Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O crime ressuscitado

O senador Pinheiro Machado, assassinado no Rio, em 1915, aos 63 anos, é o personagem solar do novo romance de Sinval Medina, A Faca e o Mandarim. É de leitura imperdível e será uma pena se for conhecido apenas dos leitores de nossos indispensáveis suplementos literários, pois ilumina a vida política brasileira a partir de um mirante privilegiado e interessa a todos.

Os jornais de 9 de setembro, resumiam o crime político do dia anterior, cometido ao redor das 16h30, quando o senador descia as escadas conversando em companhia de amigos. Como diz Millôr Fernandes, ontem se escrevia ‘hontem’ e hoje se escrevia ‘oje’. E vieram as pinceladas que chamavam a atenção dos leitores:

‘O general Pinheiro Machado foi, hontem, à tarde assassinado no saguão do Hotel dos Estrangeiros. O criminoso, natural do Rio Grande do Sul, foi preso, declarando ter agido por conta própria. O que dizem as testemunhas de vista da trágica scena. As Forças de terra e mar estão de promptidão’.

A Gazeta de Notícias descreveu assim o trágico acontecimento, em sua edição de 9 de setembro de 1915:

‘Deixando o Senado, S.Ex. tornou a tomar o seu automovel para fazer varias visitas, entre as quaes uma ao sr. dr. Rubião, chegado de S. Paulo e que se hospedara no Hotel dos Estrangeiros. Era a fatalidade do destino a chamal-o ao ponto onde o esperava a morte!

Chegando ao vestibulo do Hotel dos Estrangeiros, o vice-presidente do Senado encontrou os srs. Cardoso de Almeida e Bueno de Andrade, deputados federaes pelo Estado de S. Paulo.

Dirigindo-se a esses cavalheiros o sr. general Pinheiro Machado, convidou-os, galhofeiramente, para subirem aos aposentos do dr. Rubião Junior, ‘afim de visital-o e ouvirem historias engraçadas’, phrase textual, proferida pelo senador rio-grandense.

Os srs. Cardoso de Almeida e Bueno de Andrade, seguindo uma versão subiram, ladeando o Sr. Pinheiro e recusaram-se subir consoante outra versão, dizendo em tom de pilheria: – Suba você sosinho…

O facto é que o sr. Pinheiro Machado foi apunhalado pelas costas, quando atravessava o saguão para entrar na sala do hotel.

O assassino, ao que parece, não conhecia o general Pinheiro Machado, tanto assim que perguntou a uma pessoa presente quem era o vice-presidente do Senado Federal.

Ao sentir-se ferido, mortalmente, o sr. Pinheiro Machado, desceu tranquillamente as escadas e, encaminhando-se para a sala de visitas do hotel declarou estar ferido, sentando-se em uma cadeira, e expirando minutos após.

Como é natural, o assassinato do vice-presidente do Senado divulgou-se com extrema rapidez e o Hotel dos Estrangeiros enchia-se de amigos e correligionarios de S. Ex.

A primeira pessoa que chegou ao Hotel dos Estrangeiros foi o sr. ministro da Justiça, que estava ligeiramente enfermo.

Ferindo mortalmente o sr. Pinheiro Machado, o seu assassino, desceu as escadas e entregou o punhal homicida ao sr. Cardoso de Almeida. (…)’

‘As difficuldades do paiz’

Mudou mais do que a ortografia nesses quase 90 anos que nos separam de mais um célebre crime político. A nossa proclamada cordialidade de vez em quando é assaltada por esses espasmos e recorremos, não à habitual conciliação de nossas elites, mas ao braço armado. No atacado, com as revoluções. E no varejo, com crimes, alguns dos quais sepultados para sempre com seus mistérios.

No caso do senador Pinheiro Machado, o assassino foi identificado rapidamente. Ele apunhalou o senador pelas costas. Seu nome: Francisco Manso de Paiva Coimbra. O maior medo que disse ter era ser executado na Casa de Detenção porque sabia que o diretor era amigo do senador. O Brasil! Ontem como hoje, as relações parecem valer mais do que as leis.

O Século, no mesmo dia 9 de setembro de 1915, não deixa dúvida sobre a agilidade dos jornais há quase 90 anos! Observe-se a abertura do texto.

‘A hora adiantada da tarde em que foi perpetrado o assassinato do senador Pinheiro Machado, quando já havia saido a nossa segunda edição, só nos permittiu que em uma terceira edição dessemos em rapidas notas a noticia confirmadora do crime, quando ainda não se sabiam os pormenores da scena de sangue. Passamos por isso, a narrar, em breves linhas, como occorreu o crime.

O senador Pinheiro Machado chegava, de automovel, ao Hotel dos Estrangeiros onde ia visitar o dr. Albuquerque Lins, ex-presidente de S. Paulo. Nesse momento encontravam-se na portaria os deputados Bueno de Andrade e Cardoso de Almeida, que chegara pouco antes.

Conversavam os dois congressistas quando viram o senador Pinheiro que interrogava o porteiro do hotel. Cumprimentaram-se os tres politicos. O sr. Cardoso de Almeida interrogou o general Pinheiro Machado: – Sr. chefe, como passa? O general respondeu brincando com esta expressão: – Adeus bacharel. Você como vae?

O sr. Cardoso de Almeida declarou, então, sabedor de que o seu collega Bueno de Andrade não encontrara o dr. Rubião Junior, que tambem o dr. Albuquerque Lins se acha hospedado no hotel, o general Pinheiro Machado asseverou que ali fôra visital-o.

O senador Pinheiro recebeu então communicação de que o dr. Albuquerque Lins o esperava. O sr. Cardoso de Almeida quiz se retirar para os seus aposentos, mas diante do convite insistente do sr. Pinheiro Machado, resolveu acompanhal-o.

Ladeado pelos dois deputados, encaminhou-se o general do saguão para o interior do hotel. Ao se approximarem o general e os dois companheiros do salão de leitura no hotel, um individuo apunhalou pelas costas o chefe do Partido Conservador. Este virou-se, rapidamente, e exclamou, com indignação: – Canalha!

O assassino saiu a correr para a praça José de Alencar. O dr. Bueno de Andrade, que não comprehendeu, ao primeiro momento a gravidade do facto, não presumindo que o general Pinheiro Machado houvesse sido ferido, interrogou:

– Que quer dizer isto?

– Estou apunhalado, respondeu o senador Pinheiro.

O sr. Cardoso de Almeida saiu em perseguição do aggressor, em companhia de outras pessoas, prendendo-o logo adiante, sem a menor resistencia e confessando elle o crime.

Dentro do hotel o senador Pinheiro Machado caiu sem pronunciar mais palavra alguma, expirando pouco depois, sendo inuteis os soccorros que lhe prestaram. (…)’.

E A Tribuna seguiu com diapasão semelhante, ressalvadas em itálico, pelo signatário que transcreve estas linhas, a crítica que ousou embutir:

‘Foi um verdadeiro estupôr a sensação que causou, ao cahir da tarde de hontem, a noticia do assassinato do sr. general Pinheiro Machado, vice-presidente do Senado e chefe do Partido Republicano Conservador.

O barbaro, o hediondo crime de hontem relegou para um plano muito remoto todas as cogitações partidarias em torno do valoroso vulto republicano que cahia victima da sanha de um facinora. Crimes como o de hontem envergonham uma sociedade inteira, ao mesmo tempo em que a enxovalham e ameaçam no que ella tem de mais nobre e mais elevado.

Pode-se affirmar sem receio de exaggero que o gesto estupido que roubou a vida do general Pinheiro Machado não encontrou duas modalidades diversas de julgamento.

A sociedade affrontada por essa erupção de barbaria inqualificavel, foi unanime na indignação que verberou o scelerado que descera á pratica daquella hediondez sem nome. O que revolta particularmente no crime de hontem é o risonho cynismo desse monstro humano, que vinha seguindo semanas a fio, a sua nobre victima, espreitando o momento propicio para traiçoeiramente, cravar-lhe o punhal pelas costas!

Quiz a ironia do destino que o general Pinheiro Machado, homem cavalheiresco e altivo e possuidor de qualidades excepcionaes de coragem, experimentadas em muitos campos de batalha e em varias pendencias de honra, viesse cahir victima de um braço covarde e traiçoeiro, a serviço da loucura de um cerebro inculto. As ultimas palavras do illustre vulto republicano mostram que elle apezar da fulminante rapidez da scena, percebera nitidamente o alcance do que succedia: – Ó canalha!

E nesta expressão, que precedeu de segundos as duas ultimas palavras que pronunciou, resumia-se todo um infinito desprezo pelo abjecto assassino que lhe cravara no coração a fina lamina de um punhal reluzente…

Não ha, em toda a sociedade, como diziamos, duas maneiras para julgar o assassinato do general Pinheiro Machado. Mesmo seus adversarios politicos mais intransigentes ververaram com indignação a criminosa loucura desse facinora que enxovalhou a nossa civilisação, dando largas aos seus instinctos selvagens e repugnantes.

Não é este ainda o momento para falar da verdadeira significação politica do assassinado no complexo da vida nacional. A historia, expurgando-lhe a figura dos erros que commetteu, ha de fazer-lhe justiça, colocando-o na plana dos seus melhores e mais devotados servidores.

Mas o que parece innegavel é que o crime de hontem pode aggravar de muito as difficuldades do paiz. (…)

Vaticínio cumprido

Natural de Cruz Alta, no Rio Grande do Sul, o senador era conhecido como ‘o chefe’. E nos embates parlamentares tinha como oponente principal ‘o mestre’, como era alcunhado Rui Barbosa. O primeiro era conservador. O segundo, liberal. Eram as duas grandes forças antagônicas na vida política do período, a República Velha.

Sinval Medina dá idéia precisa do cotidiano do famoso político:

‘Todo santo dia. Chova ou faça sol. Um entra-e-sai interminável. Políticos. Jornalistas. Amigos. Tudo gente em busca de ajuda. Emprego. Cartas de recomendação. Dinheiro. A inana começa antes do almoço e só termina após as dez da noite. Alguns comparecem por dias seguidos, contritos como se fossem à missa’.

O século que nos daria o sacerdote e o feiticeiro, como Elio Gaspari qualificou respectivamente os generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, gaúchos como Pinheiro Machado, tinha pouco mais de uma década de vigência quando a República, consolidada depois das guerras fratricidas, encontrava em figuras como o senador, Júlio de Castilhos e Assis Brasil, alguns dos seus maiores expoentes.

‘O senador dá mais audiência do que o presidente da República’, afirma o narrador. O jornalista Custódio de Paiva Lima, prestes a se aposentar, tira licença de três meses para escrever suas memórias, ainda que não goste de escrever. Este é o recurso narrativo de que se serviu o autor.

A princípio, de acordo com os registros da época, creditou-se o assassinato a um complexo, sinistro e misterioso complô. O tempo demonstrou que o senador de tantos inimigos morreu apunhalado por um indivíduo que não o conhecia, que praticou o crime sem ordens de ninguém, apenas por suas desordens interiores. Ele sofria das faculdades mentais, como era moda dizer no período. Seu sobrenome, uma ironia: Manso. Sua profissão: pedreiro. Morava sozinho numa pensão.

Era preciso coragem para lançar um romance de 600 páginas. E Pedro Paulo de Sena Madureira, que sempre utilizou como critério a qualidade dos textos, acolheu na editora A Girafa o original de uma autor a quem os alemães incluíram, ainda na década de 1980, na Feira Internacional do Livro de Frankfurt, como um dos romancistas brasileiros que mais prometiam. Pois está cumprindo o vaticínio feito na Europa, distante de nossa vida intelectual, às vezes tão vulnerável a paróquias insensatas.