Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Na teia do pensamento

A exemplo da resenha publicada neste Observatório em 18/11/2003 [remissão abaixo], por conta da publicação de O redemunho do horror: margens do Ocidente, aqui retorno à obra de Luiz Costa Lima, desta feita para tratar de uma reedição: Limites da voz: Montaigne, Schlegel, Kafka. Originariamente publicada em 1993 pela Editora Rocco, em dois volumes, a obra ressurge em volume mais alentado, sob o selo da Topbooks.


A sobreviência da memória autoral


Certas reedições merecem saudação tanto quanto bons lançamentos. A observação encontra justificativa ainda maior, dado o caráter fugidio que muito abastece, no imaginário brasileiro, o furor pelo efêmero, inspirando sempre a sensação de que o país nasceu no amanhecer do próprio dia presente. Assim, o modo de vida brasileiro é majoritariamente assinalado por irresistíveis apelos à novidade. Trata-se de uma compulsão ditada pelo fascínio diante da ‘coisa’ recém-chegada que bem forma parceria com o consumismo, uma das faces da cultura infantilizada. Não é de estranhar, portanto, que a contaminação se estenda ao chamado ‘mercado editorial’. É tamanha a profusão (ou banalização) de autores que, em breve, viveremos num país cujo número de autores se iguale ao de leitores.


É impressionante, pelas características da cultura brasileira, pouco afeita à leitura, o volume semanal de lançamentos de novos títulos enquanto, na contrapartida, é de estarrecer a carência de reedições de obras de efetiva importância que tanto servem à expansão da inteligência quanto à ampliação de massa crítica.


Se a presente percepção não contém equívoco, pelo menos, em nome da justiça, deve-se reconhecer que Luiz Costa Lima constitui um dos raros exemplos de autores cujas obras de inquestionável relevância têm merecido das editoras a auspiciosa sobrevida. Nos últimos cinco anos, Costa Lima tem sido contemplado seja pela regularidade de publicações novas, seja pela recuperação atualizada de vários de seus volumes disseminados ao longo das décadas.


Assim, a Paz e Terra, em 2000, promoveu o lançamento da 6ª edição de Teoria da cultura de massa [publicada em 1969] e, em 2002, a 2ª edição A literatura e o leitor (livro de 1979). Por sua vez, a Civilização Brasileira, em 2002, se ocupou da 3ª edição edição dos dois volumes de Teoria da literatura em suas fontes [organizada em 1975], bem como a Graal, em 2003, devolveu aos leitores, em 2ª edição, Mímesis e modernidade: formas das sombras[versão original em 1980]. É, pois, nesse quadro no qual se promove o reencontro com as dobras do tempo que se insere a reedição de Limites da voz.


As vozes do limite


Haroldo de Campos, outro valoroso nome da cultura brasileira, no texto ‘O lugar de Luiz Costa Lima‘, em rentável síntese, sobre a obra em questão se pronunciou:




‘(…) em sua fascinante obra de 1993, ‘Limites da voz’ (…) se enlaçam, proficuamente, crítica e teoria. Neste ambicioso trabalho, Costa Lima enfoca, por um lado a forma anti-sistemática do ‘ensaio’, em Montaigne; a forma do fragmento no teórico por excelência do romantismo alemão que foi Friedrich Schlegel, este visualizado pelo prisma kantiano do ‘juízo estético’ definido pela singularidade da experiência; por outro, (…), a escrita corrosiva de Kafka /…/’.


Procurando trilhar atalhos que não repitam o recorte preciso de Haroldo de Campos, porque, de resto, faltaria, além de outros aspectos, o brilho da originalidade, posso arriscar a seguinte avaliação: em Limites da voz, trocadilho à parte, Costa Lima elege as três vozes que integram o ‘coro’ da modernidade, seja para apontar a inauguração esperançosa que residiria no olhar ensaístico de Montaigne, seja para acentuar o esforço de Schlegel em fixar para a literatura uma identidade teórica, elevando o prestígio da escrita literária a seu ponto máximo. Por fim, a terceira voz a cargo daquele que, pelo olhar arguto de uma implacável ficção, anuncia a morte do sonho dourado da modernidade: Kafka. Deste modo, a inventividade crítico-teórica de Costa Lima consiste na percepção desses três momentos fundantes dos diferentes ritmos pelos quais passou o projeto do Ocidente. De intensa luminosidade ao mais obscuro e cerrado horizonte.


Deslizando reflexivamente sobre os discursos das três vozes, Costa Lima, no suporte do pensamento alinhavado por Kant na ‘Terceira Crítica’, já esboça o caminho que adiante renderia dois outros estudos, em torno do binômio que lhe percorre a obra total: o sentido da mímesis e a expressão da modernidade. Inegavelmente, quem faz a leitura atenta de Limites da voz bem percebe que ali se encontram as percepções que adiante receberiam apurada visibilidade, a saber: Vida e mímesis (Editora 34, 1995) e, de maneira mais definitiva em Mímesis: desafio ao pensamento (Civilização Brasileira, 2000).


Ousaria mesmo afirmar que, reunidas, as mencionadas publicações poderiam compor um pensar tríptico. Em síntese, Montaigne acena para a aurora do Novo Mundo; Kant promove, com radicalidade filosófica, a tentativa de criar um sistema que assegurasse o bem-caminhar do Ocidente; Schlegel aposta a edificação de uma ética da crítica, capaz de erigir o indivíduo à plena emancipação (nele obviamente pulsa a crença redentora de inspiração romântica), enquanto Kafka atesta a inevitabilidade das ruínas.


Sem dúvida, está correta a avaliação de Costa Lima ao inferir que o que Kant constrói com a Filosofia, Kafka desmonta com a Literatura. Enfim, trata-se de leitura para outras tantas conjecturas tão necessárias quanto emergentes, principalmente a quem tem como horizonte próximo os desatinos da vida brasileira.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha – Rio de Janeiro).