Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Nunca houve inquisição, nem censura – só galhardia (III)

Para evitar que a censura inquisitorial ganhasse relevo no brevíssimo capítulo que dedicou à imprensa na Era Colonial, Matías M. Molina serviu-se do esperto expediente de recheá-lo com elementos “positivos”. Distrai-se com os irrelevantes mistérios que envolvem um folheto escrito em alemão arcaico e impresso em 1514 onde se descreve o litoral do Brasil até as proximidades do rio da Prata e tem o título “Cópia da Nova Gazeta da Terra do Brasil”.

O termo alemão “Zeytung”, que hoje significa jornal, foi traduzido intempestivamente por Molina como gazeta – embora, na realidade, signifique Carta de Notícias, Lettres de Nouvelles, ou Foglietti de Avvisi. Quando os folhetos deixaram de ser manuscritos passaram a ser vendidos por uma moeda chamada em Veneza de gazetta (de gazza, pássaro veloz). A tecnologia tem preço. E o nome colou.

Molina não perde muito tempo com a genealogia dos periódicos impressos (muito bem descrita por Carlos Rizzini em O jornalismo antes da tipografia, 1968), prefere encher linguiça a respeito do tal folheto alemão já mencionado por Stefan Zweig no seu ensaio sobre Américo Vespúcio (1943) e discutido por Rubens Borba de Morais na monumental Bibliographia Brasiliana (1983).

Molina desperdiça oito preciosas páginas com uma curiosidade bibliográfica no lugar de estender-se sobre o papel dos jesuítas na propagação da palavra escrita, ou sobre o progresso da imprensa nas colônias espanholas e as razões do nosso atraso na impressão e circulação de livros, periódicos e ideias.

No segundo capítulo, afinal, é obrigado a encarar a difícil implantação da tipografia no Brasil colonial (págs. 49-81), preferindo sempre fechar os olhos às evidências de que o Brasil poderia ter antecipado em meio século (mais precisamente, 61 anos) o seu ingresso na Era Gutenberg não fosse a violenta intervenção do Conselho Geral do Santo Ofício, em Lisboa, determinando o fechamento de uma tipografia clandestina no Rio de Janeiro.

A história desta desgraça foi publicada por este observador com o título de “Aventuras e desventuras de Antonio Isidoro da Fonseca” no livro Em nome da fé – estudos in memoriam de Elias Lipiner (Editora Perspectiva, São Paulo, 1999), posteriormente reproduzida na série de programas de TV do Observatório da Imprensa dedicados aos 200 anos da imprensa no Brasil.

O referido texto reproduz quatro documentos até então inéditos relacionados com o fechamento da tipografia do citado Antonio Isidoro da Fonseca – um dos mais importantes da Lisboa – que, por misteriosas razões, abriu sua segunda oficina no outro lado do Atlântico. A nova documentação foi emitida no âmbito do Conselho Geral do Santo Ofício, órgão máximo da entidade inquisitorial portuguesa.

Sofismas e embustes

Dois outros documentos oriundos do Conselho Ultramarino (subordinado à Coroa), anteriores e já conhecidos, não foram implementados e com eles Molina pretende fazer a festa. E por que razão o valente autor da História dos Jornais no Brasil preferiu documentação sabidamente secundária, preterindo acintosamente documentação mais recente, esclarecedora e cabal?

Simplesmente porque não lhe interessa chamar a atenção para o protagonismo da Santa Inquisição na manutenção do obscurantismo na Colônia. Não se importa em passar por relapso como pesquisador de fontes primárias, só se importa em servir à causa da fé. Esta, no caso, bem pouco gloriosa: comprovar que a Pátria do Cala a Boca nasceu assim, meio cegueta, por culpa de uma monarquia tosca, primária, incapaz.

E, assim, armado com tão edificantes propósitos, Matías M. Molina desdenha documentos irrespondíveis sob a alegação de que defendem tese “altamente improvável”, sem ao menos repassar seu teor à legião de leitores e/ou correligionários (pág. 83). Na ânsia de desqualificar uma documentação que anulará suas crenças e dogmas, embarafusta na direção contrária ao afirmar peremptoriamente logo adiante que “a Inquisição era implacável na fiscalização e eventual proibição de obras impressas ou em processo de impressão, mas não há evidências de interferências para impedir a instalação de tipografias”.

Decida-se, mestre Molina: ou a Inquisição era implacável até para proibir obras em processo de impressão (isto é, praticava a censura prévia) ou era tão frágil que não conseguia “impedir a instalação de tipografias”.

A evidente contradição e a patente confusão decorrem da incapacidade do autor em refutar o belo fac-símile publicado à pág. 85 do citado texto. Precisa desconsiderá-lo, torná-lo invisível e, principalmente, não discuti-lo em termos racionais.

Ao proibir terminantemente que Antonio Isidoro da Fonseca continuasse a imprimir qualquer tipo de obra sem as devidas licenças, a Inquisição simultaneamente impediu a instalação e a sobrevivência de tipografias no Brasil.

A “Notificação Feita aos Impressores” assinada pelo Comissário do Santo Ofício do Rio de Janeiro (ver abaixo) é um importantíssimo documento, talvez único no gênero, sobre a força da Igreja numa terra dominada pela negligência e incompetência. Joia da dialética autoritária, não necessita de expressões drásticas e apocalípticas – bastam-lhe pequenas, suaves e inofensivas admoestações.

Não quis examinar a bela peça caligráfica, terá que engoli-la quase 20 anos depois.

O Conselho Ultramarino havia determinado que os equipamentos tipográficos pertencentes a Antonio Isidoro da Fonseca fossem remetidos de volta ao Reino. Nada aconteceu. Mas quando Sua Eminência, o cardeal-inquisidor D. Nuno da Cunha Athayde, sugeriu sutilmente que o tipógrafo não mais imprimisse livros de qualquer espécie sem autorização superior, consumou a desgraça.

D. Nuno foi o responsável pela pena capital imposta ao poeta e comediógrafo carioca Antonio José da Silva, por alcunha o Judeu (1739). Foi também o responsável pelo Cala a Boca definitivo imposto ao único editor de suas obras em vida (1749) – Antonio Isidoro da Fonseca.

Quando a ministra-relatora Cármen Lúcia proclamou no Supremo Tribunal Federal a morte do Cala a Boca pareceu a todos que a era da mordaça encerrava-se definitivamente. Ainda não: antes será preciso desvendar, reconstituir e entender a solerte malha de sofismas, embustes, logros e enganações que se chama Santa Inquisição. (Segue)

(Transcrição) Notificação feita aos impressores. Aos doze dias do mês de março de 1749, nesta cidade do Rio de Janeiro, em casas de morada do Reverendo Senhor Comissário do Santo Ofício, o doutor José de Souza Ribeiro de Araujo, tesoureiro da Sé da mesma cidade, apareceu Antonio Isidoro da Fonseca, soldado desta praça, natural da Freguesia de São Miguel de Frexo, bispado, digo, de São Miguel de Frexo Espada à Cintam arcebispado de Braga, a quem o dito reverendo senhor comissário mandou notificar para vir à presença; e posto nela o notificou da parte do Santo Tribunal do Santo Ofício, para que não imprimisse mais, de hoje em diante, livros, conclusões, ou outros quaisquer papeis sem proceder expressa licença do Santo Ofício, de que mandou fazer este termo e ele dito Antonio Isidoro da Fonseca assinou. Eu, padre Thomas de Souza Sobre, escrivão eleito, o escrevi. (a) O comissário (a) Antonio Isidoro da Fonseca. [Segue-se a notificação a Francisco da Costa Falcão que ajudava Antonio Isidoro da Fonseca na impressão.]

(Transcrição)
Notificação feita aos impressores.
Aos doze dias do mês de março de 1749, nesta cidade do Rio de Janeiro, em casas de morada do Reverendo Senhor Comissário do Santo Ofício, o doutor José de Souza Ribeiro de Araujo, tesoureiro da Sé da mesma cidade, apareceu Antonio Isidoro da Fonseca, soldado desta praça, natural da Freguesia de São Miguel de Frexo, bispado, digo, de São Miguel de Frexo Espada à Cintam arcebispado de Braga, a quem o dito reverendo senhor comissário mandou notificar para vir à presença; e posto nela o notificou da parte do Santo Tribunal do Santo Ofício, para que não imprimisse mais, de hoje em diante, livros, conclusões, ou outros quaisquer papeis sem proceder expressa licença do Santo Ofício, de que mandou fazer este termo e ele dito Antonio Isidoro da Fonseca assinou.
Eu, padre Thomas de Souza Sobre, escrivão eleito, o escrevi.
(a) O comissário
(a) Antonio Isidoro da Fonseca.
[Segue-se a notificação a Francisco da Costa Falcão que ajudava Antonio Isidoro da Fonseca na impressão.]

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