Por trabalhar, hoje, com uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) e ter alguns escritos [ver, neste OI, ‘Os carrascos `voluntários´ da mídia‘] sobre a nova relação Estado/Sociedade Civil que se estabeleceu no Brasil a partir dos anos 1990, fui procurado por uma revista para responder algumas questões sobre a ‘CPI das ONGs’, que vem colocando em cheque algumas organizações do chamado ‘terceiro setor’. Sendo estimulado a pensar, esbocei uma pequena reflexão sobre o tema que pode ajudar-nos a compreender um pouco mais sobre a recente preocupação da mídia em relação aos casos escusos e obscuros de relação dessas organizações com representantes governamentais.
Em primeiro lugar, creio que a preocupação com o fato das ONGs estarem ‘substituindo’ o papel do Estado deve ser relativizada. Em tese, o terceiro setor deve funcionar em sinergia com os governos, de todos os níveis, para a formulação, implementação e/ou acompanhamento das políticas públicas. Isso porque as políticas públicas, entendidas aqui como políticas de Estado, não podem ser (e, na verdade, nunca são) obra exclusiva de governos. Não se pode esquecer que é da sociedade civil (ou seja, do povo organizado) que emana o poder político e é para ela que as políticas públicas devem ser destinadas.
Agora, se essas políticas devem ser executadas exclusivamente pelo Estado ou em parcerias com as organizações da sociedade civil, isso dependerá de cada caso, especialmente do nível e da qualidade de cada agência ou instituição – seja ela estatal ou privada. Parece-me claro (levando-se em conta as experiências civilizatórias dos países com maior Índice de Desenvolvimento Humano), porém, que a garantia dos direitos sociais mais básicos deve, sim, ser universalizada pela ação do Estado, ainda que seja sempre pela reivindicação da sociedade civil que tal tarefa é viabilizada.
Independência e autonomia
O fato é que a sociedade civil brasileira (e as periféricas em geral) tem um déficit grande de organização e participação massiva, o que explica a baixa fiscalização, inclusive, dos ‘repasses’ financeiros que ela faz para o Estado através dos impostos. E isso se reflete também no caso do terceiro setor. No entanto, há uma tendência crescente de preocupação e acompanhamento. Talvez, a maior proeminência dos escândalos na mídia seja resultado desse processo. Não creio que fôssemos, enquanto nação, mais honestos no passado do que somos hoje. Essa visão de ‘ah, no meu tempo…’ é de uma nostalgia ingênua pouco produtiva. E mesmo que tenhamos sido, parece que algo deu errado. E, mais do que isso, somos uma sociedade muito mais complexa do que antes. Assim, mesmo se os instrumentos do passado tivessem funcionado (o que não acredito), hoje talvez tivessem que ser substituídos ou aperfeiçoados.
E o que deve ser feito? Talvez pudéssemos atentar para saber em que medida a população a quem se destinam as políticas está tendo voz ativa na formulação, implementação e avaliação das mesmas (inclusive nas ‘ações sociais’ empreendidas pelas próprias empresas de comunicação). A participação ativa dos ‘beneficiários’ é, a meu ver, fundamental para que, independente do tipo de intervenção, o processo se dê da maneira mais transparente possível. Por exemplo, acredito que se já há um nível de organização local que possa garantir a execução de uma política, não faz sentido ‘terceirizar’ com uma organização que lá não tem raiz e representatividade. Em outros casos, experiências associativas ‘estrangeiras’, se bem combinadas, podem engendrar novas institucionalidades. O importante, reforço, é averiguar como os ‘beneficiários’ são articulados no processo. E coloco os ‘beneficiários’ entre aspas porque, ao fim, toda sociedade é beneficiária quando há sucesso na prestação dos serviços públicos e assistenciais.
Uma coisa é certa: é grande o risco (e daí valem as suspeitas) quando uma ONG sobrevive apenas de recursos do Estado – especialmente quando há vínculos diretos e indiretos com a classe política. Devido ao nível de nossa cultura política, recursos de Estado são vistos como recursos de governos. Daí, o passo para relação de clientelismo e politicagem é bem pequeno. As ONGs devem aprender a se articular com todas as forças políticas, como estratégia para ir além dos governos. Inclusive, dependendo do tipo de ação que executa, deve ter capacidade para criar recursos próprios. A independência e autonomia, não necessariamente isolamento, são condições fundamentais para a sobrevivência qualitativa das organizações.
Jornalista e juiz
Se cada um reconhecer seus limites e potencialidades, as perspectivas podem ser boas. O ponto positivo dos debates suscitados pelos supostos escândalos envolvendo ONGs na utilização dos recursos públicos é que cai por terra a idéia que a sociedade civil é o lócus da virtude e o Estado o lócus do pecado. Ora, ninguém ‘nasce’ nos aparelhos do Estado. O que quero dizer é que se existe, no Brasil, um nível inaceitável de corrupção, é porque temos uma cultura política hegemônica (que permeia também os meios de comunicação) que transige, de forma muito maleável, entre o legal e ilegal, desde que moral ou economicamente conveniente. A recém-inacabada festa do Carnaval, tão incensada pela mídia, é um ótimo exemplo.
E é para a mudança dessa cultura que devemos, primordialmente, voltar nossa atenção, inovando tanto nos aparelhos do Estado quanto nas organizações da sociedade civil – e, principalmente, nos mecanismos de articulação entre estas instâncias. O fato é que a transparência exigida depende de participação, empenho e vontade. O problema é que, no Brasil, ainda hoje, os que têm condições de participar ou não querem ou, quando participam, o fazem em benefício próprio. E os que necessitam participar, a grande maioria, não têm condições estruturais de efetivar essa participação.
Eis, portanto, um dos nossos atuais dilemas sociais que pode, para além das denúncias, ser tomado como tema pela grande imprensa – que, ao invés de se ver como um ator que participa dos debates da opinião pública, costuma confundir-se com a própria, tomando o seu lugar e ocultando outras vozes. Eis um grande risco, sobre o qual, neste mesmo Observatório, já fiz menção:
‘Se a cobertura dos fatos for feita com isenção e responsabilidade, ouvindo sempre todos os envolvidos, a imprensa estará contribuindo para se tornar um fórum legítimo de debates e se instituindo como efetivo instrumento para resolução dos problemas. O que não se deve admitir é a transformação da imprensa em Justiça, do jornalista em juiz. Nesse caso, torna-se um fórum ilegítimo e, pior, reprodutor das mazelas que pensa estar combatendo’ [ver ‘O dever de educar é de todos‘].
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Jornalista e cientista político, assessor de Projetos Sociais do Instituto Souza Cruz