Ótimas resenhas já foram publicadas a respeito da tese, que se tornou livro, da carioca Beatriz Kushnir. Entretanto, é tentador ensaiar novos vieses sobre esse tema, tão espinhoso e caro para o passado dos ‘jornalistas’, principalmente no momento em que se brindam 20 anos da Constituição ‘cidadã’.
Data de 2001 a defesa da tese de doutorado de Kushnir na Universidade Estadual de Campinas, fruto de cinco anos de ricas pesquisas. A historiadora esquadrinhou um prisma articulado de informações embasadas na documentação da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), nas sedes do Arquivo Nacional no Rio de Janeiro e Brasília, da Divisão de Segurança e Informação (DSI) no Rio, da Academia Nacional de Polícia de Brasília, banco de dados da Folha de S.Paulo e no Departamento de Documentação (Dedoc), da Editora Abril.
Além disso, Kushnir teve acesso aos arquivos pessoais da jornalista Ana Maria Machado, da Rádio JB, e de José Silveira, do Jornal do Brasil. Ela realizou ainda 19 entrevistas com jornalistas da Folha da Tarde e 26 outras com jornalistas que puderam colaborar com a composição desse complexo quadro, que aborda o período de 1968 a 1988.
Fase obscura do ‘jornalista’
Diante da censura em vigor na ditadura, no entanto, esse estudo não enfatiza experiências da imprensa alternativa, em exemplares como Opinião, Movimento e Em Tempo, entre outros, ‘não se debruçou sobre a resistência. Não negligencia a sua existência, mas buscou focar um outro lado da questão’. A autora buscou contextualizar e narrar histórias de jornalistas que trocaram as redações pela ‘burocracia’, como técnicos de censura do DCDP, vinculado ao Departamento de Polícia Federal (DPF) e subordinado ao Ministério da Justiça. E também listar os policiais que atuaram como jornalistas.
Ela redesenha ainda o percurso do jornal Folha da Tarde, do Grupo Folha da Manhã, de 1967 a 1984. Para ela, a Folha da Tarde é exemplo claro do colaboracionismo da imprensa com o poder autoritário. Critica, assim, a ditadura alicerçada em pilares civis e militares, circunstância em que ‘permanecer no palco das decisões era mais importante que a busca e a publicação da verdade. Por isso esses jornalistas colaboracionistas são como cães de guarda’.
Em 2004, Cães de Guarda: Jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988 é publicado pela Boitempo Editorial. Em 2007, o jornalista Antônio Aggio Jr. disparou ‘O embuste de Beatriz Kushnir na Unicamp ainda vigora após seis anos‘. Aggio, que atuou na Folha da Tarde em sua fase obscura atrelada às nuances policialescas e oficiosas do periódico, critica ferozmente a obra de Kushnir, usando e abusando das aspas, ora para ironizar, ora para ferir a competência da autora [ver remissões abaixo].
Agindo ‘sob ordens superiores’
No início desse texto, satiriza o título conquistado pela doutora ‘com louvor’ e, em outros trechos, refere-se a ela como ‘pesquisadora’, isto é, as aspas são violentamente depreciativas. Aggio acusa a obra de mentirosa e sensacionalista. Aposta certeira nessas trincheiras da imprensa é que ele detestaria receber aspas desse tom para caracterizar sua própria profissão, ‘jornalista’. Em seu site, Aggio diz que ‘foi repórter de O Tempo (SP) e O Globo (RJ)’, contando ainda os cargos ocupados no Grupo Folha da Manhã. De acordo com Paulo Vasconcellos, no Observatório da Imprensa, Aggio declarou que ‘essa tese é um negócio tortuoso para garantir o título de doutora à historiadora’.
Ao lado de Aggio, parcela da imprensa se comportou como um cão raivoso diante das revelações e severas críticas de Kushnir. Pudera, uma vez que a autora escancara parte da história que muitos ‘jornalistas’ – aspas na mesma moeda de Aggio – prefeririam esquecer. À época, diz Beatriz Kushnir na página 52, ‘na arena do poder, podem-se vislumbrar duas instâncias: a do Estado autoritário naquele momento e o quarto poder, visão imputada à imprensa. A reflexão, portanto, apreende um universo de conveniências e possibilidades, que esses dois locus de domínio e suas incumbências sociais impõem como responsabilidade’. Nesse contexto, a reflexão nos atrai para questões delicadas, como o caráter de colaboração e conivência explícita em parcela da imprensa diante do Estado autoritário.
A quem ainda recorre à escusa ‘de ordem superior’, um pensamento do sociólogo Elias Canetti cai como uma luva:
‘É sabido que homens agindo sob ordens são capazes dos atos mais terríveis. Quando a fonte de suas ordens é obstruída e eles são obrigados a contemplar seus atos do passado, eles não reconhecem a si próprios. Dizem que não fizeram e nem sempre têm claro para si que estão mentindo.’
Infidelidade canina
A Folha da Tarde foi criada em 1º de julho de 1949 sob a égide de ser o ‘vespertino das multidões’. Sua jornada foi interrompida em 1959, retornando em 1967 e sendo extinta definitivamente em 21 de março de 1984.
Surpreendente, mas sua atuação oscilou tanto na esquerda engajada quanto na de partidários do autoritarismo que reinava no Brasil. O corpo da redação da Folha da Tarde é nitidamente diferente nos marcos de antes e de depois do AI-5. Para Kushnir, ‘a existência dessas duas castas se cruza intimamente com os acontecimentos políticos do momento. Além de reportar a realidade para as folhas impressas, muitos dos que lá trabalharam tiveram engajamento contra ou a favor da repressão’. É possível sequer considerar a fidelidade nessa areia movediça?
A 1967, a Folha da Tarde retorna com uma diretriz, ‘naquele instante, de reportar a efervescência cultural e as manifestações estudantis a pleno vapor’. Esse seria o momento da Folha do ‘logotipo vermelho’, um modelo de jornalismo de oposição, em que uma fatia de mercado abria espaço para uma publicação dessa tendência, articulada com os movimentos estudantis. Nessa fase, o jornal tinha como diretor o carioca Jorge Miranda Jordão e contava em sua redação com Raimundo Pereira e Frei Betto. Detalhe: é ingenuidade pensar que essa politização da Folha da Tarde era genuína, pois para a historiadora, com razão, o que se passou não foi nada além de ‘oportunismo mercadológico’ por parte da cúpula do Grupo Folha.
Após o Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, esse caráter se tornou insustentável e perdurou até meados de 1969, quando passaram a reinar as trevas. O quadro da redação foi alterado, passando à direção do jornal Antonio Aggio Jr. Na página 321, Kushnir conta que ‘a proposta era torná-lo o oposto daquele do período dirigido por Miranda João, dando muita ênfase às narrativas policiais. Mas essa diferença nunca foi claramente explicitada, nem há declarações de Aggio sobre isso. Essa manobra foi, portanto, ao mesmo tempo, subjacente como também escancarada nas diferenças que o jornal passou a apresentar’.
Diferenças visíveis, tanto que a Folha da Tarde pôde ser considerada um porta-voz, o ‘diário oficial’ da Operação Bandeirantes, a Oban, por publicar informes oficiais do governo como se fossem reportagens. Além disso, a partir de 1969 passaram a circular pelas redações os setoristas, isto é, jornalistas credenciados e vinculados à seara policial, dentre os quais se destacam o repórter & major da PM Edson Corrêa e o editor de Internacional & agente do Dops Carlos Antonio Guimarães Sequeira.
A autora
Beatriz Kushnir é graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (1989), com mestrado em História Social pela Universidade Federal Fluminense (1994), doutorado em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (2001) e pós-doutorado pela Universidade Estadual de Campinas (2005). Atualmente é diretora do Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro.Durante seu doutorado, a pesquisadora se debruçou sobre a questão da imprensa e da censura na ditadura militar.
É autora dos livros Baile de Máscaras: Mulheres judias e prostituição (Editora Imago, 1996), Cães de Guarda (Boitempo Editorial, 2004) e organizadora de Perfis Cruzados: trajetórias e militância política no Brasil (Editora Imago, 2002).
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Jornalista, mestranda em História Social pela USP, São Paulo, SP