Sempre ouvi dizer que a vida de Machado (1839-1908) desvaloriza uma biografia, por ele ter sido um homem de cotidiano pacato, funcionário público, escritor recluso, que mal deixou a cidade do Rio de Janeiro, foi casado por 35 anos e não participou de nenhuma espécie de aventura ou tragédia. Além disso, sabemos pouco sobre fatos fundamentais da sua história; não temos certeza de onde estudou, se foi coroinha, quando teve o primeiro ataque epiléptico, quem namorou antes de Carolina. Mesmo assim, sempre fui profundamente interessado não só por sua obra, mas também por sua época, pela maneira como ele vivenciou acontecimentos da história brasileira, pela cidade que viu crescer, pela geração brilhante de intelectuais e, sim, políticos com quem conviveu. Quanto mais eu lia Machado, sobre ele e seu mundo, mais me fascinava. Gradualmente fui percebendo que era assim que podia enxergar um pouco mais de sua personalidade – e ela também se mostrava fascinante.
Machado, como todo grande criador, foi ao mesmo tempo expressão de sua época e exceção a ela. Pelo estudo de sua vida e obra podemos conhecer melhor o Rio e o Brasil da segunda metade do século XIX e também ver como ele foi diferente dos contemporâneos. Sua vida foi mais agitada, rica e significativa do que se supõe.
Ele enfrentou muitos preconceitos de sua época: o preconceito racial, como um mulato escuro que viveu 49 dos 69 anos num Brasil escravocrata; o preconceito social, como um epiléptico de origem muito pobre que tinha grandes ambições literárias; e o preconceito intelectual, como escritor que adotou linguagem concisa e cristalina, rejeitou o otimismo e a religião e jamais aderiu a modas estéticas. Por outro lado, realizou com dignidade rara uma ascensão estável naquela sociedade paternalista: foi ‘apadrinhado’ sucessivamente por escritores, editores e membros da aristocracia; desde cedo adquiriu excelente reputação como autor e como pessoa; viveu intensamente o mundo cultural que a corte promovia, dominando vários idiomas, assistindo a inúmeros espetáculos de ópera e teatro, tendo acesso a jornais e livros estrangeiros; galgou todos os degraus do serviço público, chegando até a assessor de ministro; e morreu consagrado como o maior escritor do período, com obras-primas reconhecidas como Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. Tudo isso revela uma sociedade complexa, a qual Machado levou para seus livros.
Geração de truz
A personalidade de Machado não era menos complexa. Em público era tímido, reservado, até mesmo se excedia em mesuras; mas os mais próximos conheciam um Machado bem mais falante, sorridente e ativo, cheio de ditos espirituosos sobre os mais diversos assuntos. Tinha admiração quase servil por Dom Pedro II, para quem escreveu poemas e cantatas e de quem recebeu elogios e honrarias; ao mesmo tempo, foi um cronista ácido dos atos e fatos do Segundo Reinado, de sua retórica política, do revezamento de oligarquias no poder sem que os problemas sociais fossem atacados. Como escritor, começou como romântico, depois admirou o realismo, mas logo em seguida, diante dos excessos do naturalismo, passou a apontar as limitações das escolas literárias. Do mesmo modo, era monarquista, mas liberal e abolicionista, e criticou o republicanismo por medo de ver a federação desagregada e por apenas mudar os nomes e não as realidades. Era conservador, principalmente nos assuntos morais, como se viu em sua atuação como censor de peças teatrais; mas foi um escritor que enxergou sutilezas e satirizou fraquezas da natureza humana como poucos. Era francófilo, como toda aquela sociedade, mas foi um dos primeiros a se deixar influenciar pela literatura de língua inglesa, por seu humor irônico. Foi exaltado em vida e gostava disso, mas muitos dos atributos críticos de sua ficção não foram compreendidos pelos contemporâneos, interessados em ressaltar seu estilo elegante e seu painel dos costumes.
Mas a vida de Machado interessa por sua obra, e sua obra interessa por refletir o Brasil de sua época – ainda vivo em tantos aspectos – e investigar a natureza humana de sempre. Machado levou para a ficção o jogo de máscaras que conheceu em sua história pessoal, à medida que melhorou de vida, e investigou uma mentalidade que se prendia às aparências e aos interesses, por cima dos méritos e dos afetos. Daí a integridade com que se dedicou à sua obra, reservando para ela a parte mais profunda de seu pensamento, toda sua reação à hipocrisia que via nas inclinações do ser social.
O que Machado viu naquele Brasil em formação foi exatamente a conseqüência nociva do conluio do paternalismo com o escravismo, do cafuné com a exclusão – o véu doce da crueldade contra o indivíduo. E fez mais: ampliou essa interpretação para os temas mais essenciais da condição humana, dando a seu texto uma densidade filosófica inédita na literatura latino-americana. O que é biológico e o que é cultural no comportamento? Tudo se transforma, ou a história se repete em ciclos? O espírito pode curar o corpo e vice-versa ou existe uma dicotomia entre ambos? Machado foi fundo em cada um desses temas. Ao contrário de Flora, sua personagem de Esaú e Jacó, ousou encarar as contradições por muito tempo; jamais se entregou a ilusões de plenitude.
O modo como tratou essas questões universais num contexto local é fascinante. Iluminou mais seu período histórico do que os retratos que procurassem registrar minuciosamente o exterior das coisas e das ações. Ele viu, afinal, o país se tornar nação. Viu a consolidação da unidade nacional pelas guerras e pelas moderações de Dom Pedro II. Viu sua cidade sair do estágio de pouco mais que uma vila rural para o de uma capital urbanizada, relativamente moderna, com uma agenda considerável de eventos e espetáculos. Viu surgir no Brasil a primeira estrada de ferro (1858), o telégrafo (cabeado nacionalmente em 1874), o bonde (1868; sucedido pelo bonde elétrico em 1892), a luz elétrica (1887), até o telefone (1893) e o automóvel (1906); além disso, assistiu à multiplicação dos jornais e revistas graças aos avanços da impressão gráfica e a popularização da fotografia (foi retratado, entre outros, por Marc Ferrez). Essa transição parcial do mundo provinciano e artesanal para o cosmopolita e mecânico é captada por sua prosa ao longo de toda a carreira – uma prosa que é ela também afetada pelo ritmo dessas máquinas e comunicações, como se vê em seus períodos curtos, em seus enredos instáveis, em suas citações e misturas de registros e gêneros. Machado refletiu muito sobre o progresso, quase sempre o aceitando como realidade, quase nunca deixando de ironizar suas promessas; mostrou como ele foi adotado em seu país, muito mais como privilégio do que como cidadania.
Foi uma espécie de pensador na corte. Mesmo depois que o golpe republicano exilou Dom Pedro II, de uma forma que o chocou, não parou de meditar sobre os vícios de uma sociedade que nunca vai às estruturas. A geração a que pertenceu, uma das maiores concentrações de bons intelectos por metro quadrado que o país já teve, foi toda marcada por esses debates que, mais do que opções entre república e monarquia, realismo e romantismo ou Novo Mundo e Velho Mundo, envolviam a própria noção do que é o ser humano, de como ele se deixa seduzir por soluções fáceis, por ilusões grandiosas.
Um dos cem
Em Machado essas visões não se separam. A guinada literária que deu a partir de 1879, por exemplo, não se deve apenas às doenças que o obrigaram a passar uma temporada em Nova Friburgo, da qual voltou com o início de um livro revolucionário embaixo do braço, Brás Cubas. Contaram para ela também sua desilusão com os rumos da sociedade brasileira, suas dúvidas sobre as correntes artísticas, sua percepção de que o mundo supostamente estável e evolutivo em que vivia não o era tanto assim. É por isso que, além de uma mudança literária, Machado alcançou uma originalidade filosófica no mesmo lance: embalar a profundeza melancólica na leveza humorística foi um grande achado intelectual, além de estético. Seu descrédito quanto à natureza humana não veio na forma vagarosa e soturna que normalmente se espera; podia ser expresso de modo ágil e galhofeiro, com a leveza da crônica e da sátira.
Não se pode, assim, entender muitas coisas da obra de Machado se não se tiver em mente a riqueza de sua vida. Se há essa divisão de seus romances em duas fases, antes e depois de Brás Cubas, há também pontos em comum que têm sido menosprezados, como a presença das tramas características do teatro lírico. Do mesmo modo, certos temas recorrentes em seus livros se devem a aspectos recorrentes de sua existência, como o da medicina, já que Machado vivia às voltas com remédios milagrosos que, além de combater dores de barriga e de cabeça, juravam curar os males da alma. Ao relacionar na devida dose a obra e a vida de Machado, podemos, para dar outro exemplo, conferir o peso adequado ao tema da religião em sua obra, que aparece já na escolha dos nomes de personagens. Machado era crítico contumaz da igreja, da manipulação pela fé, da crença numa ordem divina que pressupõe o perdão a tudo.
Ele reagiu aos mais diversos contornos de sua época e lugar, vendo neles os traços das questões de fundo. Mesmo o tema da abolição da escravatura, que aparece de forma explícita apenas em algumas passagens e contos, era indiretamente fundamental em sua obra, preocupada com a liberdade do indivíduo em seu sentido amplo. Entre o romance impressionista e o iluminismo cético, Machado conseguiu descrever um mundo e, ainda, revelar sua dinâmica subjacente.
Não admira que, quase cem anos depois de sua morte, continue a ser um enigma para tantos. Basta ver as fases por que passou a recepção póstuma de sua obra. Para a geração modernista, dos anos 20 e 30, ele soava um ‘colonizado’, na expressão de Mário de Andrade, ou ‘alguém com as costas voltadas para o Brasil’, na de Monteiro Lobato, que detestava suas ‘tramazinhas de adultério’. Sua reputação melhorou com o centenário de seu nascimento, em 1939, mas em parte porque, sendo o auge do getulismo, foi convertido em espécie de ‘milagre mestiço’, quase escritor oficial da pátria, depois de receber sua primeira biografia importante, a de Lúcia Miguel Pereira. Nos anos 40 e 50, porém, passou a ser visto como um escritor mais importante pela criação do que Antonio Candido chamou de ‘esquemas ficcionais’ do que pela galeria de personagens marcantes, femininos e masculinos, que não pára de nos atrair.
Foi só a partir dos anos 60, com a colaboração de intérpretes estrangeiros (Jean-Michel Massa, Helen Caldwell), que se começou a ressaltar a virtude de Machado como crítico social, dono de um olhar mordaz sobre a classe dominante brasileira que não cultiva a ética do trabalho nem o espírito público; e se fizeram avanços importantes na pesquisa de sua vida, com Luís Viana Filho e outros. Ganhou então sua mais exaustiva biografia, de Raimundo Magalhães Jr., atualizada em quatro volumes antes de sua morte em 1981. Desde então, não se viu razão para escrever nova biografia.
No entanto, o reconhecimento à grandeza de Machado não parou de crescer nos últimos 25 anos. Estudos importantes no Brasil (como os de Roberto Schwarz, José Guilherme Merquior, Josué Montello e Alfredo Bosi) e a atenção dispensada por críticos estrangeiros (V.S. Pritchett, Susan Sontag, Carlos Fuentes, Alberto Manguel, John Gledson) mostram uma intensidade de interesse e debate inesgotável. Reedições de seus livros, versões ficcionais de sua vida e adaptações de sua obra para cinema, teatro e TV se multiplicaram. Harold Bloom, o ensaísta americano, o colocou entre os cem gênios literários da história. Ao mesmo tempo, muitos equívocos continuam a vigorar a respeito de seu pensamento e personalidade, como a atribuição a ele de diversas frases de seus personagens. As maneiras pelas quais sua obra leu as entrelinhas de sua época são mais sutis do que se possa imaginar. Esclarecer um pouco dessa complexidade é o objetivo desta biografia.
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Jornalista e escritor