Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Mulheres: virtuosas ou perigosas?

Era fácil escolher entre ser virtuosa ou perigosa para cada uma das 7 mil mulheres do povo que marcharam 14 quilômetros de Paris a Versailles para protestar pela falta de pão e dos seus direitos.

Perigosas, elas puxavam os canhões, empunhavam armas e tricotavam nos tribunais como pretexto para ouvir os testemunhos e denunciar fingidores ou traidores. Prenderam o rei Luis 16 e o obrigaram a governar de Paris e não do Palácio de Versailles onde sua mulher Maria Antonieta vivia de futilidades caríssimas, alheia à falta de alimentos no país. Essas mulheres, a maioria analfabeta – peixeiras, costureiras, lavadeiras, feirantes – fizeram história e inspiraram as gerações que hoje desfrutam igualdade e liberdade.

Elas são o foco do livro de Tânia Machado Morin, Virtuosas e Perigosas – As Mulheres na Revolução Francesa(Alameda), que acaba de ser lançado em São Paulo e dia 9 de abril terá noite de autógrafos no Rio, na Livraria Argumento. O objetivo foi tirar da obscuridade as francesas pioneiras da luta pelo divórcio e pela igualdade de direitos na Constituição. E para provar que o mundo era muito mais masculino antes de 1789. Os homens ficaram tão ameaçados diante da força feminina que extinguiram os 60 clubes políticos femininos quatro anos depois da Revolução, em 1793, e em 1795 proibiram reuniões de mais de cinco mulheres em qualquer lugar do país.

 

Elas em todas

Elas ameaçaram de verdade. Os homens queriam as virtuosas inspiradas nas matronas nobres das estátuas romanas ou nas madonas da arte renascentista, santificadas, amamentando seus filhos. As militantes politizadas perigosas eram um problema que logo ganhou figuração na iconografia da época. Para minimizar o que não sabiam como combater, elas eram denunciadas como “prostitutas”, “fúrias do inferno”, e representadas nas caricaturas como diabas furiosas, loucas desembestadas, gralhas faladeiras e raivosas, amantes da carnificina, bacantes devassas.

Tudo porque queriam a queda da aristocracia nos cargos públicos e na chefia dos exércitos, o tabelamento dos preços de produtos de primeira necessidade como o pão, e ter lugar de igual para igual no território masculino. Por exemplo, o direito de falar em público, que lhes era negado.

Tinham o apoio dos sans-culottes, os artesãos ou pequenos comerciantes de rua, assalariados que usavam calças rústicas no lugar dos calções de seda até os joelhos completados pelas meias que vestiam os nobres e a burguesa endinheirada. A elas se juntavam mulheres polidas e educadas como Pauline Léon e Claire Lacombe, fundadoras da Sociedade das Cidadãs Republicanas Revolucionárias, extinta logo depois mas recriada nos mesmos moldes, em 1848.

A escavação na história feita pela carioca e mestre em História pela USP Tânia Machado Morin é fundamental para situar as verdadeiras revolucionárias ocultas por trás de personagens como Robespierre, Danton, Marat, os símbolos de 1789. E identificar com gráficos, 43 imagens colhidas na Biblioteca de Paris e no Museu Carnavalet, as heroínas de uma revolução que, para muitas, acabou em sangue, encarceramento, exílio e decapitação.

A filha de um açougueiro de Languedoc, Olympe de Gouges, foi de longe a mais “perigosa”. Panfletária, condenou a escravidão nas colônias, propôs o casamento dos padres e publicou a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã logo depois da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Ameaçou tanto que – como o rei e Maria Antonieta – foi guilhotinada quatro anos depois da revolução, em 1793. Pauline Léon e Claire Lacombe foram encarceradas. Outra “perigosa subversiva”, Theroigne de Méricourt, foi internada no hospício onde acabou realmente louca décadas depois, até morrer no pavilhão de dementes da prisão de La Salpêtrière. A “suspeitíssima” holandesa Etta Palm d’Aelders foi expulsa da França em 1792.

Mesmo sabendo dos perigos que corriam, elas reivindicavam “é de armas que precisamos… não vamos nos deixar degolar feito cordeiros”. Conseguiram em 1792 uma lei de divórcio liberal porque permitia a separação por consentimento mútuo do casal, já que o casamento tornou-se um contrato laico. E viveram um período precioso de liberdade de imprensa em que surgiram milhares de jornais como o Père Duschesnee o L’Ami de la Patrie. Comoo cronista da vida parisiense Mercier registrou, ao fundo de todas as ruas havia uma gráfica imprimindo algum jornal. “Os jornalistas escreviam febrilmente nos sótãos das casas”, constatou, e as mulheres estavam infiltradas em todas as manifestações, vendendo os jornais.

 

“Línguas de comadres”

O Código Civil de Napoleão, em 1804, detonou a lei do divórcio de 1792, que passou a ser um contrato religioso e bem restrito, limitando novamente a vontade das mulheres. Com a restauração da monarquia, em 1816, acabou a liberdade, o divórcio foi abolido e só voltou a ser tão liberal como em 1792 em 1975, quase 200 anos depois. Mas para se ter ideia da opressão das mulheres nos casamentos, entre 1792 e 1804 apenas em Lyon foram registrados 87 divórcios, número que de 1805 a 1816 despencou para 7.

Essas mulheres eram guerreiras, soldadas que muitas vezes se vestiam de homens para driblar a censura. Queriam liberdade, igualdade, fraternidade para todos – e todas. O fim do casamento forçado e do convento para a filha “leviana”

“Os homens tomaram a Bastilha, as mulheres tomaram o Rei”, reconheceu o historiador Jules Michelet. Elas queriam derrubar a imagem, associada ao sexo feminino, de dissimulação, futilidade, alienação, vaidade, docilidade inútil, figura decorativa, debilidade física e mental. Não esperavam acontecer, faziam petições, exigiam o direito à cidadania, ao voto e às armas, transmitiam princípios republicanos aos filhos, inventaram a maternidade cívica. Queriam a pátria como extensão da família.

Incendiárias, elas foram demonizadas, taxadas de “línguas de comadres”. O jornalista Pruhomme escreveu: “O gorjeio amável das mulheres se perdia quando atravessava a soleira da porta do lar e se transformava em carcarejo estéril”. E elas insistiam. Era viver livre ou morrer. Forram varridas do mapa até meados do século 19 e agora, com o imperdível livro de Tânia Machado Morin, primeiro sobre o tema em português do Brasil, se tornaram visíveis, palpáveis, invejáveis.

 

 

Elas no século 21

O Dia Internacional da Mulher foi reverenciado no Brasil com as matérias de capa “Os Novos 50 Anos – Tudo é Possível” (IstoÉ, 12/3), “O Segredo das Mulheres que Chegaram Lá” (Época, 10/3), “Focadas em Resultados – As Melhores Executivas” (Valor, 21/3) e uma série de publicações nas prateleiras principais das livrarias: Mentes Milionárias (Tereza Aubelo, Freeman, Reynolds), Desperte o Milionário que há em Você (Carlos Martins), Casais que Lucram (Deborah Price), O Segredo das Aposentações Poderosas (Roberto Shinyashik). Na Veja (5/3), a escritora americana Camille Paglia admite: as mulheres da sua geração deram com a cara na parede.

Autora de Personas Sexuais, Paglia contesta Betty Friedan que há meio século impulsionou o movimento de emancipação das mulheres. “Quando chegarmos aos 70, 80 anos, acredito que a felicidade não estará com as ricas e poderosas, mas com as mulheres de classe média que conseguiram produzir grandes famílias”.

“Não se nasce mulher, torna-se mulher”, pontificava um ídolo da geração dos anos 1960, Simone de Beauvoir. Ao ler as publicações direcionadas para as mulheres hoje é possível concordar com Camille Paglia. Deram com a cara na parede. No século 21 ainda estão aprendendo o tatibitati pelo sucesso de algumas lições básicas. O livro da chefe de operações do Facebook Sheryl Sandberg, Faça Acontecer (Companhia das Letras|) bombou porque ensinava mulheres a trabalhar e a ter vontade de liderar. O ótimo guia de independência financeira de Mara Luquet e Andrea Assef, Aposentada Ficava a Sua Avó, tenta ensinar em vão as meninas a serem menos teleguiadas e mais “iradas”, não irem ao shopping e sim à Bolsa de Valores, investir em vez de gastar.

ET de saias

Mas as revistas femininas já não sabem com que mulher estão falando. Noemi Jaffe comenta os artigos de apenas uma delas no suplemento “Eu&Fim de Semana” do Valor (28/2-4/3) . “Pós-progressiva: mantenha os cabelos lisos com os produtos certos.” “Confira sete dicas infalíveis para alcançar o sucesso.” “Como saber se ele este curtindo suas técnicas na cama.” “Copie o penteado de Jessica Alba.” “Como cortar gastos desnecessários ao sair de casa.” “Dicas para você amar o emprego que você já tem.” “Dez coisas que você não precisa contar ao se namorado.”

Noemi comenta: “A leitora dessa revista que propõe uma mulher ‘jovem, original e diferente’ deve ficar um pouco confusa. Ela deve ser bem sucedida (com sete dicas), ter técnicas sexuais infalíveis (mas secretas), não gastar muito quando sai de casa, ter o penteado de Jessica Alba e saber dez segredos para emagrecer”.

É intrigante o título do livro de Barbara Annis e John Gray (Editora Paralela),Homens e Mulheres Inteligentes, Colaborando e Vencendo.Maisintriganteos títulos dos capítulos: “Fazer o dobro para ser quase tão boa”, “Tente convencê-la a não se demitir”, “Eu não entendo qual era o objetivo dela”, “Ele se distrai tão facilmente”, “Eu não conseguia acalmá-la”…

Se o propósito é tirar proveito dos estereótipos, eles estão de sobra na mídia. A nova “Barbie” ucraniana está alheia ao barulho da anexação da Criméia à Rússia. Mas Valeria Lukyanova, 23 anos (abaixo), fez implante nos seios, usa toneladas de maquiagem, lentes de contato turquesa e malha um total de 90 minutos por dia. Alienígena? Lunática? ET clone de Barbie? Mulher. Mulher?

 

Livres e enganadas

Para muitos nostálgicos de Kim Novak em Vertigo (“Um Corpo Que Cai”, de Alfred Hitchcock, 1958) e em outras preciosidades de Otto Preminger e Billy Wilder, foi triste ver a atriz de 81 anos desfigurada na cerimônia do Oscar. Mumificada a golpes de bisturi e injeções de botox, ela queria voltar a ter 30 mas deixou de ser Kim Novak. Liza Minelli também assustou, mas não precisava ouvir a grosseria da apresentadora Ellen DeGeneris: “Seu médico fez uma cópia perfeita de você mesma”. A reforma etária, muitas vezes grotesca, está tão comum que diretores hollywoodianos têm dificuldade em achar mulheres na faixa dos 50 que parecem ter 50.

Dá até alegria ver os raros rostos de Diane Keaton, Merryl Streep. E, no Brasil, os de Gal Costa, Maria Bethânia ou Fernanda Montenegro, lindos. Como sempre foram.

As transfigurações para chamar o corpo de feminino são a resposta que uma leitora de Arnaldo Jabor deu no Dia Internacional da Mulher. “Antes éramos escravas passivas, hoje somos ativas mas continuamos escravas.” É só olhar as revistas masculinas, escreve Jabor. O que está acontecendo no Brasil é a libertação da mulher objeto, a publicidade é toda em cima do sexo. “Muita mulher que se sente livre é enganada. Na mídia só vemos estímulos para a mulher buscar o traseiro perfeito, próteses de silicone, anúncios de cerveja com louras burras, mulheres divididas entre a ‘piranhagem’ e a ‘peruice’.” E ele afirma no artigo que leva o título “O Que Querem as Mulheres?” (Estadão, 11/3): “O Dia Internacional das Mulheres devia estimular ação para condenar a civilização de machos boçais”.

Sem entender

Apreciar o movimento de mulheres nas ruas dá pena. Apertadas em calças coladas a um corpo que se esforça para enfiar carnes GG em tamanhos M ou P, mal equilibradas em sapatos de saltos impossíveis com bicos de bruxa sobre os quais nem coordenam os passos, elas formam uma legião feminina muito distante das idealizadas por Betty Friedman nos anos 1960. As que queimaram os sutiãs estão distantes mesmo das que eram atiradas às fogueiras medievais feito bruxas por exibirem sensualidade. Camille Paglia não perdoa: “Elas usam roupas sexy mas seu corpo está morto, sua mente está morta. Elas nem entendem o que estão vestindo”.

Perigosas? Virtuosas? Profissionais vestidas para o sucesso? Empreendedoras? Mães? Femininas? Masculinas? Estereótipos? Conquistadoras? Ambiciosas? Repetidoras dos padrões que as gerações anteriores abominavam nos homens bem sucedidos? Quais são as mulheres que admiramos hoje? O que pretendemos para nós no século 21? Onde foi que nos perdemos? (N.C.)

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Norma Couri é jornalista