[do release da editora]
O escritor carioca Lima Barreto (Afonso Henriques de Lima Barreto, 1881-1922) é hoje considerado o mais importante romancista brasileiro do começo do século passado. Em um de seus romances principais, Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, publicado pela primeira vez em 1919, ele confessa, pela boca do protagonista, a propósito da cidade do Rio de Janeiro: ‘Vivo nela e ela vive em mim’. Toda a sua obra, de fato, está impregnada do Rio, notadamente do subúrbio, não só da topografia suburbana mas sobretudo do elemento humano que a povoa.
Na sua longa, intensa e às vezes conflituosa relação com a imprensa, que as crônicas, aqui reunidas universalmente pela primeira vez, perpetuam, a cidade pulsa de par com as grandes questões da época, nos campos do ensino, das conquistas femininas (voto e trabalho, por exemplo), da cultura (a literatura em destaque), da guerra, das doutrinas políticas, da problemática racial, do lazer (carnaval e futebol).
Neto de escravos, mulato, pequeno funcionário público, doente, despido de elegância formal, dado à bebida, subestimado e repudiado pela sociedade e a intelectualidade preconceituosas, Lima Barreto sustenta, por meio da sátira ou do panfleto (a originalidade de seu texto une com freqüência a crítica mais áspera ao humor desconcertante), posição de combate a instituições, coisas, pessoas, pensamento e escrita conservadores, e de solidariedade e simpatia pelos que, como ele, sofriam de dores cuja fonte conhecia muito bem. Pobres, negros, suburbanos, mulheres humildes, bêbados e loucos eram temas que muito mobilizavam a sua profícua atividade jornalística.
Nas crônicas – como acentua Beatriz Resende no ensaio de apresentação – introduz a vida do subúrbio nos comentários diários que só esse gênero é capaz de suscitar. Bailes, enterros, viagens de trem, festejos, tradições, dificuldades, problemas, a baixa classe média e o proletariado passam a freqüentar o espaço das revistas ilustradas e dos jornais. Amoroso e orgulhoso de sua cidade, defendia-a das modificações que a desfiguravam, como a derrubada de morros e o aterramento do mar, vendo nisso um privilegiar dos sítios ricos e desprezo pelas áreas de concentração da pobreza. Antecipava já aí a cidade dividida, parte ‘européia’, parte ‘indígena’.
Críticas à empáfia
Ele próprio avaliou o seu trabalho de cronista: ‘Sou homem da cidade, nasci, criei-me e eduquei-me no Rio de Janeiro; e, nele, em que se encontra gente de todo Brasil, vale a pena fazer um trabalho destes, em que se mostre que a nossa cidade não é só a capital política do país, mas também a espiritual, onde se vêm resumir todas as mágoas, todos os sonhos, todas as dores dos brasileiros’.
A par das provações de indiscutível excluído, Lima Barreto sempre amargou, na publicação de suas obras, o descaso de editores. Esta edição de suas crônicas expurga falhas e incorreções que tanto desgosto, verdadeira tortura, causaram ao grande escritor. O texto toma por base o das Obras de Lima Barreto (Editora Brasiliense, 1956), organizadas por seu biógrafo, Francisco de Assis Barbosa, com a colaboração de Antonio Houaiss e Manuel Cavalcanti Proença. Agrupam-se agora, nestes dois volumes de Toda Crônica, as crônicas publicadas em Bagatelas, Marginália, Vida urbana e Feiras e mafuás, mais algumas ali não constantes.
O primeiro volume abrange o período de 1900 a setembro de 1919 e inclui os escritos estudantis, em geral de crítica à vida acadêmica e à empáfia dos professores. O segundo traz os trabalhos produzidos nos últimos anos, incluindo as quatro crônicas póstumas publicadas na revista Careta. Estão ordenadas cronologicamente, aproximadas as que foram publicadas em seqüência e faziam parte de volumes diferentes e reunidas as que se desdobram em dois ou três textos sucessivos.
No estabelecimento do texto da edição, a cargo da professora Rachel Valença, a ortografia foi atualizada para os padrões em vigor, ditados pela reforma ortográfica de 1971. A pontuação foi compatibilizada com o universo de referências do leitor de hoje. Um estudo preciso do léxico e da sintaxe das crônicas coroa o tratamento editorial à altura da importância do conteúdo. Esta edição marca os 60 anos da Editora Agir.