Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O cinema nos tempos do marketing

Um cinema que reflete o país: esta é a tônica das análises do livro Cinema de Novo – Um balanço crítico da Retomada, do crítico de cinema Luiz Zanin Oricchio, recentemente lançado pela Estação Liberdade. O autor, que também é editor do caderno Cultura de O Estado de S. Paulo, faz um recorte preciso para levar a termo sua análise: a produção cinematográfica do período pós-desmanche da era Collor, desde Carlota Joaquina, de 1995, até a estréia de Cidade de Deus, em 2002. Não por acaso o período que quase coincide com a fase que ficou conhecida como ‘o cinema da Retomada’.

Não se espere, porém, uma crítica com pretensões ao absoluto nem tampouco um estudo pormenorizado dos filmes da preferência do autor. Zanin atrela a escolha das obras aos objetivos que empreende no livro e deixa claro desde o início seu caráter de investigador da cultura, num sentido mais amplo. Assim, investiga não apenas as intenções e as recepções de cada produção, como também o contexto que a suscitou, e como a obra interferiu nesse contexto. No prefácio do livro, outro crítico, Ismail Xavier, capta um sentido muito sutil do que Zanin buscou em seu livro: ‘O autor assume de forma sistemática uma premissa dialógica, de comparação, definição recíproca dos termos, na condução da crítica’.

O que você pretendeu ao escrever Cinema de Novo? Qual o seu fundamento de análise?

Luiz Zanin Oricchio – Pretendi verificar como o cinema da Retomada trabalhava certos temas ligados à representação do Brasil. Daí a estrutura: a relação com a história, o diálogo com o estrangeiro, as imagens da violência etc. Imagino um percurso desse imaginário durante os anos 90 e começo de 2000 e termino com Cidade de Deus, que me parece emblemático dessa trajetória. Assim, a minha ‘metodologia’ é menos a de um crítico de cinema, no sentido tradicional, do que a de um investigador da cultura, que trabalha, nesse caso específico, com um ramo em particular, que é o cinema. Daí também o espaço concedido a filmes que não me agradam, mas que são representativos, e a ausência de filmes que adoro. Muita gente não entendeu essas opções, porque também não entendeu a intenção do livro.

Em seu livro, você aponta como fator determinante a comunicação do cinema brasileiro com o público. O que mudou nessa relação?

L.Z.O. – Houve uma mudança para melhor. Basta ver as estatísticas, o que não quer dizer que os filmes tenham melhorado, necessariamente. Essa é uma outra questão. Mas, pelo menos, o cinema brasileiro dá mostras de que está saindo do gueto.

O cinema da Retomada atingiu as massas ou essa é uma falsa impressão? Por exemplo: quando você fala das produções de Xuxa ou de Renato Aragão, estes poderiam ser considerados como filmes da Retomada?

L.Z.O. – São filmes da Retomada porque foram feitos no período considerado. São filmes derivados da TV, e esse é o seu ponto forte. De certa forma, eles serviram de laboratório para outros produtos do gênero, como Lisbela e O prisioneiro, por exemplo, extensões da TV no cinema e sucessos garantidos num país em que a TV tem a importância que tem.

A cineasta Suzana Amaral afirma que o cinema brasileiro está adotando a linguagem da TV, deixando de ser cinema. Como você vê essa relação cinema-TV, tendo como referência sobretudo as produções da Globo Filme?

L.Z.O. – O último capítulo do livro é dedicado a essa polêmica, a esse, como eu chamo, ‘conflito de linguagens no cinema brasileiro’. Vejo que estão se formando duas posições excludentes quanto ao diálogo entre TV e cinema, ou entre cinema e publicidade. Admito que possa haver um perigo de contaminação excessiva. Mas a minha impressão é que essa hibridação é inevitável. Se for usada de modo criativo pode ser até estimulante, como mostram os casos de Fernando Meirelles e Beto Brant.

Ao privilegiar a análise de filmes de ficção, você não deixou de lado o documentário, um dos gêneros mais fecundos atualmente?

L.Z.O. – Vários documentários estão contemplados no livro. Por exemplo, em representação da história, falo extensamente de Rádio Auriverde, depois de A cobra fumou e outros, ligados à memória militar. Em Sertão e favela, há os documentário de Eduardo Coutinho, como Santo forte e Babilônia 2000. De certo modo, ao analisar os filmes, achei que a representação do Brasil entrava de modo mais evidente em filmes de ficção do que em muitos documentários. Daí alguns deles, de que gosto muito, terem ficado de fora. No primeiro capítulo deixo claro que não pretendo fazer um catálogo comentado de filmes. Talvez o subtítulo – ‘um balanço crítico da Retomada’ – induza alguns leitores a essa suposição. Um produtor, em Brasília, me perguntou se eu não tinha tido infância, porque não incluí filmes como Menino maluquinho, por exemplo.

A perceptível influência do cinema americano é saudável à produção brasileira?

L.Z.O. – Em toda a sua história o cinema brasileiro sempre esteve aberto a influências, o que é a coisa mais normal do mundo. O que não deve é ter um única influência, porque aí vira pastiche.

No livro você usa uma epígrafe de Benedetto Croce: ‘Toda história é contemporânea’. O cinema da Retomada cumpriu bem esse papel de releitura do passado brasileiro?

L.Z.O. – Tentou cumprir, mas é claro que essa é uma tarefa difícil. Mas mesmo quando não cumpriu à altura foi um sintoma de que a história estava sendo feita. Por exemplo, um filme de que não gosto, Mauá, só poderia aparecer numa época de profundo ufanismo em relação ao mercado e à livre iniciativa. É um sintoma, revelador, mesmo que não pretenda isso. O mesmo se pode dizer de Canudos e de outros filmes.

A morte das ideologias se refletiu na produção e na recepção do cinema brasileiro dos últimos 10 anos?

L.Z.O. – Sem dúvida. Não há mais um ‘campo unificado’ a partir do qual a esquerda possa se pensar. Tudo está em aberto e as pessoas se sentem livres para pensar o mundo por conta própria, com todas as impropriedades e angústias que isso possa custar. Meu trabalho, com o livro, foi tentar mostrar como essa liberdade não era absoluta, mas se dava segundo algumas linhas de força. Ou seja: a diversidade também tem seus caminhos preferenciais.

O que o surgimento da Ancine (Agência Nacional de Cinema) pode trazer de bom para o cinema brasileiro?

L.Z.O. – Pode tirá-lo do esquema de aplicação de leis de incentivo segundo a vontade dos diretores de marketing das empresas investidoras. O que seria um bom negócio. Mas francamente acho que tudo está muito incerto ainda para que se veja o horizonte com clareza. Depende do que acontecerá com a absorção da Ancine pelo MinC. Mais uma vez: o jogo está aberto.

Com a Lei do Audiovisual, quem está determinando o que será visto nas telas: os roteiristas e diretores ou os diretores de marketing?

L.Z.O. – Diretores de marketing acabaram virando conselheiros de roteiros e projetos, o que é uma deformação tão grave quanto Chatô. No caso, o cinema acaba entrando na linha geral da ‘publicitarização’ do real, que é uma característica do nosso tempo, e vai das artes ao futebol. O fato de ser geral não o torna melhor ou mais aceitável.

Por falar em Chatô, como você viu a polêmica em torno do filme?

L.Z.O. – Como um caso exemplar de que as leis de incentivo e sua aplicação precisam ser repensadas. Chatô é só a vistosa ponta do iceberg, o que não serve como desculpa. Mas ele só foi possível num contexto de desvios de rota em relação à aplicação das leis.

Que analogias estéticas você faria entre o Cinema Novo e o cinema da Retomada?

L.Z.O. – O Cinema Novo aparece mais como uma reserva ética e estética de grande energia do que como um modelo a ser seguido, com alguns entendem. Para mim, a adesão ao paradigma é saudosista e não se sustenta: ninguém repete experiências desse porte em épocas historicamente diversas. A não ser como farsa.

Você fala em ‘mal-estar’ na sociedade contemporânea. Em que medida o cinema da Retomada vem refletindo esse estado de coisas?

L.Z.O. – Talvez esse mal-estar sem diagnóstico seja a melhor expressão do cinema da Retomada, ou, claro, de parte dele. Filmes como O invasor, Cidade de Deus e outros ligados à violência urbana o expressam bem. Mas o que melhor vai nesse caminho, a meu ver, é Estorvo, do Ruy Guerra.

Num sentido mais amplo, que papel cumpre o cinema na sociedade contemporânea?

L.Z.O. – Ainda é uma caixa de ressonância privilegiada, com mais efeito social do que a literatura, por exemplo, pelo menos na iletrada sociedade brasileira. Ainda é importante, embora tenha perdido espaço desde os anos 60 para cá. No tempo do Cinema Novo, o cineasta era um intelectual engajado, ao lado de seus colegas da literatura, do teatro, da música etc. Hoje esse espaço encolheu, porque as pessoas também se encolheram. A preocupação da maioria é como viabilizar o próximo projeto, com ‘ocupar uma fatia de mercado’ etc. Ninguém faz nada de significativo com objetivos tão modestos.

Como você vê o jornalismo cultural que se pratica hoje no tocante ao cinema?

L.Z.O. – Muito heterogêneo. Como você deve saber, uma boa parte dedica-se a fofocas e ‘entrevistinhas’ com astros e estrelas. Não se deve crucificar os jornalistas. São os editores e donos das publicações que devem estar convencidos de que é isso o que o público quer. Outra parte leva o cinema a sério e tenta entendê-lo como manifestação artística e cultural. É uma minoria. Mas existe, e o simples fato de ainda existir deve ser comemorado.

Quais são os seus filmes preferidos do período que você trata no livro?

L.Z.O. – Um céu de estrelas, Baile perfumado, Como nascem os anjos, Estorvo, Santo forte, Cidade de Deus, Amarelo manga.

Trechos

‘(…) Boa parte do cinema produzido no Brasil durante esses anos levou em conta as condições do país. Bem ou mal, debruçou-se sobre temas como o abismo de classes que compõe o perfil da sociedade brasileira, tentou compreender a história do país e examinou os impasses da modernidade na estrutura das grandes cidades. Foi ao sertão e às favelas e reinterpretou estes espaços privilegiados de reflexão do cinema nacional (…). Como pôde, examinou o caráter das novas relações amorosas surgidas com a modernização, ensaiou volta ao regionalismo e ao metacinema e refletiu sobre temas difíceis (e tão enraizados no imaginário nacional) como o relacionamento do brasileiro com o Outro – o estrangeiro, aquele que não faz parte do ‘nós’’. (p. 24)

‘Este livro procura mostrar um retrato do cinema multifacetado que saiu do conjunto de situações esboçado acima. Por um lado, o desmanche da era Collor deu à década de 1990 um sentido de ‘grau zero’ para o cinema brasileiro. Um recomeço do nada, ou ao menos assim se apresentava. Por outro, não se pode ignorar que o cinema que renasce é tributário de uma determinada forma de produção, baseada em renúncia fiscal e controlada, ao menos em parte, pelos departamentos de marketing das empresas investidoras.’ (p. 29)

‘Alguns filmes estão aí para demonstrar que parte do cinema mais vital da Retomada tira seu vigor justamente da utilização criativa dessas novas linguagens, seja da publicidade, da tevê ou do videoclipe, e de sua incorporação na linguagem cinematográfica. No caso, para entendermos o que está se passando, devemos fazer uma cuidadosa distinção entre o que é utilização oportunista de uma linguagem de aceitação popular e sua incorporação criativa à gramática do cinema.’ (p. 228)

‘Alguns realizadores como Beto Brant, Tata Amaral, Fernando Meirelles, Jorge Furtado, Murilo Salles são expoentes deste novíssimo cinema que se faz no Brasil. Fazem um cinema que se quer social, mas não recusam o diálogo com as linguagens contemporâneas, venham de onde vierem. Da publicidade e da televisão, por certo, mas também de um cinema tido por colonizador, o norte-americano, que, segundo o mandamento anterior, deveria ser evitado a todo custo. Proponho chamar essa atitude mais aberta, onívora, disposta a dialogar com tudo o que estiver disponível, de ‘cinema impuro’.’ (p. 229)

‘É nesse sentido que se deve entender o cinema mais vigoroso que está sendo feito no Brasil. Tematicamente, ele se incorpora ao trabalho de meditação sobre o país e suas contradições. Estilisticamente, dialoga com as tendências do seu tempo, ou seja, com linguagens cinematográficas importadas – Tarantino, Scorsese, Coppola, Iñarritu, entre outros, mas também com as linguagens da televisão, do clipe e da publicidade. Essa hibridação cruzada (porque também o cinema faz o caminho de volta e fertiliza as outras linguagens) é inevitável e acontecerá com freqüência cada vez maior num mundo de trocas culturais mais fáceis e rápidas.’ (p. 233)

******

Editor, jornalista e escritor