Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O assassinato de um repórter

Em O Crime que Abalou a República, Roberto Sander não se limita apenas em arranhar a pátina do tempo ou vasculhar superficialmente os desvãos do quarto de guardados da memória. Não remove apenas o pó, mas abre janelas, portas e gavetas, deixando que o ambiente seja inundado pela luz. Ao remover a lápide de silêncios que sepultava episódios dramáticos que se acreditavam enterrados para sempre, o autor enrosca-se com personagens mumificados de um universo onde o poder amancebava-se com a ilegalidade e o cinismo, criando perversa confluência do crime com a política, no começo dos anos 50.

Ao exumar acontecimentos desconcertantes, embalsamados pelo esquecimento, o autor empenhou-se em contextualizar os fatos com rigor para estimular novos exercícios de reflexão. O adestramento dos olhos e das mãos nesse extraordinário esforço de captar atmosferas e sentimentos perdidos no tempo produziu uma obra notável. Através de uma textura narrativa atraente, onde as palavras estão sempre no lugar certo, o leitor é conduzido pelos labirintos de um passado tempestuoso que vai desde o espancamento, agonia e morte do jornalista Nestor Moreira, ao suicídio de Vargas, três meses depois. O livro termina com o julgamento do assassino de Nestor, em julho de 1956, quando a acusação e a defesa travaram um dos mais calorosos debates da história do Tribunal do Júri.

Como nos quadros de Caravaggio, onde o fundo da tela aparece sempre afogado na penumbra, contrapondo-se às figuras em primeiro plano, banhadas em uma espécie de luz dramática que ilumina um ponto para melhor ocultar outro, Roberto Sander revelou-se um mestre na arte de explorar os códigos e limites do claro-escuro. Ao se aventurar por esse território empoeirado e cavernoso, o autor soube utilizar como poucos as infinitas possibilidades da luz. Deu vida aos cenários, graduou o brilho das cores e ampliou a presença dos principais atores de um dos momentos mais tormentosos do nosso passado recente. Nesse penoso trabalho de recuperar imagens enevoadas, o olhar do repórter transcenderia a visão litúrgica dos historiadores com perfil acadêmico. Evitou que o primeiro plano se confundisse com o fundo, criando uma realidade falsa, achatada e sem perspectiva. Sander percebeu o que a maioria dos pesquisadores não conseguiu enxergar: a morte de Nestor Moreira, que se circunscrevera inicialmente à esfera policial, era o primeiro sinal do terremoto político que se avizinhava e enlutaria a nação em agosto de 1954, quando Vargas desertou do poder e da vida suicidando-se com um tiro no peito.

Tribuna vs. Vargas

Na madrugada de 12 de maio, o espancamento do repórter de A Noite, em uma delegacia de Copacabana, na Zona Sul do Rio de Janeiro, comovera a população da capital da República. Ao ser submetido a uma sessão de socos e pontapés na delegacia para onde fora conduzido pelo motorista de táxi com quem se desentendera sobre o preço da corrida, Nestor acabaria também se atritando com seu futuro algoz, o guarda-civil Paulo Ribeiro Peixoto, conhecido como Coice de Mula, que fazia biscates como ‘leão-de-chácara ‘ nas boates da vizinhança. Coice de Mula sentiu-se ofendido com os comentários acrimoniosos do jornalista e o agrediu brutalmente. Nem mesmo o apelo dramático dos presos, ‘Vão matar o homem!’, foi capaz de mover os colegas de farda que permaneceram impassíveis diante do massacre. A pancadaria só foi suspensa com a chegada do comissário de plantão que acordara com a gritaria e aparecera no xadrez de pijama para saber o que estava acontecendo. Naquela madrugada fria, o jornalista foi então embarcado em outro táxi e levado para casa. Na manhã seguinte, foi atendido na emergência do Hospital Miguel Couto com sintomas de hemorragia interna.

Os onze dias em que durou a agonia do repórter intoxicaram o ambiente político na capital da República. A imprensa exigia que o caso fosse rapidamente apurado, mas o inquérito se arrastava, com o inesperado desaparecimento das testemunhas. Os presos que assistiram ao massacre foram transferidos para outros locais a fim de dificultar a investigação. Até o motorista de táxi que conduzira Nestor havia sumido.

A oposição via o dedo do governo na forma como Coice de Mula se comportara na delegacia. Vargas era acusado de ter restabelecido os métodos truculentos da época do Estado Novo, onde a tortura e os assassinatos jamais haviam sido punidos ou contidos pelo braço da lei. O presidente era apontado como o principal responsável pelas atrocidades cometidas pelo guarda-civil. Empenhada em conduzir o chefe da nação ao cadafalso, a Tribuna da Imprensa publicava, na primeira página, uma foto do jornalista ao lado de outra, onde Vargas aparecia sorrindo. No alto, a manchete atacava: ‘Vargas: Mancha de Sangue’.

Na delegacia em que acompanhava um caso rumoroso

A morte de Nestor Moreira fora oferecida à oposição em uma bandeja de prata. A tragédia ocorrera no momento em que prosperava grave crise política diante da erosão da autoridade do chefe da nação. O antigetulismo aflorava com intensidade jamais vista. A divulgação, em fevereiro, do chamado ‘Memorial dos Coronéis’, com duras críticas ao governo, deixara um cheiro forte de pólvora no ar. O principal desafeto de Vargas, o jornalista e deputado Carlos Lacerda, dono de A Tribuna da Imprensa, movia ensandecida campanha contra o presidente. Ainda permanecia vivo na lembrança de todos o artigo que publicara, em junho de 1950, antes da campanha presidencial: ‘O senhor Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à presidência. Candidato não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar.’

A qualidade cinzelada e versátil do texto permitiu que Sander se movimentasse em diferentes cenários na tentativa de resgatar episódios abandonados nos cantos escuros do passado para que o leitor tivesse uma ampla visão da atmosfera densa e raivosa que envolvia aqueles dias tempestuosos. Através de uma narrativa caleidoscópica, o autor recupera a campanha odienta contra Samuel Wainer, apadrinhado de Vargas, acusado de fundar o vespertino Última Hora com dinheiro do Banco do Brasil. Não esquece os impiedosos ataques a Bejo, irmão do presidente, a quem se atribuía uma vida de luxos incompatível com seu modesto salário de servidor público. Havia ainda a ameaça de impeachment que mantinha o governo em permanente sobressalto.

Com a mesma clareza e precisão, Sander expõe as vísceras da imprensa da época, onde a maioria dos jornais não tinha qualquer compromisso com a notícia e a verdade. A radiografia que o autor faz do dia-a-dia das redações revela a natureza dos interesses que norteavam o comportamento da mídia impressa nos anos 50. O perfil que ele traça de Nestor Moreira chega a ser comovente. Nestor fazia parte de uma geração de repórteres com pobreza de vocabulário, que tropeçavam nas palavras e ofendiam a gramática, profissionais que necessitavam sempre da ajuda de um redator para ajudá-los a organizar e redigir as informações que traziam da rua, escritas num dialeto que só eles eram capazes de traduzir. Apesar dessa grave limitação, comum entre os repórteres de polícia da época, Nestor era uma extraordinário caçador de notícias, dono de invejável faro jornalístico que o transformara em um dos melhores profissionais de A Noite. Ele foi espancado na delegacia que frequentava, nas últimas semanas, acompanhando as investigações de um caso rumoroso, o assassinato da francesa Renée Aboab, encontrada nua e morta no apartamento em que morava, a poucos metros da praia de Copacabana. Apesar do mistério que envolvia o crime, Nestor conseguia sempre furar a polícia até o dia em que virou manchete no jornal em que trabalhava.

Um trabalho de tapeçaria política

A tragédia do repórter de A Noite fora politicamente superada pelo governo. Mas logo ocorreria outra desgraça. O assassinato do major da Aeronáutica Rubem Vaz, na madrugada de 5 de agosto, precipitaria os acontecimentos de forma alucinante. Segurança de Lacerda, o oficial fora baleado por um pistoleiro contratado por Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal do presidente da República. O principal líder da oposição regressava de uma palestra que realizara no Colégio São José, no bairro da Tijuca, quando fora tocaiado por Alcino do Nascimento, em frente ao prédio onde morava, na rua Toneleros. Mortalmente ferido,Vaz tombou junto ao meio-fio, ao lado do carro em que os dois haviam chegado. Lacerda atirou várias vezes contra o agressor e acabou ferido no pé. Mesmo desconhecendo a identidade e as ligações do autor do atentado, escreveria bilioso editorial na Tribuna: ‘(…) Acuso um só homem como responsável por esse crime. É o protetor dos ladrões, cuja impunidade lhe audácia para os atos como os desta noite. Este homem chama-se Getúlio Vargas. Ele é o responsável intelectual por este crime. Foi a sua proteção, foi a covardia dos que acobertaram os crimes dos seus asseclas que armou a audácia dos bandidos. Assim como a corrupção gera violência, a impunidade estimula criminosos.’ O governo Vargas agonizava. Na manhã de 24 de agosto, o presidente vingava-se dos seus detratores com um tiro no coração.

Como um habilidoso artesão, Sander costurou todos esses episódios aparentemente desconexos em torno de uma narrativa que arrasta o leitor e o mantém agarrado à trama até ao final do texto, quando todos os fios urdidos se juntam, compondo um harmonioso trabalho de tapeçaria política.

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Sinopse

Rio de Janeiro, capital da República, madrugada de 12 de maio de 1954. O repórter Nestor Moreira, do jornal A Noite, depois de deixar uma boate, se envolve numa discussão com um motorista de táxi por causa do preço da corrida. O que seria um acontecimento banal acabou se transformando numa tragédia que abalaria o país. Conduzido, ao lado do motorista, para o 2° Distrito Policial de Copacabana, Nestor Moreira seria recebido pelo guarda-civil Paulo Ribeiro Peixoto, conhecido pela alcunha de Coice de Mula pela truculência com que normalmente tratava os presos. Era o mesmo distrito que investigava o rumoroso assassinato de uma bela francesa. Nestor, que cobria o caso, avançava mais nas investigações do que a própria polícia, que, por isso, era alvo de críticas. Acabou brutalmente espancado por Peixoto, morrendo depois de ficar internado por onze dias no hospital Miguel Couto.

Foi uma comoção – 200 mil pessoas acompanharam o cortejo fúnebre pelas ruas do Distrito Federal – e o estopim de uma grave crise política, pois a oposição responsabilizava Getúlio Vargas pelo episódio, lembrando as práticas violentas da sua polícia durante a ditadura do Estado Novo. Tudo culminaria na morte do próprio presidente três meses depois.

Neste livro, escrito no estilo de uma grande reportagem, personagens como Carlos Lacerda, João Goulart, Tancredo Neves, Samuel Wainer, Golbery do Couto e Silva e Getúlio Vargas estão frente a frente em um dos momentos mais dramáticos da nossa história recente.

O prefácio é do jornalista e escritor Domingos Meirelles: ‘Como um habilidoso artesão, Sander costurou episódios aparentemente desconexos em torno de uma narrativa que arrasta o leitor e o mantém agarrado à trama até o final, quando todos os fios urdidos se juntam compondo um harmonioso trabalho de tapeçaria política’, escreveu.

O autor

Roberto Sander é jornalista há 25 anos. Trabalhou no Globo e TV Globo como repórter durante 16 anos. Desde 2003, se dedica a carreira de autor. Tem sete livros publicados, alguns deles de referência: Anos 40 – viagem à década sem Copa (Bom Texto, 2004) e O Brasil na mira de Hitler – a história dos navios brasileiros afundados por nazista (Objetiva, 2007).

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Jornalista, autor de As noites das grandes fogueirasUma história da coluna Prestes e 1930Os órfãos da revolução