Quando concluía o curso de administração de empresas, o carioca André Garcia já tinha uma atuação de nove anos no mundo corporativo. Cansado daquele ambiente que ainda hoje define como “de muitas hierarquias e vaidades”, onde havia pouco espaço para criar e muito para a burocracia, imaginou que se sentiria mais feliz numa carreira acadêmica. Escolheu mestrado em psicologia social e trocou sua cidade, Rio de Janeiro, por São Paulo.
Entre estudar a bibliografia e preparar o anteprojeto, precisou encontrar dezenas de livros. Foi quando começou a frequentar sebos. No centro do Rio, ia de um em um, atrás do que procurava, nem sempre com sucesso. Da dificuldade de encontrar o que queria surgiu o estalo: por que não montar um site para reunilos? Autodidata em tecnologia, “um micreiro safo”, como diz, gastou um ano e um mês para erguer seu projeto.
Um mês foi para aprender, com a ajuda de um livro, a fazer programação. “Passei de Freud para [a linguagem de programação] Java Script. Quem entende [o filósofo Gilles] Deleuze programa em qualquer linguagem”, diz Garcia, entre risos. No ano seguinte, dedicouse a entender como funcionam os sebos, entrar em contato com estabelecimentos de todo o país e convencer um número inicial a aderir à empreitada. Nascia, em outubro de 2005, o Estante Virtual. De quase acadêmico, Garcia se tornava empreendedor.
Interrompido o mestrado, contou com um investimento inicial de R$ 10 mil o que precisou para se manter nesse ano e um mês e trabalhava no quarto de serviço da casa de um avô. Para Garcia, um dos segredos para o sucesso é que, enquanto desenvolvia o projeto, não comentou com ninguém o que faria até lançálo. “Quando você tem uma ideia nova, você certamente vai quebrar alguma premissa. Se sair contando, a chance de ser desencorajado é grande.” Na estreia, 12 sebos faziam parte do projeto. Em dois meses, pouco mais de 30. “Crescemos exponencialmente”, diz. Em 2006, quando foram “descobertos pela imprensa”, chegou a reunir mais de cem sebos, em sua maioria aqueles que “estavam esperando por um serviço como esse havia tempo”. Entre o terceiro e o quarto ano de atividade, vieram “aqueles que diziam que jamais teriam computador na loja”.
O negócio avançou. Seu “marketplace de nicho” revelou-se um serviço novo, “sem similar no país”. Passada uma década, constituise hoje no maior acervo em língua portuguesa do mundo, um empreendimento que, mais que um comércio, acaba por interferir culturalmente no mercado literário: não só aumenta a longevidade dos chamados livros de “fundo de catálogo”, como deixa à disposição do leitor títulos que, mesmo novos, não podem mais ser encontrados nas livrarias, tomadas por poucos best-sellers.
Disciplina marcante
O Estante Virtual reúne 1,3 mil sebos de 339 cidades brasileiras, somando 12 milhões de títulos. Por dia, são vendidos 8 mil livros, com preço médio 52% abaixo dos praticados nas livrarias convencionais no caso de livros universitários, a economia pode chegar a 84%. O faturamento, com comissões entre 8% e 12%, não é divulgado. Garcia garante que “está no azul desde os nove meses de idade”. Não há planos imediatos de venda de CDs ou DVDs.
“Até então sebo era visto como coisa de ‘nerd’. Há ainda um público que acha que é lugar de livro raro e esgotado. Essa é a menor parte do negócio. Não só há livro de segunda mão, como novo, que vem de ponta de estoque de editoras ou até venda normal. Tem de tudo, e mais barato.” A decisão de incluir volumes novos não partiu do Estante Virtual, mas dos próprios sebos, que passaram a têlos no acervo à medida que as livrarias foram restringindo o que oferecem ao cliente.
A equipe foi crescendo ao mesmo tempo em que os sebos aderiam. Para colocar o site no ar, contou com os serviços de um designer que aceitou trabalhar para receber apenas quando saísse o site. Dois amigos, de suas casas, o ajudaram no atendimento. Antes de completar dois anos de funcionamento, abriu o escritório físico. A primeira área a crescer foi a de atendimento; depois, a de tecnologia, que por quatro anos foi conduzida pelo próprio Garcia. Cinco gerentes estão hoje à frente de mais de 40 funcionários. Ocupam um escritório em Laranjeiras, no Rio. “O ‘teletrabalho’ é um grande mito. Nada pode dar mais certo que ter as pessoas próximas, tendo ideias em conjunto”, diz.
Dois funcionários passaram a ter participação, mas hoje Garcia está só. “Tivemos visões diferentes sobre como prosseguir. Eles acreditavam que nosso cliente era só o comprador, e o sebo era parceiro estratégico. Para mim estava claro que os sebos também são clientes.” Por isso, em novembro de 2013 ele fez uma viagem por dez cidades, para visitar mais de cem sebos. “Já tínhamos oito anos e fazia muito tempo que eu não visitava os sebos. Ouvi deles que precisávamos desenvolver várias ferramentas. Havia uma demanda reprimida de serviços para o vendedor.”
As mudanças, uma parte já implantada e outra a estrear em breve, incluem cadastro mais ágil, nova busca e logística, ampliação das formas de pagamento e da área de atendimento, inteligência na “precificação” por exemplo, o vendedor saberá por quanto o livro foi vendido e quanto custa no mercado, antes de decidir quanto cobrar , análise de visitas feitas e compras não concluídas para que o vendedor entenda por que deixou de realizar a transação. O principal investimento foi em tecnologia (R$ 4 milhões no ano passado). Agora, recursos e esforços vão para o marketing.
Uma pequena cisão se deu quando aumentou a comissão, antes de 6%, para uma faixa entre 8% e 12%, conforme o patamar de venda. Houve reclamação de sebos, e alguns saíram da Estante Virtual, não mais que dez, segundo conta. “Ficou mais caro, mas a gente vende mais agora.” Os motivos são para comemorar, apesar desse percalço recente. No último ano, o Estante Virtual teve um crescimento de 30%. No mês passado, comemorava recorde de vendas: 13 mil livros vendidos num dia, o que representa o volume de dois sebos médios.
Tal desempenho não reflete, no entanto, o mercado editorial. “Estamos roubando ‘market share’. Infelizmente acho que a leitura está em perigo, não só por causa de novas formas de entretenimento, mas também porque a escola ainda não consegue incentivar a leitura, continua a funcionar como no meu tempo, em que biblioteca era local de castigo.” Por razões socioeconômicas, o país também nunca lhe pareceu assim tão apto a aceitar o livro digital. “Sempre achei esquisito afirmar que seria uma revolução. Essa tecnologia também ainda está muito aquém de um livro físico.”
A essa altura, seu pai, que via com hesitação sua decisão de seguir a carreira acadêmica, exulta com o feito. Lançar o site não era uma decisão tão díspar da trajetória na universidade. Nos dois casos, não queria ter chefe; tratavase de um “projeto de emancipação”.
Livros e empreendedorismo costumam combinar com a família. O avô paterno foi dono de uma banca de livros e revistas importados entre 1947 e 1976, no centro do Rio. Garcia não viveu esse tempo, já que nasceu em 1978, mas conviveu com livros desde criança, pois a mãe é professora de língua portuguesa e literatura. O hábito não se aperfeiçoou na escola, onde a leitura era compulsória. Só se tornou leitor aos 18 anos. O lado empreendedor vem do pai, engenheiro com carreira de liderança.
Quando foi fazer o vestibular, hesitou entre administração e informática, duas carreiras para as quais tinha aptidão e interesse segundo os testes vocacionais. Optou pela primeira. Assim que entrou na faculdade, começou a trabalhar. Em nove anos, passou por várias empresas e funções, de banco de investimento a empresas de gás e telecomunicações. Não alcançou a gerência, mas um posto de analista sênior. Ele concluía o curso universitário quando fez uma disciplina que lhe marcou: Sofrimento no Trabalho, ministrada por Eduardo Rosenthal, que lhe apresentou ao pensamento filosófico.
Para o futuro
Vestido de jeans e camiseta, num visual despojado bem distante do perfil de executivo, Garcia implantou um expediente de outro padrão, das 13h às 19h. Pela manhã, vai à praia nadar. Depois segue até o escritório de bicicleta. Deixou de ter carro faz tempo. Seu hobby é a música e sabe tocar seis instrumentos, de violão a pífano. Quando pode emendar os feriados, vai até o sul da Bahia, onde comprou uma casa numa vila de pescadores. Lê um livro por mês, em geral escolhidos entre autores contemporâneos brasileiros. Diz que o ócio é fundamental para criar.
Garcia completa 37 anos em maio, mas já pensa em sucessão. Está à procura de um sócio que possa assumir sua função, diretorexecutivo, deixandoo com tempo livre para “olhar de fora, para o futuro”. “Busco não um investidor, mas alguém com experiência de mercado, vindo da alta gestão na área digital, que contribua com inteligência.” Diz que um dos seus planos é desenvolver sua reflexão sobre o ócio, o tempo liberado e o significado novo no trabalho. “Esse tema me inquieta.” Com a sucessão, vai poder enfim fazer o tal mestrado.
>> Site: www.estantevirtual.com.br
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Joselia Aguiar, para o Valor Econômico