Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O Brasil da Bienal e do Bem-amado

O nome de todo ator é Legião.

Foi assim que os Demônios que habitavam o corpo de um homem que andava nu entre túmulos, rasgando a pele com pedras, se identificaram quando Jesus, antes de expulsá-los para uma vara de porcos, perguntou ao possesso quem era ele. ‘Legião é o meu nome, porque somos muitos.’

Eles não queriam deixar a região e por isso suplicaram que fossem autorizados a entrar nuns suínos que fuçavam por ali. Segundo o Evangelho de Marcos, eram dois mil porcos e eles se atiraram num precipício, morrendo afogados no Mar da Galiléia.

A Legião de Personagens vividos por Marco Nanini, no teatro, no cinema e na televisão, inclui também Lineu, o funcionário público de A grande família, da TV Globo. E doravante incluirá, principalmente, Odorico Paraguaçu, o bem-amado prefeito de Sucupira.

2,5 milhões de livros

O município inventado por Dias Gomes para fazer belas metáforas sobre o Brasil, principalmente sobre nossos políticos, semelha mais uma cidade-Estado. O bem-amado descomplica o poder, mostrando como ele de verdade funciona. Sucupira é a mais objetiva síntese que um autor já fez do Brasil.

O Teatro das Artes, no Shopping da Gávea, no Rio, estava lotado no domingo (23/9). Eram 20h. A bilheteria avisava que não havia mais lugar, mas alguns esperançosos aguardavam em lista de espera.

Lista de espera em aeroporto é coisa usual no Brasil, mas em porta de teatro, não! Não é o assunto raro que interessa à mídia, segundo qualquer manual, explicado pela imagem ‘se um cachorro morde um homem, isso não é notícia, mas se o homem morde o cachorro, é’? Mas pela mídia ninguém soube disse, não.

A mídia no Brasil tem inegáveis qualidades, sobretudo técnicas e artísticas. Todavia o conteúdo não acompanha a forma, embora seja por ele influenciado e vice-versa. Qualquer porcaria televisiva pode ser vista em tela de alta definição. Jornais, revistas, a televisão e o rádio já não parecem mais integrar apenas o quarto poder, mas O Poder, ao qual todos rendem vassalagens diversas.

O Poder, contudo, às vezes esquece algumas coisinhas.

No domingo, quem foi ao Teatro das Artes se surpreendeu com o estrondoso sucesso. E na segunda-feira se surpreenderia com outra coisinha: a Bienal Internacional do Livro, que terminou domingo no Riocentro, recebeu 345 autores em 133 encontros com leitores, vendeu 2,5 milhões de livros, e os editores faturaram 43 milhões de reais. Ainda assim, teve tênue presença na mídia.

Apoio precioso

Ligo a peça de Dias Gomes à Bienal do Livro porque a imprensa mostra apenas uma face de Sucupira, como se as outras – o nome do Brasil também é Legião – não tivessem importância, não fossem notícia, não merecessem um escasso registro.

Fiquemos no teatro. Vários Demônios estavam no palco, mas o Lúcifer da manada era Marco Nanini no couro de Odorico Paraguaçu.

É couro e não pele porque o ator, num momento glorioso de sua carreira memorável, sabe interpretar a rudeza daquele que é ‘dotô coroné prefeito’ para Zeca Diabo, em igualdade de talento com o antecessor nesta função, Paulo Gracindo. Sem imitá-lo em nada, o que seria uma tentação, Marco Nanini dá o ar de sua graça, vale dizer, de seu estilo, pois, como todo bom ator, tem seu estilo e é este estilo que nos leva ao cinema ou ao palco para ver filmes e peças.

A adaptação foi feita por Cláudio Paiva, que declara: ‘Na imprensa comecei no Pasquim, fiz O Planeta Diário, publiquei no Jornal do Brasil, fiz alguns fracassos também, mas esses eu não conto pra ninguém’.

No elenco, temos as assanhadas e fofoqueiras irmãs cajazeiras: Bel Garcia (Dulcinéa), Raquel Rocha (Judicéa), Susana Ribeiro (Dorotéa), que conciliam banalidades solenes e amassos imperdíveis com o prefeito; Marcelo Olinto (Dirceu Borboleta) está brilhante no percurso que o leva de desjeitoso caçador de lepidópteros a marido traído que mata a esposa com quem fez voto de castidade.

Aliás, um dos melhores diálogos da peça dá-se quando Dirceu Borboleta diz que é impossível sua mulher estar grávida, pois ele é irmão oblato, e Odorico, que não sabe o que é oblato, pergunta: ‘irmão de quem?’. (Oblato, do latim medieval oblatus, é aquele que se ofereceu para cumprir voluntariamente os votos, como o da castidade, impostos a ordens religiosas).

César Augusto faz três papéis: o funcionário público Chico Moleza, o corrupto Péricles Ananias e Tio Hilário; Gustavo Gasparani faz Primo Ernesto, Nezinho do Burro e o indefectível Zeca Diabo. Patrick Sampaio e Rafael Rocha estão no elenco de apoio, cuja importância nem todos percebem, mas no caso deles nem sei se se pode dizer de ‘apoio’, pois fazem mais do que deles se espera.

Para sair do impasse

Alfredo Dias Gomes, demitido da Rádio Nacional do Rio em 1964, alcançou outros feitos gloriosos, além de O bem-amado. São de sua autoria, entre outros sucessos, os textos de O pagador de promessas, filme com o qual Anselmo Duarte arrebatou a Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1962, e de Roque Santeiro, inicialmente com o título de O berço do herói, entre outros.

Deu muito trabalho a quem o perseguiu, como os censores sabujos dos anos pós-64 que queriam mandar nele, controlá-lo e, se possível, subjugá-lo ou cooptá-lo, mas deixou inesquecíveis lições políticas no que a política tem de essencial: a organização da sociedade e, principalmente, alegrias e uma catarse que não passam nunca.

Quanto ao Brasil, o país muda para que nada mude, seja num remoto município do interior, seja em Brasília, igualmente repletos de Odoricos Paraguaçus. Mas com uma diferença: na peça, Odorico começa como vereador e morre como prefeito. Sabemos que no real nossos Odoricos são também deputados e senadores.

Que bela metáfora do Brasil atrasado, convivendo com o Brasil moderno em mútuas adaptações, é O bem-amado!

Somente o livro vai nos tirar desse impasse, mas para isso precisamos que mais políticos se interessem por livros, o que é um paradoxo: a inserção definitiva do Brasil na Galáxia Gutenberg vai alterar para sempre o perfil de nossos políticos, pois serão outros os eleitores.

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Doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de pesquisa e pós-graduação e coordenador de Letras; seus livros mais recentes são Os Segredos do Baú (Peirópolis) é A Língua Nossa de Cada Dia (Novo Século); www.deonisio.com.br