto odioso da ditadura Vargas, teve motivação política. O fato de ser judia foi, seguramente, apenas uma cereja no bolo totalitário, um agravamento da ‘culpa’, mas não sua causa.
Emma Goldman, anarquista, foi presença marcante da esquerda não-bolchevique nas três primeiras décadas do século passado. Nasceu na Lituânia em 1869 e sua família, ao contrário da de Olga, praticava a religião judaica, freqüentando a sinagoga aos sábados e nas chamadas grandes festas. Raramente, porém, falavam com os filhos sobre isso. Emma diz que suas primeiras idéias sobre Deus e Diabo, pecado e punição, vieram através dos criados russos de seus pais [Goldman, Emma: Living my life, Dover Publications, 1970, New York].
O ambiente doméstico era-lhe tremendamente opressivo, pois muito cedo, mostrou que não se satisfaria com o papel de objeto-de-cama-e-mesa reservado para as mulheres de seu tempo. O pai, a quem Emma atribui uma ‘presença aterrorizante’, queria casá-la à força quando tinha quinze anos. Encontrando resistência, jogou no fogo os livros de estudo da filha, dizendo que as meninas não precisavam estudar tanto. Bastava que soubessem preparar um bom guefilte fish e uma boa massa e dar aos seus maridos muitos filhos. A mãe era fria com os filhos. Quando Emma se aproximou da puberdade e sentiu, aflita, a primeira menstruação, levou uma bofetada da mãe (‘Isso é necessário para uma moça quando se transforma em mulher, para se proteger da desgraça’).
Aos 16 anos, enfrenta a ira paterna e vai morar nos Estados Unidos. Em 12 de novembro de 1887, cinco líderes operários são enforcados em Chicago, na esteira dos acontecimentos que levam à criação do Dia Internacional do Trabalho. O impacto em Emma foi tremendo. Ela começa a ligar-se a círculos anarquistas e, em pouco tempo, sua militância decola. Dá conferências, ajuda a editar jornais, formula idéias originais. Dedica sua vida à emancipação dos trabalhadores em geral e das mulheres em particular. Afirma que o casamento tradicional é um arranjo econômico e uma prisão. O verdadeiro amor prescinde do aval de rabinos e sacerdotes.
Em 1917, empolga-se com a revolução dos sovietes e viaja à URSS. Desencanta-se, porém, com a nascente burocracia e a intolerância com as diferenças políticas. ‘Minha idéia sobre a revolução não é a de um extermínio contínuo das dissidências políticas’. Exila-se na França e, nos anos 30, colabora com os anarquistas espanhóis durante a guerra civil. Morre no Canadá, em 1940, e seu corpo é levado para os Estados Unidos e enterrado junto dos operários enforcados em 1887.
Nenhum de seus movimentos, nenhuma de suas posições públicas, nenhum de seus legados teóricos, nada, enfim, tem sequer um sopro judaico. A longínqua história familiar, limitadora e repressiva, serviu-lhe apenas de contraponto para formulações libertárias.
O outro lado do muro
O caso de Rosa Luxemburgo é o mais complexo dos três. Nascida Rozalia, na cidade polonesa de Zamosc, foi a caçula de cinco irmãos. Mesmo sem receber educação religiosa, teve algum contato com tradições judaicas, principalmente através de sua mãe, Lina. Ao longo da infância e da adolescência aprendeu o que era ter ascendência judaica. O sistema de cotas nas escolas polonesas impôs-lhe a exclusão.
Este sentimento, ao lado do defeito físico que aparece aos cinco anos de idade (quando passou a coxear), criam na jovem Rosa uma férrea vontade de se sobressair. Era a forma de contrabalançar as desvantagens que tinha, a social e a física. Nasce, assim, um personagem robustecido, que, de acordo com sua biógrafa Elzbieta Ettinger [Rosa Luxemburgo, Jorge Zahar Editor, 1989], ajudou a encobrir sua insegurança. Nos anos de escola, lembra Elzbieta, tornou-se conhecida como ‘forte’, um epíteto que lhe agradava mais do que ‘manca’ ou ‘judiazinha suja’.
Em dezembro de 1881, Rosa, então com 12 anos, testemunha um pogrom em Varsóvia. A experiência é traumática e jamais cicatriza. Ela terá sempre dificuldades com as multidões (traço exótico para uma oradora vibrante, que cansou de falar para as massas).
Rosa não era apegada a nenhum dos pais. Ainda Elzbieta, em passagens fundamentais:
‘As preocupações deles – os filhos, a casa, a vida cotidiana –, suas preferências pequeno-burguesas e seu judaísmo transparente embaraçavam-na (…). Se, quando adulta, Rosa Luxemburgo desdenhou de seu meio, foi porque, já como adolescente, tivera dificuldades com ele. Cresceu acostumada com as implicações do anti-semitismo, mas não com a noção de que este lhe dizia respeito. Ela se acreditava polonesa, ainda que ninguém mais o fizesse (…) Torcia o nariz para os homens com peiot, barbas compridas e caftans longos (…) Queria, como os poloneses, que eles fossem embora. Quando outros a associavam a estes judeus, acreditava ser por ignorância ou maldade.’
Ao ligar-se a um círculo socialista clandestino, teve o prazer de escolher um grupo, o seu grupo, no qual todos a tratavam como igual. A partir daí, todo o passado de ligação com rudimentos judaicos (sempre externos) desaparece. Tal como Olga e Emma, envereda pela luta revolucionária e tudo o que pensou e criou sequer tangencia o judaísmo.
Surge, inevitável, a dúvida: o engajamento revolucionário dissolve a identidade judaica? Basta lembrar Isaac Deutscher para saber que não. Deutscher jamais esqueceu os anos no shtetl polonês onde cresceu e estudou a religião judaica. Rompeu mais tarde com ela, mas procurou formas alternativas de identidade judaica que, até hoje, permanecem vivas. Escreveu e proferiu palestras sobre temas judaicos, visitou Israel e posicionou-se sobre o sionismo. Harmonizou, com sensibilidade, marxismo e judaísmo.
Em alguns lugares da Itália, celebrou-se durante muito tempo um dia que comemorava o estabelecimento de guetos [Roth, Cecil: Pequena história do povo judeu, Fundação Fritz Pinkuss, 1964, São Paulo]. Este aparente paradoxo se explicava pela garantia que as muralhas davam aos judeus para preservarem suas tradições. Não havia chance de ceder às tentações dos goim.
O novo, o diferente, que estava do outro lado do muro, ficava na mesma categoria do ameaçador. No Brasil, não há guetos. Temos ampla liberdade de opção existencial, política, religiosa. Esta é, por definição, uma via de mão dupla: somos livres para entrar, mas também para sair. Se valorizamos isso, precisamos respeitar as escolhas de Olga, Emma e Rosa, que trilharam caminhos fora do judaísmo. Isso não as diminui. O que desmerece sua memória é forçar identidades apenas pela via do DNA ou da torpeza anti-semita.
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Diretor da ASA – Associação Scholem Aleichem de Cultura e Recreação, do Rio de Janeiro