Já faz alguns meses que a cidade de Frankfurt sofre de intensiva infiltração brasileira. Em vários níveis e direções, cerca de quatrocentos eventos culturais, políticos, científicos, centrais e marginais prepararam a chegada do Brasil à Feira do Livro. E, mesmo com tanta preparação, tudo tem ainda uma cara de festa surpresa. Ninguém sabe no que vai dar.
Os discursos até agora tecidos pela imprensa dos dois países envolvidos são difusos, não chegam ao ponto e privilegiam conflitos burocráticos ou de organização. À exceção das publicações brilhantes, esses discursos são sintoma de uma impotência imaginativa que ultrapassa os limites do jornalismo.
Enquanto isso, a infiltração mina o subterrâneo. Ela é incômoda, escorregadia, frustra as expectativas do hospedeiro em relação ao hóspede e, por fim, abre espaço para algo novo. Talvez seja o caso de nos deixarmos também infiltrar. Caso contrário, corremos o risco de ficar parados, procurando indícios numa cartografia ultrapassada. Troquemos, então, a cartografia pela arqueologia ou por qualquer outro método que atice a percepção, o faro e a imaginação.
Entre hóspede e hospedeiro
Quem (ou o quê) é o Brasil que chega à Feira do Livro de Frankfurt? Uma imagem de país? Uma equipe de profissionais? Uma delegação de escolhidos? Um grupo de negociantes? Uma civilização? Uma abstração?
Difícil é aceitar que definição empobrece. O músico Criolo, um dos participantes da programação que antecedeu a Feira, numa entrevista à TV alertou contra esse vício: “Nós mesmos estamos tentando entender esse Brasil em que vivemos. Como mostrar algo que ainda não sorvemos?” Essa é a tônica de vários dos debates organizados durante todo o período da Feira (9 a 13 de outubro), um país que busca se compreender em meio ao próprio movimento, com suas incoerências, improvisos e temperamentos.
“Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?” A partir do trecho de Carlos Drummond de Andrade, José Miguel Wisnik – assinalado pela crítica alemã como um dos mais significativos ensaístas brasileiros – dispõe de todos os elementos para provocar e dar o que pensar ao público. Mais do que forjar uma identidade nacional baseada em ficções impostas de fora para dentro, importa ao país vivenciar a agudeza de seu cotidiano, o que não deixa de ser uma ficção, mas de outra natureza. É assim que o hóspede confunde o anfitrião.
Nessa festa, lembremos, a cultura come pelas bordas: o que está em jogo é o livro enquanto negócio, mercadoria não só material, mas também digital e simbólica. “Não é verdade que, de repente, todo mundo começou a se interessar pela literatura brasileira”, disse Luiz Ruffato em entrevista ao canal alemão 3Sat. “O que ocorreu é que, nos últimos anos, o país jogou sangue fresco na economia internacional e isso chamou a atenção para outros aspectos nossos.”
Capitalismo e mais alguns ismos
A presença brasileira na Feira de Frankfurt não é evento isolado nem autogerado. Acontece no contexto do “Ano Brasil+Alemanha”, um programa de cooperação política, econômica, científica, cultural, ambiental, educacional, esportiva e social. Praticamente ignorado pela imprensa brasileira, a iniciativa alemã é uma gigantesca manobra em busca de novas alianças.
Parece raciocínio conspiratório, mas não passa de macroeconomia. No lançamento do programa, em abril de 2013, o então ministro das Relações Exteriores, Guido Westerwelle, foi enfático: “O Brasil é um dos centros de poder de maior sucesso no mundo e, por isso, temos agora grande interesse em intensificar a cooperação com esse país em várias áreas”.
Algumas semanas depois (13/5/2013), a revista Wirtschaftswoche, especializada em economia, lançou uma edição especial bilíngue sobre o tema Brasil-Alemanha. O editorial foi mais do que explícito:
“Enquanto o domínio econômico dos EUA declina e oferece menos razão de preocupação, a dependência em relação à China cresce. /…/ Sem o boom chinês, a rápida recuperação da Alemanha após a crise de 2009 não teria sido possível. Poder econômico, entretanto, também significa domínio político. Sob a ótica da nova constelação global, é de interesse do Brasil e da Alemanha fortalecer a cooperação mútua. Porque uma coisa parece evidente: quanto mais trabalharmos juntos, menos estaremos sujeitos à arbitrariedade de terceiros – mesmo que sejam bem mais fortes.”
A Feira do Livro é apenas uma ação no contexto de um grande projeto. Mais do que corresponder a uma expectativa de parceria, o país convidado, em suas falas, leituras e exposições de arte, infiltra-se lentamente e atinge patamares não previstos. É nessas brechas que a vida acontece e os desconhecidos se devoram mutuamente. O resto é colonização.
Veja também
>> Ano Brasil+Alemanha, site oficial
>> Feira do Livro, site oficial
>> Entrevista de Luiz Ruffato ao canal 3Sat
>> Revista Wirtschaftswoche, edição especial sobre o Brasil
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Polêmica com Paulo Coelho desvia o público do essencial – D.N.O.
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Danielle Naves de Oliveira é jornalista, doutora em Ciências da Comunicação