[do release da editora]
Doze anos depois, a Editora Globo relança, em edição revista pelo autor, a mais completa biografia de Carlos Drummond de Andrade, intitulada Os sapatos de Orfeu, escrita pelo jornalista e professor José Maria Cançado.
Foram dois anos de pesquisa – que contou com o auxílio de uma Bolsa Vitae –, durante a qual o autor entrevistou cerca de cem pessoas e pesquisou extenso volume de jornais e revistas em busca dos rastros do poeta. Essa é a única biografia de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e sua consulta é incontornável para aqueles que querem se aproximar um pouco da figura tão singular e impalpável do homem e do poeta. A edição traz, também, prefácio do poeta Armando Freitas Filho e um índice remissivo que muito facilitará o acesso ao texto. A primeira edição da obra foi lançada em 1993 pela editora Scritta.
Um dos grandes méritos da obra é buscar reconstituir, como esclarece o próprio autor na nota introdutória, por meio do mapeamento biográfico de um dos maiores artistas brasileiros do século passado, a socialização de uma época e de uma cultura, observando como um indivíduo é capaz de transbordar do círculo e do universo de uma cultura e pronunciar a palavra que ninguém pronunciou. Sendo biografia, ela é também, necessariamente, heterobiografia, iluminando não apenas a trajetória de Drummond, como também a de muitos companheiros de sua geração e das que se seguiram. Deve-se realçar, ainda, que o leitor não está diante de um texto acadêmico com seu típico aparato de erudição. Muito pelo contrário, e nisso reside outro dos grandes valores do livro, a escrita fluente de Cançado é extremamente sedutora e bem construída.
Trata-se de relato repleto de artifícios da prosa, no sentido de que as informações, os dados e as situações passaram por uma organização narrativa que, contudo, não o desloca, em momento algum, para o registro ficcional. Isso se evidencia, inclusive, nos títulos dados aos capítulos, criativos e fortemente metafóricos.
Ambigüidades políticas
Cançado dividiu seu relato em três grandes partes. A primeira cobre o período de 1886 a 1930, percorrendo os anos de formação do poeta. A segunda, de 1930 a 1950, reconstitui as relações profissionais e políticas de Drummond paralelamente à publicação de seus primeiros livros. A terceira se estende de 1950 a 1987, ano em que o poeta morreu, privilegiando o trabalho da memória em sua obra poética.
Foram diversas as estratégias que o biógrafo adotou para capturar a biografia de um homem que sempre fez questão de manter indevassável sua intimidade. Cançado pinçou dos próprios poemas os motes possíveis para o descortino de uma vida, sem cair em qualquer reducionismo que tornasse a biografia do poeta uma decorrência necessária de seus textos, ou vice-versa.
Trata-se de empreedimento difícil e arriscado, no qual o autor se saiu muito bem, evitando explicações simplistas e mantendo a natureza enigmática sempre irredutível da vida e da obra de qualquer homem. Ressalte-se, ainda, a reconstrução cuidadosa da vida afetiva e sexual de Drummond, aspecto que é nevrálgico em toda a sua existência, sem qualquer traço de sensacionalismo gratuito. E, por fim, as ambigüidades políticas de Drummond e de seu tempo, tanto em seus envolvimentos com o Partido Comunista nos anos de 1940 quanto com a vida literária do país.
A crítica
‘Se a Orfeu se concederam sapatos, a seu biógrafo não tocaram senão franciscanas sandálias: é a partir de um material bastante pobre que José Maria Cançado logrou erigir este belo relato sobre a vida de Carlos Drummond de Andrade (…) Seu texto, respeitoso mas nunca apologético, dá conta de muitos impasses que atravancaram os sapatos de Orfeu, mas não a ponto de impedi-los de alargar os limites da poesia brasileira deste século.’ (Antonio Carlos Secchin, Jornal do Brasil)
‘Em Os sapatos de Orfeu, Cançado preocupou-se, antes de tudo, em escapar das armadilhas que – apesar de primárias – grassam no gênero biográfico. Primeiro, evitou fazer da reconstrução da vida de Drummond o pólo único, a chave-mestra da explicação da obra. Segundo, passou longe da tradição que narra os episódios de uma vida, o tempo, a história como uma articulação dotada de um sentido pleno, moldada como se um telos qualquer a dirigisse e que tende, numa imagem caricatural, a ver em acontecimentos gratuitos ou irrelevantes os germes de uma trajetória futura que só poderia se concretizar de forma como veio a ser de fato, como destino.’ (Ricardo Musse, O Estado de S.Paulo)
Sobre o autor
O mineiro José Maria Cançado é jornalista e professor da PUC-MG. Defendeu tese doutoral na área de literatura brasileira na mesma universidade sobre a obra de ficção de Pedro Nava. É autor de diversos livros, dentre os quais destacam-se Marcel Proust: as intermitências do coração, Um colégio nos trópicos e Memórias videntes do Brasil: a obra de Pedro Nava. Participou da seleção e organização dos volumes 50 poemas pré-60: a experiência do século e 50 poemas anos 60: política & vanguarda. Foi editor do jornal Leia Livros. No campo da criação literária, publicou o volume de poemas O transplante é um baião-de-dois (Scriptum, 2005).
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CDA versus Zé Maria
[Prefácio de Os sapatos de Orfeu. Biografia de Carlos Drummond de Andrade, de José Maria Cançado, 368 pp., Editora Globo, São Paulo, 2006]
Escrevo esta nota sentado à mesa de verão e de férias, num balneário. Mesa que, até por ser única, agüenta de tudo um pouco.
O texto, portanto, sofrerá a influência deste suporte: será leve e passageiro, visando pescar o leitor, rapidamente, para a segunda edição do livro pioneiro, que só mesmo um mineiro cordial, no sentido etimológico da palavra, poderia ter escrito, e que vem a ser a biografia de Carlos Drummond de Andrade.
Publicado pela primeira vez há mais de dez anos, Os sapatos de Orfeu palmilha a estrada pedregosa de uma vida, de um homem que procurou sempre apagar as pegadas ou, pelo menos, manter sob controle seus vestígios. Por essa razão, o diário de muitos cadernos, de muitos anos, se viu reduzido a um volume magro, O observador no escritório. A tarefa do autor desta biografia, por tudo isso, foi difícil.
Pude até, de corpo presente, testemunhar uma das dificuldades. Zé Maria me pediu que o ajudasse a marcar entrevista com João Cabral de Melo Neto, não apenas por sua importância óbvia, mas também por ele ter tido, coisa rara, durante certo período, grande intimidade com Carlos Drummond, que foi seu confidente e padrinho de casamento.
Telefonei para João, disse do que se tratava, e ele concordou. Cançado tomou o avião em Belo Horizonte e veio para o Rio, somente para esse fim. Ao chegar, topou com o pedido de João Cabral: que eu estivesse presente. Zé, com paciência que não costuma ter, quis dar um telefonema, a fim de me convocar; para sua surpresa o telefone estava, sabe-se lá por quê, sob cadeado, e o dono da casa não tinha a chave. Zé, nessa altura, zen como nunca foi, desceu à rua e me chamou de um orelhão. Nas duas horas que passamos conversando, João foi lacônico e distanciado, não acrescentando nada de novo ao de há muito sabido ou suposto, no meio literário, da relação entre ele e o biografado, que vazou, aliás, por outras fontes.
A anedota é curiosa e ilustrativa, pois demonstra a gama de obstáculos, objetivos e subjetivos, que o autor enfrentou durante a feitura do livro, de origem problemática, já que lida com um verdadeiro apartheid irredutível: o fato de a existência de Carlos ter sido miúda, funcionária, vivida na sombra, em contraste com a de Drummond, poeta tremendo, monstruoso, de alto coturno.
Para relatar esse descompasso numa pessoa que, como bem diz Zé Maria, ‘era como que seu próprio contraditório’ (não só no cotidiano, como também na insuperável poesia, acrescento eu), não se deve, não se pode ter nenhum distanciamento, nenhuma alteridade acadêmica, nem nenhuma cerimônia: a escrita deve ser misturada, opinativa (mesmo que tenha de arriscar ou forçar a barra, às vezes), engalfinhada com o objeto, com ‘o ser entre experimental e mitológico’, ‘atirando para a frente’, mas com muitos espelhos retrovisores. Só assim, no corpo-a-corpo, na marcação homem a homem, se poderá evitar o drible, a esquivança, contornar a aparente falta de eventos, para apreender no paradoxo dessa personalidade, ao mesmo tempo secreta e pública, mercurial e complexa – verdadeira esfinge de óculos –, sem ‘estar no mundo’, e capturar, entre tentativas, se não o segredo, algo da sua presença formidável, cada vez mais viva, que nos ameaça, desafia e acompanha.
(*) Poeta