Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O caso Diogo Mainardi

A revista Veja tem uma coluna imperdível toda semana. É a de Diogo Mainardi, cujo mau humor encontrou no jornalismo a vazão com que inundou o romance Contra o Brasil (Companhia das Letras, 214 páginas), lançado em 1998.

Diogo estreara na literatura com Malthus (1989), seguido de Arquipélago (1992) e de Polígono das Secas (1995). O próprio escritor já declarou que encontrou poucos leitores para esses livros, o que, em se tratando de Contra o Brasil, principalmente, é uma pena. De extraordinário é o autor admitir isto, pois autores brasileiros costumam vender pouco, mas ninguém lhes arranca declaração que não seja eivada de insinuações de que seus livros, se não são sucesso de público, são sucesso de crítica. Reforçando a tese, encontramos escritores bafejados por críticas universitárias e resenhas na imprensa que têm algo em comum: tratam de livros desconhecidos dos leitores.

Vamos ao romance, com o fim de iluminar suas colunas. Pimenta Bueno herdou da família o decadente Cine Bandeirantes, habitado por mendigos. Ao tentar expulsá-los, leva uma surra. Em companhia de Azor, marido da empregada Zenith, abandona a mulher Lavínia e sai em fuga pelo sertão em busca das linhas telegráficas instaladas pelo marechal Rondon. Quer encontrar os índios nambiquara, o povo mais primitivo do mundo, segundo relatos documentais e insuspeitos de célebres antropólogos.

Mas ao chegar à aldeia, constata que alguns índios muito espertos andam de jipe e vendem madeira a exploradores. Mainardi antecipou o imbróglio que envolveu recentemente a chacina de dezenas de garimpeiros, perpetrada pelos índios cinta-larga, que mais uma vez deixou boquiabertos os leitores da imprensa estrangeira. Aqui já estamos acostumados a muita violência. O inédito desta vez foi que índios mataram brancos. Quase sempre era o contrário.

A anti-saga desse anti-herói de Mainardi termina na Europa, depois de Pimenta Bueno fracassar na tentativa de restaurar a primitividade original dos nambiquara. Tendo deixado vários cadáveres no percurso, acaba disfarçado em além-mar, enganando mães solteiras e assobiando certa música de Chopin que pensou estar sendo executada por acordes flatulentos dos nambiquara.

‘Os mais vendidos’

Escritores que já foram alvo das ácidas críticas de Mainardi poderão brandir o ditado: casa de ferreiro, espeto de pau. Pois Mainardi não demora a mostrar suas insuficiências, principalmente na caracterização dos personagens coadjuvantes, que aparecem e saem da narrativa sem muitos nexos com a figura solar de Pimenta Bueno, este, sim, esplendidamente caracterizado.

Na passagem deste século, o conde Affonso Celso vendeu 300 mil exemplares de um pequeno livro intitulado Por Que Me Ufano De Meu País, com o subtítulo em inglês: Right or wrong, my country, cujo primeiro equívoco já estava na escolha de expressão da língua inglesa para proclamar glórias nacionais.

Em lugar do otimismo de Affonso Celso, Mainardi insiste com seu pessimismo. Seu romance mostrou que não vale a pena confiar no Brasil ou nos brasileiros. Mas, depois que deixou a ficção de lado, pelo menos temporariamente, vem dando curso a seu projeto por outro caminho, o do jornalismo, e nele encontrou um tom muito apropriado para suas críticas. Freqüentemente suas colunas provocam verdadeiras inundações de cartas e mensagens à redação da Veja.

Esta semana deu-se coisa muito curiosa. Enquanto numa ponta da revista (nº 1.851, de 28/4/04) Diogo Mainardi ironizava o movimento Viva Rio, que ‘dá aulas de balé e de teatro na favela’, a escritora Lya Luft escrevia em Ponto de Vista: ‘Cada vez que um de nós consome uma droga qualquer (mesmo o cigarrinho de maconha dividido com a turma), está botando no cano de uma arma a bala – perdida ou não – que vai matar uma criança, uma mãe de família, um trabalhador’.

Os ‘mais vendidos’ da edição desta semana da Veja indicam que Lya Luft ocupa o primeiro e o segundo lugares de não-ficção. Perdas & Ganhos está há 39 semanas em primeiro lugar, marca respeitável, que engrandece nossas letras. O segundo lugar da lista também é ocupado por ela, com Pensar É Transgredir, há quase dois meses ali.

Se Lya consola, adverte e recomenda, Mainardi ironiza, debocha e fustiga: ‘Pelos cálculos da FGV, erradicar toda essa miséria é muito mais simples e barato do que parece’. O escritor se refere ao ‘Mapa da Fome’, da Fundação Getúlio Vargas, segundo o qual ‘um terço da população brasileira vive em estado de miséria absoluta’.

Iniciativa saudável

O escritor irlandês Jonathan Swift, nascido em 1667 e falecido em 1745, propôs que fossem feitas salsichas de carne de crianças para matar a fome dos adultos, em violenta sátira à sociedade inglesa. Diogo Mainardi segue este padrão sarcástico em suas colunas semanais na Veja.

Nenhum escritor parece conseguir alguma coisa com a sua ferramenta de trabalho, a palavra, nos livros ou na imprensa. Consola-nos, entretanto, a certeza de que nenhum juízo de nossos contemporâneos nos absolve ou condena, pois a literatura consolida-se ou não na posteridade, com prazos mais longos. De todo modo, louve-se o leque de ofertas de pontos de vista, ensejados pela imprensa.

Por mais que um livro seja muito lido, nenhum deles alcançará o público de coluna de jornal, revista ou portal da internet. Mas uma conclusão se impõe: por mais que capriche, nenhum escritor tem semanalmente a calma de que desfruta para escrever seu romance. Nas colunas, o tormento da pressa revela-o em carne viva. Neste ponto, vale a sinceridade, a conversa clara.

Os dois escritores apresentados nesta semana em Veja revelaram isso: na divergência, a sinceridade. Os livros mais recentes de Lya Luft contrastam com a amargura presente nos romances que a tornaram conhecida e a remetem a seus primeiros textos, poesias e crônicas publicadas antes da estrear como romancista, marcadas por uma ingenuidade tocante. Já as colunas habituais de Diogo Mainardi vinculam sua prosa à do narrador de Contra o Brasil, eivadas de uma má vontade com os poderes, quaisquer que sejam eles, pois que o autor se insurge contra todos.

O que talvez Veja poderia fazer seria alternar o ponto de vista de Diogo Mainardi com outros, de mirante diverso, como fez esta semana, em saudável iniciativa. Com efeito, o pessimismo esclarece, mas quando é assim insistente, pode provocar uma depressão quase insuportável pela repetição. Além do mais, que outros escritores deixem os livros e venham ao proscênio da imprensa escrever, falar e mostrar outros pontos de vista. Os leitores ganharão muito com isso.