Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Nunca houve inquisição, nem censura – só galhardia (IV, fim)

Aumenta o consenso para atribuir a Heródoto (485-420 a.C.) o título de Pai da História. Mas ninguém se ocupa em averiguar quem foi o anti-Heródoto, isto é: o primeiro a reescrever a crônica dos acontecimentos moldando-a às conveniências teológicas, filosóficas, políticas e pessoais. Tudo indica que a customização do relato historiográfico é fruto da dialética: a cada fato corresponde uma negação, a cada evidência, outra evidência, geralmente em sentido contrário.

A história da Revolução Francesa foi sucessivamente adaptada para agradar às diferentes exigências de facções políticas, o mesmo aconteceu com o período napoleônico. A Inquisição, instituída para deformar valores e mentalidades, teve um desfecho condizente com os seus fins: cada um de seus cronistas conferiu-lhe um teor particular – o religioso espanhol Juan Antonio Llorente (1756-1823), que ocupou importantes funções na hierarquia do Santo Ofício, foi visto pelos pósteros como crítico do cruel sistema de controle das mentes, enquanto o aristocrata francês Joseph de Maistre (1753-1821), embora maçom, viu na aliança da monarquia com a teocracia a combinação ideal para gerir a sociedade humana.

Na véspera de completar o seu centenário (1908), a imprensa brasileira engalfinhou-se em torno da escolha do seu patriarca – os liberais apostavam no gaúcho Hipólito José da Costa Furtado de Mendonça (1774-1823), que criou, escreveu e editou no exílio londrino, ao longo 14 anos, o primeiro periódico a circular em Portugal e no Brasil livre da censura inquisitorial, enquanto os clericais-monarquistas preferiam o jornalismo chapa-branca da Gazeta do Rio de Janeiro, matriz dos diários oficiais.

Ex-prisioneiro da Inquisição portuguesa, secularista, maçom graduado, antiescravagista, inventor, polemista, polígrafo, admirador de Benjamin Franklin, estudioso da história do jornalismo e da liberdade de expressão, Hipólito da Costa seria hoje o protótipo do intelectual progressista e, exatamente por esta razão, incapaz de merecer o reconhecimento dos círculos reacionários como o nosso protojornalista.

O arranca-rabo continuou nas comemorações do centenário da Independência e durante a ditadura Vargas, quando as duas facções passaram a disputar a escolha do Dia da Imprensa. Sempre buscando o apoio da Igreja, o manhoso caudilho preferiu a data de 10 de setembro, primeiro dia de circulação da Gazeta do Rio de Janeiro. Em 1999, veio a revanche graças à ação da bancada gaúcha da Câmara dos Deputados, que convenceu o presidente FHC a transferir o Dia da Imprensa para 1º de junho e assim lembrar o primeiro dia de circulação do Correio Braziliense (também em 1808).

Preconceito puro

O momento culminante da histeria “anti-hipolitista” ocorreu em 2008, novamente efeméride, quando foram comemorados os 200 anos da chegada da corte portuguesa ao Brasil fugida da blitz napoleônica. A mídia se engalanou para lembrar a nossa entrada na modernidade, a abertura dos portos, a fundação da primeira universidade, o primeiro censo, a criação do Banco do Brasil. Porém nem uma linha para evocar os 200 anos da primeira tipografia e da fundação da nossa imprensa.

Patético: a entrada do país na Galáxia Gutenberg foi embargada para evitar a lembrança de dois fatos que obrigatoriamente deveriam escancarar a nefasta supremacia da Igreja e da Inquisição no controle da nossa cultura. Este Observatório da Imprensa foi o único veículo a protestar contra a vergonhosa manipulação histórica tanto em sua edição digital como na televisiva (ver links abaixo).

Estão visíveis as impressões digitais do Opus Dei nesta incrível operação censória. Apesar do seu íntimo relacionamento com a Associação Nacional de Jornais (ANJ), a operosa prelazia preferiu atuar informalmente por intermédio da rede de executivos da imprensa regional treinados em seus cursos. Na esfera da grande imprensa, bastaram contatos entre suas cúpulas evitando-se o registro em ata de qualquer ação coletiva.

Não é difícil adivinhar qual a opção de Matías M. Molina na desconstrução de Hipólito da Costa: na série de trailers da História dos Jornais no Brasil, publicada no suplemento de “Eu & Fim de Semana” do Valor Econômico, o autor fez o possível para minimizar o papel precursor de Hipólito da Costa.

Agora, no badalado lançamento do seu tratado foi aconselhado a atuar mais sutilmente: Hipólito e o seu mensário ganharam um capítulo de 22 páginas com estratégicos elogios e hábeis senões ardilosamente inseridos para desqualificá-lo. Seguindo o paradigma do seu companheiro de devoções Laurentino Gomes, a imagem do fundador da imprensa brasileira fica associada a negócios escusos, troca de favores e interesses ocultos.

Cada lance mais corajoso e decente na biografia de Hipólito é caprichosamente desconstruído e pichado. Segundo Molina, a prisão pelos esbirros da Inquisição lisboeta por ordem do chefe de polícia Pina Manique não o surpreendeu pois teria sido avisado previamente. Ora, se estava efetivamente mancomunado com o poder clerical, por que penou três longos anos nos cárceres do Santo Ofício? O pesquisador fez uma leitura enviesada da documentação: na realidade, Hipólito estava mancomunado com os inimigos do pérfido Manique – a franco-maçonaria portuguesa –, que conseguiram libertá-lo da fortaleza no Rocío e conduzi-lo são e salvo até Gilbraltar, onde embarcou para a Inglaterra.

A desconstrução chega à vida pessoal do patriarca-jornalista, retratado como figura pouco virtuosa que “passou parte da vida devassadamente” na opinião do historiador Francisco Adolfo Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, que Molina parece encampar por conta da “amante” que engravidara antes do casamento (p. 121).

Autor de vasta obra historiográfica, Varnhagen cometeu um colossal erro de avaliação ao transcrever parcialmente o processo do poeta e comediógrafo carioca Antonio José da Silva, o Judeu, condenado à morte pela Inquisição portuguesa. A parte não transcrita – certamente por distração – é de capital importância para a biografia do infeliz poeta. A opinião de Varnhagen sobre Hipólito da Costa não tem nada distraída. É preconceito em estado puro que Matías M. Molina encampa sem grandes constrangimentos.

Promessa cumprida

Outra desconstrução empreendida por nosso autor refere-se ao relacionamento de Hipólito com os libertadores sul-americanos como ele exilados em Londres. Reuniam-se assiduamente na casa do general venezuelano Francisco Miranda, alcunhado de “El Precursor”, conviviam, colaboravam e operavam em grupo. Na pérfida tarefa de enodoar sua biografia com insinuações sobre seus negócios, sem indicar a fonte ou origem das aleivosias, Molina afirma que Hipólito “teria ajudado Simón Bolivar a levantar na City de Londres um empréstimo para a Colômbia e chegou a agenciar armas, munições, navios e mercenários para as tropas rebeldes da América Latina” (p. 130).

Nenhuma referência ao relacionamento de Hipólito com outro jornalista exilado na capital do Império Britânico, José Maria Blanco White, o solitário editor e redator do mensário El Español, que assim como o Correio Braziliense desempenhou importante papel na disseminação do ideário liberal, secular e independentista entre seus conterrâneos, embora num lapso de tempo mais reduzido (março de 1810 a junho de 1814, contra os quase 15 anos de atividades de Hipólito no Correio Braziliense – junho de 1808 a dezembro de 1822).

A distraída omissão de Molina não surpreende – o escopo da sua bibliografia é restrito às conhecidas biografias de Hipólito e parece destinar-se a satisfazer as parcas exigências que nortearam o seu projeto: classificar quem é anjo, quem é demônio na história do jornalismo brasileiro.

Não se interessou em examinar os extraordinários aportes editoriais e políticos do Correio nas incomparáveis 62 linhas da Introdução da primeira edição (volume I, p. 4), em alguns textos antológicos sobre a primeira tipografia brasileira (vol. 1, pp. 393-394) e sobre a necessidade de transparência nos negócios públicos (vol.1, pp. 517-520). Nem ocorreu ao autor examinar o volume IV (maio de 1810; pp. 479-503; 616-639) onde Hipólito transcreveu a tradução integral da celebrada Areopagítica de John Milton (discurso a favor da liberdade de imprensa no Parlamento britânico, Londres, 1644), certamente inédito no mundo ibérico.

Estas façanhas intelectuais do patriarca da nossa imprensa não despertaram o interesse nem a atenção do autor da História dos Jornais no Brasil. Molina prefere devassar as finanças pessoais do Herói Nacional nº 1. Citando o reacionário Oliveira Lima, acusa Hipólito de não ter sido “propriamente venal mas também não ter sido incorruptível (p. 138) e acrescenta estas pérolas de isenção: “Não há detalhes específicos sobre as finanças do jornal, mas é improvável que a venda de assinaturas e dos números avulsos fosse suficiente para pagar as elevadas despesas de impressão e distribuição. (…) Persistem dúvidas razoáveis a respeito das finanças de Hipólito e de seus contatos com o poder.”

Matías M. Molina não surpreende, cumpriu o que prometia. E isso não é para qualquer um. (Fim)

Leia também

Nunca houve Inquisição, nem censura – só galhardia – Alberto Dines (26/05/2015, edição nº 852)

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A Inquisição existiu. E provocou tremendo atraso – A.D. (edição nº 676, em 10/01/2012)

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Reabilitação de Hipólito é façanha histórica – A.D. (17/01/2012, edição nº 677)