Testemunha de acontecimentos políticos importantes da história recente do Brasil, Ricardo Noblat pertence ao bloco de jornalistas que pode afirmar, do topo da experiência, ‘meninos, eu vi’. Não somente viu, como escreveu a respeito. No jornalismo desde os 18 anos, em São Paulo Noblat viu e viveu o famoso Congresso da UNE em Ibiúna; em Brasília, a ditadura em seus estertores, a eleição, a agonia e a morte de Tancredo Neves – o que quase lhe rendeu um furo de reportagem. Viu a ascensão e a queda de Fernando Collor de Mello, duramente criticado em sua coluna política do Jornal do Brasil – o que lhe custou o emprego.
Em Recife, onde nasceu, foi chefe de sucursais de grandes jornais, como o JB, e revistas, como a Manchete de Adolfo Bloch. Em sua experiência mais audaciosa à frente de um jornal diário, pôs de ponta-cabeça o Correio Braziliense, transformado de jornal chapa-branca em diário moderno e premiado.
À frente do Correio, protagonizou rumoroso embate com Joaquim Roriz, governador e candidato à reeleição no Distrito Federal, o que lhe valeu não somente perseguições e agressões, que atingiram também sua família, como uma vez mais o emprego.
Após a saída do Correio, Noblat esteve à frente do projeto editorial que modernizou A Tarde, de Salvador. Lá ficou um ano. Numa espécie de exílio do jornalismo, trabalhou três anos em Angola, em meio a uma das mais sangrentas guerras civis da história do continente africano. Em Luanda, com a equipe da Propeg, agência de publicidade brasileira, trabalhou no marketing político que ajudou a eleger o presidente José Eduardo dos Santos, opositor de Jonas Savimbi.
Ricardo Noblat conta esse e outros casos de sua tumultuada e rica carreira no livro recém-lançado O que é ser jornalista, da Editora Record. Está tudo ali. Dos primórdios no Recife, com as mil histórias familiares e profissionais por lá vividas, até a turbulenta experiência em Brasília. Uma jóia rara não somente para estudantes e pares, mas para o público em geral, que tem no relato de Noblat uma declaração de raro amor à profissão, contada com a concisão e a clareza de quem, curiosamente, encara o ato de escrever como um ‘martírio’.
Blogueiro, não fala dessa nova incursão jornalística no livro. Mas está aí o seu blog, um dos mais visitados do Brasil, para quem quiser acompanhá-lo em ação: http://noblat.blig.ig.com.br/. Na entrevista que se segue, concedida por e-mail, Noblat fala do novo livro e da profissão e manda um recado ao jovem jornalista, válido também para veteranos: ‘Não perca a fé’.
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Você começa e termina o livro narrando o episódio da sua saída do Correio Braziliense. Foi a experiência mais marcante da sua carreira?
Ricardo Noblat – Foi uma delas. Talvez, de fato, tenha sido a mais marcante. Porque foi a mais ambiciosa e a mais longa. Nunca tinha dirigido antes a redação de um grande jornal.
Como você observou a divulgação das fotos que supostamente seriam de Vladimir Herzog? O Correio foi com muita sede à fonte?
R. N. – O Correio cometeu um grave erro, infelizmente corriqueiro na vida de todos os jornais e da mídia em geral: acreditar no que queria acreditar. A história das fotos lhe pareceu tão boa – e era boa – que ele embarcou nela sem antes investigá-la com rigor. O mínimo de rigor teria abortado o erro.
Você chegou ao Correio sem um projeto definido e encontrou o caminho caminhando. O que você acrescentaria hoje àquela experiência, e o que você não faria de novo?
R. N. – Acrescentaria todas as lições que aprendi com aquela experiência. Uma delas: que é preciso trabalhar com apoio de mais pesquisas. O gosto do leitor tem que ser investigado a fundo e permanentemente. Os jornais devem se abrir mais e mais à participação direta do leitor no seu processo de elaboração diária. Notícia de ontem é notícia velha – e a maioria deve ceder espaço à publicação de histórias inéditas. Ousar criar e experimentar para se distinguir da concorrência. Não temer o erro.
Hoje, muitos jornalistas ensinam em universidades. Essa possibilidade nunca o atraiu?
R. N. – Claro que me atrai, e sempre me atraiu. Apenas nunca fui convidado.
No livro lemos que, para você, escrever é um martírio. A experiência atenuou ou acentuou essa dificuldade?
R. N. – Não atenuou. Escrever sempre me martirizou e sempre me martirizará. Não há escapatória.
A turma do new journalism injetou sangue novo nas técnicas narrativas da reportagem. Mas, nas últimas décadas, o gênero sumiu do mapa. O que pode ser feito para trazê-lo de volta?
R. N. – Abrir espaço para que ele se materialize. Investir tempo e recursos para isso. Tudo depende da mentalidade dos que comandam as redações. Falta de dinheiro é desculpa para a má qualidade do jornalismo. O pouco que se tem (e às vezes não é tão pouco assim) daria para produzir um jornalismo melhor.
Qual, ou quais, das reportagens mais famosas do século passado você gostaria de ter escrito?
R. N. – Aquela sobre a revolução russa, escrita por um jornalista norte-americano (Dez dias que abalaram o mundo, de John Reed). Aquela outra de um jornalista também norte-americano sobre os sobreviventes da bomba atômica lançada em Hiroxima (Hiroxima, de John Hersey). A que escreveu Joel Silveira sobre a sociedade paulista (1943: Eram assim os grã-finos em São Paulo). A entrevista que fez Samuel Wainer com Getúlio Vargas.
E quais personagens gostaria de ter entrevistado?
R. N. – A boa entrevista não depende tanto do entrevistador – mas do entrevistado. Qualquer dos grandes personagens do mundo pode render uma ótima entrevista – desde que queira. Gostaria de ter entrevistado Gabriel Garcia Márquez.
Suponha que você tem 20 anos e a sua experiência atual. Escolheria ser jornalista?
R. N. – Escolheria, sim. Mas teria mais cuidado.
E apostaria as fichas nos mesmos valores que o guiaram por esses anos todos?
R. N. – Pode parecer presunção dizer que sim. Mas não faria muita coisa diferente. Seria mais paciente, talvez. E, em vez de levar tanto tempo chefiando equipes, me dedicaria mais à reportagem.
Você teve uma infância rica em Recife, que o predispôs à profissão. Jornalismo tem que estar no DNA, ou esse é mais um mito?
R. N. – É uma questão de escolha – não é de DNA. Escrever é uma habilidade que se adquire – não se nasce com ela.
No livro você afirma que escreve por impulso histórico e político. Não há nem uma pontinha de narcisismo?
R. N. – Claro que há. Mas admiti-lo poderia acentuar meu narcisismo.
Numa passagem do livro, o leitor toma conhecimento de que Paulo Cabral, ex-presidente do Correio Braziliense, estava indo descansar numa propriedade de Armando Falcão, um dos arautos da censura à imprensa no país. Não é muito tênue a linha que separa o jornalismo do poder, especialmente em lugares como Brasília?
R. N. – É muito tênue em toda parte, especialmente numa cidade como Brasília. A tentação de se sentir poderoso por conviver de perto com o poder é o mais perigoso risco que corre todo jornalismo. A maioria sucumbe a ele.
Você teve a oportunidade de trabalhar em jornais e revistas. Qual desses meios mais o estimulou?
R. N. – O jornal diário. Por ser um desafio diário. É mais excitante.
Passando os olhos nas principais revistas semanais do país, qual você considera mais bem-sucedida do ponto de vista editorial? Por quê?
R. N. – A Veja, naturalmente. É imbatível no caminho que escolheu. É a mais bem produzida.
E quanto aos jornalões? Por quê?
R. N. – Acho que O Globo e o Estado de S. Paulo (depois da recente reforma editorial) são os melhores jornais – os mais abrangentes, os que ainda investem em reportagens. A reforma de O Estado envelheceu o projeto Folha de S. Paulo.
Em quais sites você costuma bater o ponto diariamente?
R. N. – Em mais de 30 deles – vivo pulando de um para o outro, alguns daqui, outros de fora.
Além de blogs.
Como você observou a ida do Prêmio Esso de Reportagem para o Já, um pequeno jornal do Sul?
R. N. – Acho que foi uma decisão corajosa e justa da Comissão Julgadora. O Esso sempre foi um concurso para premiar, basicamente, a mídia do eixo Rio-São Paulo. Tomara que isso mude.
Você acredita que a blogmania é uma onde forte o suficiente para interferir no jeito tradicional de se fazer jornalismo?
R. N. – De fazer jornalismo, não sei. De acabar com o monopólio da informação por parte da mídia tradicional, sem dúvida. De forçar a mídia a abordar assuntos que não abordaria normalmente, sem dúvida.
No livro você reafirma sua paixão pelo jornalismo, mesmo passados tantos anos. Essa é a fórmula do sucesso?
R. N. – Sem paixão não se faz nada que preste – em casa ou no trabalho. Não vejo muita paixão pelo jornalismo entre os jovens jornalistas – e isso é ruim, muito ruim.
Em Brasília, você foi testemunha de peripécias marcantes, e contraditórias, da história recente do país, inclusive a de ver um presidente de esquerda, Lula, seguir a via da direita. Conceitos como direita e esquerda não perdem um pouco a força no Brasil, em que as relações de amizade se sobrepõem a ideologias?
R. N. – Depende do que se entenda por direita e esquerda. Se é de direita quem não está nem aí para uma melhor distribuição de renda e para a participação cada vez maior do povo na definição dos rumos do país, e se é de esquerda quem pensa o inverso, digo que os conceitos ainda são válidos e ainda fazem sentido.
Se não tivesse sido jornalista, que profissão você teria seguido?
R. N. – Teria sido advogado.
Que palavras de estímulo você diria ao jovem que chega hoje ao mercado jornalístico?
R. N. – Não perca a fé. O jornalismo entre nós já foi pior. Mas só avançará mais se todos acreditarem que isso será possível. Eu acredito.
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Formando em Jornalismo pela Universidade Tiradentes (SE) e editor do Balaio de Notícias (www.sergipe.com/balaiodenoticias)