A mania de coletar frases do Twitter ou de eventos registrados no Youtube, que parece dar à imprensa de papel um certo ar contemporâneo, pode produzir desinformação em seus leitores, ou promover debates montados sobre informações parciais.
É o caso, por exemplo, das manifestações recentes do cidadão chamado João Luiz Woerdenbag Filho, conhecido como o roqueiro Lobão, durante entrevista no Festival Mantiqueira, evento cultural do governo paulista realizado na estância de São Francisco Xavier, no mês passado.
O roqueiro, mais conhecido por suas polêmicas do que por sua obra musical, se referiu ao que chama de “excesso de vitimização da esquerda brasileira”, quando criticava a vida cultural do país. Algumas de suas frases, destacadas pela mídia: “Aí, tem que ter anistia para quem sequestrou embaixadores e para os torturadores que arrancaram umas unhazinhas não?”. Ou: “Então os caras que sequestravam fulano, beltrano, eram mais bonzinho que os caras que arrancavam unhas nos cala-bocas?”
Ele chegou a se comparar a vítimas da ditadura, ao lembrar que foi preso nos anos 1980. Na verdade, Lobão passou três meses na cadeia ao ser apanhado com drogas, mas não chegou a ser torturado. No ano passado, declarou à rádio BandNews que na ocasião subornou um juiz para não perder a condição de réu primário.
Freud explica
O vídeo com a íntegra da entrevista no Festival Mantiqueira pode ser visto no Youtube. Não se trata de um dos momentos mais brilhantes do universo cultural brasileiro, mas serve como ponto de partida para uma análise sobre como a escolha de frases fora de seu contexto original pode provocar distorções.
As frases selecionadas por jornais e revistas mostram o entrevistado como um iconoclasta a se bater contra a velha ditocomia entre esquerda e direita no ambiente midiático brasileiro. Mas a íntegra da entrevista mostra que Lobão é apenas um jovem arrogante e boquirroto – aliás, nem tão jovem, pois já completou 50 anos –, que em frases desconexas revela sua completa alienação sobre a realidade que o cerca.
Extrapolando o caráter do roqueiro, de resto um personagem desimportante no cenário musical do país, sua fala é um desses eventos em que o ambiente que todos consideram reduto da modernidade produz manifestações retrógradas, muito alinhadas, aliás, com certa tendência da chamada imprensa cultural ou de entretenimento.
Uma das características desse ambiente é o deboche de tudo que cheire a progressismo, como se os atuais produtores de cultura e entretenimento estivessem em processo de ruptura com a figura paterna, representada por aqueles que abriram caminho na ditadura para que eles pudessem vir ao mundo e manifestar livremente suas idiossincrasias.
Livre para falar bobagens
Do jornalismo mais bruto às elaborações de articulistas, passando por aquilo que a mídia considera humor e comédia, tudo rescende a opiniões anódinas, como se a abdicação a expressões ideológicas explícitas não fosse uma forte expressão ideológica.
Há por aí certa ojeriza à herança do melhor humanismo que pudemos produzir até mesmo durante os anos da ditadura, como se os atuais protagonistas da cena mediada tivessem vergonha de haver recebido de presente um país livre para dizer o que pensam.
Nesse cenário, Lobão esquece ou ignora que a cultura pop, filha legítima dos movimentos libertários, não se alimentou dos delírios lisérgicos para fugir da realidade, mas para ir buscar fora dela e na marginalidade do sistema outras fontes para a ampliação das consciências.
Anestesiado por um arremedo conformista do espírito roqueiro, ele se julga no direito de fazer blague com aqueles cujo sacrifício permite que ele exista como artista.