Um besteirol sobre o catolicismo, mais especificamente sobre a figura solar de Jesus, este dileto filho do judaísmo a quem os católicos tanto devem, está passando impune pelo Brasil. No exterior, já saíram vários livros e artigos mostrando o quanto Dan Brown, autor de O código Da Vinci, e diversos resenhistas e críticos equivocaram-se, para dizer o mínimo, ao apresentar temas de ficção como verdades históricas inquestionáveis, em complexas operações de mídia que não excluem provavelmente também uma tentativa de infamar o cristianismo.
As manipulações misturam história e ficção, realidade e lenda, alhos e bugalhos, tudo com aquele fim que se tornou hegemônico no mundo dos livros atualmente: o objetivo é vender. Quanto mais, melhor. Se depois o livro cair no esquecimento, importância nenhuma terá o olvido, o mercado já terá colhido o que buscava.
Aos alhos e bugalhos
Jesus, o homem mais amoroso que já passou por este vale de lágrimas, não discriminava ninguém. Isso não o levava a ser complacente com os vendilhões do templo ou com os fingidos fariseus a quem chamou de ‘sepulcros caiados’. Comia com prostitutas, deixava que mulheres acompanhassem os apóstolos e discípulos, rompia com preconceitos étnicos e geográficos, mandava dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
O que faz o autor do Código Da Vinci como quem ouviu o galo cantar, mas não sabe aonde e pensa que foi na rinha do Duda Mendonça? Diz que Jesus foi feminista. Que Maria Madalena era prostituta. E que Jesus se casou com ela. Mais do que isso, Maria Madalena era o cálice do Santo Graal, que tanto foi procurado e jamais encontrado. Diz que Jesus teve um filho com ela e que, depois da morte do pai, na cruz, mãe e filho foram exilados para a França, onde deram início à dinastia dos merovíngios.
Para fazer tamanha salada, direito que tem e que ninguém pode negar-lhe, caso tais ficções não fossem apresentadas como verdades históricas, lança mão de confusas interpretações dos quatro evangelhos canônicos (Mateus, Marcos, Lucas, João), de evangelhos apócrifos e de lendárias interpretações que se consolidaram ao longo dos séculos.
Este artigo é curtinho e só quer levantar a lebre para outros caçadores. Ou para mim mesmo em futuros artigos.
Perguntas sem cabimento, respostas impossíveis
Deve existir uma arte de perguntar. Todo jornalista deve ter aprendido a arte e a técnica da entrevista. Quando não existe tal domínio, dá-se algo perfeitamente compreensível, mas intolerável como prática jornalística: o entrevistador não pergunta ao entrevistado o que interessa ao leitor; pergunta apenas o que lhe interessa, a ele, jornalista, saber. Dan Brown ‘perguntou’ aos autores que leu apenas o que podia caber em seu romance.
Lendo o evangelho apócrifo de Felipe, Brown segue sua tese: ‘A Igreja ocultou o casamento de Jesus e Maria Madalena e fez disso a maior dissimulação de toda a história’. Felipe diz que Jesus beijava Maria Madalena com freqüência na ……’. Mas, como é usual em papiros antigos, às vezes faltam palavras em trechos decisivos. Os pesquisadores, para facilitar o entendimento, preenchem esses espaços vazios com palavras que sejam adequadas ao significado. E agora? Jesus beijava Maria Madalena na boca, na face, na testa, na mão, na bochecha?
Pelo método Dan Brown, se a tese fosse outra, quando faltassem palavras nas frases que narram os beijos que Jesus dava nos discípulos, Jesus seria guei, assim como todos os discípulos, incluindo Judas, pois ele beijava a todos. Beijar era uma forma de cumprimento carinhoso, como os brasileiros sabem tão bem.
Mas o ‘sábio’ best-seller Dan Brown não pára aí. Leu que Maria Madalena era companheira de Jesus. E tascou: ‘Como qualquer estudioso de aramaico poderá explicar, a palavra companheira, naquela época, significava esposa’. Como, cara-pálida, se o texto de Felipe chegou em copta e não em aramaico? Repito: se a tese fosse mostrar Jesus em outra direção sexual, Maria Madalena era acompanhante, quem sabe, que no Brasil das últimas décadas virou sinônimo de garota de programa, sendo que programa no caso também mudou de significado e só pode ser sexo, o mesmo ocorrendo com garota que, igualmente, não é garota na expressão, é eufemismo para prostituta.
Sabedoria do leitor
O evangelho de Felipe diz também que Deus é tintureiro; que são muitos os animais do mundo que se apresentam de forma humana; que não devemos rezar no inverno, porque o inverno é o mundo, e o verão é o outro mundo.
Às vezes os próprios papas se atrapalharam. Na Páscoa do ano de 591, o papa Gregório, o Grande, confundiu a prostituta, de que Lucas fala no capítulo 7, com Maria Madalena, no capítulo 8. Nasceu aí a idéia de que Maria de Magdala fosse prostituta. Um engano papal. E engano de leitura.
As palavras são reinos complexos e misteriosos. O interessado nelas leva anos e anos estudando-as e cada vez sabe que sabe menos, como ensinava Sócrates. Não é lendo rapidamente alguns fragmentos que um sujeito pode demonstrar, com um romance, que a Igreja é fruto de um embuste. Quem acredita nele é ainda mais néscio do que ele.
Mas, para concluir, remeta-se o leitor ao velho ditado: muitos autores já se deram muito mal superestimando a sabedoria dos leitores, mas ninguém ainda se deu mal subestimando-os. Às vezes, se dão muito bem, e é este o caso de Dan Brown. O livro vai virar filme em breve. E a Igreja católica será ainda mais escarmentada.
Não acredito em conspirações, nem em bruxas. Mas que las hay, las hay.