O embargo de Matíaas M. Molina ao minucioso levantamento de Antonio F. Costella sobre o controle da informação no Brasil não é caso isolado, nem despreparo técnico ou idiossincrasia pessoal (como outras já apontadas). É restrição puramente ideológica.
Ao escolher o esperto título para o seu compêndio – História dos Jornais no Brasil e não “História da Imprensa” ou “História do Jornalismo” – o autor dispensou-se de encarar a desgraça que precede e se sobrepõe ao simples arrolamento de títulos de periódicos.
O elemento engrandecedor na biografia de jornais e o que os converte em trincheiras na defesa da comunidade humana é sua disposição em enfrentar a censura exercida pelo poder político, econômico ou clerical (juntos ou separados). O desempenho dos jornais e de jornalistas na história política de uma nação só pode ser aferido através da sua disposição em vencer pressões e controles dos segmentos retrógrados. Desconsiderar o ingrediente contrastante – a censura – fixando-se no registro linear de suas existências é um exercício meramente cartorial.
A inexistência na Bibliografia e também no Índice de qualquer referência à palavra “censura” e à instituição que a trouxe e implantou no Brasil com inegável sucesso – o Santo Ofício da Inquisição – é um claro indício da disposição manipuladora e ostensiva tomada de posição em favor do dogmatismo religioso, do obscurantismo intelectual e da tirania política.
Publicado no auge da ditadura militar, o trabalho de Antonio F. Costella (então professor na ECA-USP), entre outros méritos, mostra-se capaz de articular e consolidar os diferentes surtos censórios que assolaram nossa terra como fenômeno único e contínuo. Ao constatar que mesmo quando a Coroa portuguesa resolveu interferir na impressão e circulação de impressos a preocupação predominante era a salvaguarda da fé religiosa. A Inquisição foi o instrumento político preferido das teocracias.
Episódio tragicômico
À mesma constatação chegaram eminentes historiadores portugueses como J. T. da Silva Bastos (História da Censura Intelectual em Portugal, Coimbra, 1926), Artur Anselmo (Camões e a censura literária inquisitorial, Braga, 1982) e Artur Moreira de Sá com a sua monumental coleção Índices dos livros proibidos em Portugal no século XVI, Lisboa, 1983).
Este último localiza em 1451 o primeiro alvará de censura em Portugal, quando D. Afonso V determinou a queima em praça pública dos livros heréticos. Como a oficina de Gutenberg começou a funcionar no período 1450-55 e os primeiros livros impressos em português datam de 1495, os volumes condenados à fogueira pelo devoto monarca eram certamente manuscritos.
Nenhum trabalho sobre os primórdios da imprensa e dos periódicos no âmbito ibero-brasileiro pode ignorar a arqueologia da censura e a sua visceral conexão inquisitorial. A longevidade e persistência dos sistemas de controle de informação no mundo ibérico só podem ser atribuídas a uma poderosa e infalível confraria capaz de punir com extrema severidade aqueles que não conseguia convencer pela doutrinação – a Inquisição.
Exemplo do terror inquisitorial que alcançou o primeiro jornalista a exercer a profissão no Brasil, embora conhecido de Matías M. Molina, foi ignorado por ele ao tratar da Gazeta do Rio de Janeiro. Frei Tibúrcio José da Rocha, quando estudava em Coimbra e influenciado pelas doutrinas dos filósofos franceses contrabandeadas pelos amigos, foi assaltado por dúvidas espirituais e quase se entregou ao materialismo. Assustado com o próprio desvio delatou-se ao Santo Ofício. Foi absolvido do grave pecado, reabilitado e depois nomeado para a sinecura no outro lado do Atlântico. Consta que delatou mais gente. A apurar.
O tragicômico episódio foi descoberto pela pesquisadora e jornalista Lilia Diniz, publicado em História Viva (abril de 2009, ano IV, nº 66) e republicado neste Observatório (ver “O primeiro redator de jornais do Brasil”).
Simbólico, exemplar, certamente caberia no capítulo sobre o precursor do jornalismo chapa-branca (pág. 114). Não coube. [Segue]
Leia também
Nunca houve inquisição, nem censura – só galhardia – Alberto Dines (26/05/2015, edição nº 852)
A Inquisição não existiu, é invenção de leigos – A.D. (31/10/2011, edição nº 666)
Resposta a Alberto Dines – Matías M. Molina (15/11/2011; contestação ao artigo “História truncada: A Inquisição não existiu, é invenção de leigos”)
Embargo suspenso: a imprensa já pode discutir seu passado – A.D. (15/11/2011, edição nº 668)
A Inquisição existiu. E provocou tremendo atraso – A.D. (edição nº 676, em 10/01/2012)
Resposta a Alberto Dines (II) – M.M.M. (17/01/2012; resposta ao artigo “A Inquisição existiu. E provocou tremendo atraso”)
Reabilitação de Hipólito é façanha histórica – A.D. (17/01/2012, edição nº 677)