Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Nova versão de uma história não contada

Já se encontra disponível nas boas casas do ramo o livro A ditadura encurralada, quarto volume da série de cinco de Elio Gaspari sobre a ditadura militar, desta vez abrangendo o período de 1974 até o final do governo Geisel. Este é o segundo volume do tomo O sacerdote e o feiticeiro. Os dois primeiros volumes formaram o tomo As ilusões armadas.

O livro foi aguardado com ansiedade por tratar do período entre as eleições de 1974 e a queda do então ministro do Exército, general Sylvio Frota, em 12 de outubro de 1977. A obra é de leitura fascinante, como um thriller.

No dia 2 de janeiro de 1975, os censores saem do jornal O Estado de S.Paulo. Em 13 de janeiro, a repressão localiza uma bem montada gráfica clandestina do Partido Comunista Brasileiro, debaixo de uma caixa d’água num sítio em que funcionava desde 1966. No dia 14, Élson Costa, responsável pela gráfica, é preso e desaparece. No dia 18, Marco Antônio Coelho, à época o mais ativo dirigente do partido, é detido quando ia entregar o editorial da edição seguinte do jornal Voz Operária, editado na gráfica. No fim de semana seguinte, a cúpula do PCB iria reunir-se numa casa no Méier, no Rio. Quando Giocondo Dias, principal líder do partido em território brasileiro (Prestes estava em Moscou), percebe a ausência de Coelho, dispersa a reunião e some. Permanece numa casa a qual só quem o abrigou sabia onde ficava. Pouco depois, sai clandestinamente do país, num esquema em que a maior dificuldade do partido foi localizá-lo.

Desaparecidos políticos

Nesses mesmos dias, reunia-se o Alto Comando das Forças Armadas, presidido pelo general-presidente Ernesto Geisel. Na semana seguinte, o governo via-se diante de um problema. O MDB vencera as eleições de 15 de novembro do ano anterior. Não conseguira maioria nem no Senado nem na Câmara, mas nesta conquistou mais de um terço das cadeiras, o suficiente para obter as assinaturas necessárias para requerer uma Comissão Parlamentar de Inquérito. E a primeira CPI solicitada pela oposição pedia esclarecimentos sobre 22 pessoas dadas como ‘desaparecidas’. O governo Geisel já era cobrado a prestar contas.

Elio Gaspari conta a história do período com a verve e com a fluência agradável e irônica que personalizam seu texto. Mas há uma aparente novidade. Há indícios e evidências de que neste volume, muito mais do que nos três anteriores, o autor usou e abusou da sigla APGCS/HF (Arquivo Pessoal Golbery do Couto e Silva e Heitor Ferreira).

Este arquivo é a base sobre a qual Gaspari faz toda a obra. Mas, neste volume, ele pareceu mais desatento no confronto dos dados de arquivo com outros documentos e registros da história do período. É preciso fazer as contas.

Como decorrência, fatos importantes passam despercebidos ou com dimensão menor. Outros, importantes, deixam de ser relatados, porque o Feiticeiro (Golbery) não rabiscou anotações ou Heitor Ferreira deixou de anotar no seu diário pessoal. Aí, Gaspari engasga-se.

Mais ainda do que as anteriores, esta obra vende a versão oficial da dupla Geisel-Golbery. Não é à toa. O argumento básico do autor é que a dupla acabou com a ditadura. E nos anos cruciais relatados neste volume foi quando ocorreu desmonte do ‘porão’ e a desarticulação da ‘linha dura’. O ‘porão’ e a ‘linha dura’ continuaram e seguiram em frente no decorrer dos seis anos de governo Figueiredo.

Enfim, este quarto volume também se encerra como um thriller, embora tenha parecido menos emocionante para este leitor. Afinal, o governo chegara ao impasse: ou Geisel e seus aliados se livravam do ministro do Exército Sylvio Frota ou este derrotava Geisel e se impunha como seu sucessor, mesmo que ao preço de um golpe de Estado. Como sabemos, Geisel demitiu Frota, que tentou resistir por dez horas e se recolheu. De todo modo, o final, não chega ter o frisson do capítulo inicial.

Mas o livro todo é de leitura boa e agradável.

A Folha se renova

O volume começa auspicioso. Abrindo o thriller e o livro vem o relato da saída dos censores do Estado de S. Paulo, em 2 de janeiro de 1975, dia seguinte àquele em que o jornal comemorava o seu centenário. O autor viu no episódio um passo no processo de distensão. Viu o prenúncio ‘da abolição gradual da censura’ à imprensa. Veja, Opinião, O Pasquim e Tribuna da Imprensa continuavam tendo que mandar seus textos com antecedência aos censores. A imprensa obediente continuava a receber os bilhetinhos com as proibições. Mas era um passo, claro. Arbitrário, sem dúvida.

O líder comunista Marco Antônio Coelho tinha vida clandestina intensa. Era ele quem falava em nome do PCB nas articulações e acordos políticos. Um dos contatos de Coelho era o jornalista Cláudio Abramo. Nos anos que precederam sua prisão, Abramo tornou-se um interlocutor freqüente de Coelho. Para Abramo, contar com uma fonte tão boa era fundamental. Para Coelho, relacionar-se com um jornalista inteligente, de esquerda e bem informado, era de extrema utilidade. Tornaram-se amigos. Até seus filhos chegaram a conviver naquela época.

No seu depoimento ao CPDOC da Fundação Getúlio Vargas [Eles mudaram a imprensa, de Alzira Alves de Abreu, Fernando Lattman-Weltman e Dora Rocha (orgs.), 397pp., FGV Editora, Rio de Janeiro, 2003], Otavio Frias Filho conta que, por ter esquecido a carteira de identidade, não pôde embarcar para o encontro que seu pai, Octávio Frias de Oliveira, teria no Rio de Janeiro com Golbery do Couto e Silva, ainda antes da posse do novo governo. A conversa foi boa. Em seu relato publicado no livro do CPDOC, Frias Filho diz que, na ocasião, Golbery apresentou o projeto de distensão e anunciou que com a posse de Geisel viria a gradativa liberalização da imprensa. Octávio Frias de Oliveira ouviu do Feiticeiro que ao novo governo não interessava que São Paulo tivesse um único jornal de referência. Em outras palavras: ao novo governo interessava que o jornal O Estado de S. Paulo, da família Mesquita, tivesse um concorrente.

Cláudio Abramo já trabalhava no Grupo Folha desde 1967. Em 1974, recebeu o sinal verde de Octávio Frias de Oliveira para tocar a reforma da Folha. Mesmo tendo Golbery como personagem central do episódio, Gaspari simplesmente ignora o fato no seu livro. Heitor Ferreira teria deixado de anotá-lo em seu caderno?

Pouco depois da prisão de Marco Antônio Coelho, Abramo também é preso pelo DOI-Codi. No decorrer de 1975, seria novamente preso duas ou três vezes. Como até hoje nenhum historiador e nenhum jornalista estudou tais acontecimentos, é factível inferir que as prisões podiam relacionar-se. Aliás, Marco Antônio soube depois de preso que vinha sendo seguido há muito tempo pelos agentes da repressão.

De todo modo, Gaspari ignora solenemente em seu livro as informações que Otavio Frias Filho forneceu ao CPDOC da FGV.

Geração 77

No capítulo sobre a morte de Vladimir Herzog, Gaspari traz vários elementos novos e junta fatos até hoje vistos separadamente. Mas comete erros primários. Nas páginas 193 a 201, apresenta a sua versão sobre o ato ecumênico que teve lugar na Catedral da Sé, em São Paulo, in memoriam de Vlado Herzog. O autor diz que foi a primeira manifestação de estudantes desde o AI-5. Falso. O autor diz que este foi o momento em que os estudantes fizeram a sua inflexão pela luta de massas, abandonando a idéia de ações armadas. Igualmente falso.

Se Gaspari tivesse lido o livro Cale-se, de Caio Túlio Costa, ou conhecesse a história por outros documentos que não apenas os arquivos de Golbery, saberia que em 1973 o estudante de Geologia Alexandre Vanucchi Leme fora preso pelo DOI-Codi e dado como morto por atropelamento. Alexandre era acusado de pertencer à ALN mas tinha vida legal, participava do movimento estudantil etc. Fora primeiro colocado no vestibular para Geologia na USP.

Houve missa por Vanucchi na Catedral da Sé, celebrada pelo cardeal-arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns, com maciça presença de estudantes. O regime cuidou de montar barreiras policiais para impedir a vinda dos estudantes à catedral. O ato ecumêmico de Vladimir Herzog tivera um ensaio em 1973. E foi a partir dali que houve a inflexão do movimento estudantil. No seu livro, Caio Túlio conta a história do grupo que viria a se tornar a corrente estudantil Refazendo e ouviu várias pessoas que participaram do movimento. Eles já eram a favor do rock e contra a MPB, eles já tinham todos os atributos que Gaspari daria ao que chama de Geração 1977.

Portanto, ao contrário do que afirma Gaspari, a Geração 1977 surgiu com o movimento contra a prisão de Alexandre Vanucchi. O problema é que ninguém ainda estudou esta geração. Elio Gaspari prefere ouvir isoladamente a voz de Mario Sergio Conti, que militou em outra corrente, a Liberdade e Luta, conhecida como Libelu. Em certo momento, diz que a Libelu não era o melhor exemplo da geração, mas o mais significativo. Caio Túlio e outros mostram muito mais.

O livro revela como o governo relacionava-se com a imprensa. Pela leitura do livro, Geisel deu uma única entrevista a um grupo selecionado de jornalistas. O ministro Armando Falcão, um dos porta-vozes da linha dura, publicamente repetia: ‘Nada a declarar’. Mas a alguns jornalistas falava bastante e deixava que suas falas fossem apresentadas como oriundas de ‘fontes bem-informadas’ do Palácio do Planalto.

O general Golbery também falava muito. Mas falava a um grupo pequeno de jornalistas, do qual Gaspari era um dos mais expressivos. O leitor do livro vai saber que Golbery exigia que seu nome não fosse citado, nem admitia qualquer referência à origem da fonte.

Elio Gaspari esteve à frente do Jornal do Brasil no período. Mas não conta isso aos seus leitores. Num dos volumes anteriores, ele apresenta uma primeira página do JB anunciando o fim do AI-5 e deixa escapar que foi ele que fez. Lapso. Depois da demissão de Alberto Dines do JB, que ficara 11 anos no comando do jornal, Gaspari assumiu a direção da redação. Em 1979, ao fim do governo Geisel faria aquela página sobre o fim do AI-5.

Gaspari não chegou ao Jornal do Brasil por acaso. Veio pelas mãos de Walter Fontoura, que por sua vez tinha excelente aproximação com Heitor de Aquino Ferreira. A cúpula do matutino tinha um problema. Nas articulações sucessórias anteriores, Nascimento Brito estivera com os que defendiam o nome do então chefe da Casa Civil, Leitão de Abreu. A idéia era de Delfim Netto, segundo relato de Gaspari no volume A ditadura derrotada (págs. 189 a 213). O sucessor de Médici seria um civil. Participavam também do esquema José Luiz de Magalhães Lins e Miguel Lins. O problema era que o projeto fracassou e quem venceu foi o grupo Geisel-Golbery. O jornal precisava sinalizar ao governo que chegava que não tinha pretensões contestatórias. Dines era um contestador e a página sem manchete sobre o golpe que derrubou Allende ainda não tinha sido de todo metabolizada.

Em dezembro de 1973, o Jornal do Brasil demite Alberto Dines e chama Walter Fontoura para substituí-lo. Como homem forte de Fontoura, chegava ao Jornal do Brasil o jornalista Elio Gaspari. Pena que esta história tenha ficado de fora do livro.

Nas página 401, o autor conta uma história interessante:

‘Com o beneplácito de Geisel, o chefe do Gabinete Militar avançara sobre a jurisdição do general da Casa Civil, assumindo funções de interlocutor do governo com os donos dos órgãos de comunicação. Não era pouca coisa. Golbery transformara suas relações com a imprensa num poderoso instrumento político. Ao contrário da lenda que gostava de propagar, era acessível e loquaz. Conversava com inúmeros jornalistas que lhe pediam audiência, desde que aceitassem a regra do seu jogo: não podiam citá-lo nem atribuir o que dele ouviam a ‘fontes do governo, do palácio ou fosse lá de onde fossem’.’

E Hugo Abreu foi confrontar-se justamente com o Jornal do Brasil. Nas páginas seguintes, o autor narra como o novo interlocutor era inepto, como censurava e como notícias escapavam-lhe entre os dedos.

Mais seis anos

Outros episódios marcantes no período deixam de ser abordados no livro ou o são de forma limitada.

Em 1975, o Grupo Abril negocia um empréstimo com o BNDE. A revista Veja estava submetida à censura. O ministro da Justiça pede a cabeça do criador da revista – e seu diretor – Mino Carta em troca do fim da censura. Este tinha o compromisso dos Civita de que a área editorial estava sob seu comando. Criou-se a confusão, relatada em vários outros livros e depoimentos. Mino Carta termina demitido de Veja, a censura se encerra pouco depois. Passados dois anos, Mino Carta criaria a revista IstoÉ.

Este episódio, exemplar, simplesmente é ignorado pelo livro.

Já nas últimas páginas, quase ao fim do volume, aparece a crônica de Lourenço Diaféria, a reação do regime, a resposta da Folha. A crônica era uma bobagem. Cláudio Abramo morreu convicto de que era uma provocação. A reação do regime foi prender o jornalista e censurar a coluna. A resposta da Folha (contra a opinião de Abramo, que sabia como as coisas funcionavam) foi publicar o espaço da crônica em branco com a informação de que o cronista estava preso. A crise agravou-se a ponto de o jornal deixar de publicar editoriais, demitir Cláudio Abramo, suspender coluna diária de Alberto Dines e encerrar a coluna semanal Jornal dos Jornais, pioneira na crítica de mídia. A crônica de Diaféria fora publicada no dia 1º de setembro de 1977.

Toda a crise decorria do poder de Sylvio Frota e das fortes possibilidades de emplacar seu nome como o candidato à sucessão de Geisel. Para falar da Folha, Gaspari usa na página 453 as expressões ‘em cuja redação se cultivavam ódios internos profundos’, ‘monstruoso prédio da rua Barão de Limeira’, ‘alguns gatos como Abramo, Francis, Carta e Dines circulavam na redação e escreviam para os leitores; outros para o SNI’ e assemelhadas.

Com a demissão de Cláudio Abramo, Octávio Frias de Oliveira chama Boris Casoy para dirigir o jornal.

No dia 12 de outubro, o general Sylvio Frota é demitido e sua candidatura desmorona como um castelo de cartas.

Gaspari considera este dia como o dia em que Geisel acabou com a ditadura. De todas as decisões de Octávio Frias de Oliveira, apenas duas foram irreversíveis: a demissão de Cláudio Abramo e o fim da coluna Jornal dos Jornais.

Belo final para uma ditadura que ainda enfrentaria seis anos de governo Figueiredo.