Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O demolidor de mitos

Para ser bem sincero, li poucos livros de cabo a rabo. Não chego ao ponto de concordar com Paulo Francis, para quem a essência da grande maioria se esgota nas dez páginas iniciais, um exagero típico do esnobismo intelectual que o notabilizava. No que me diz respeito, gosto de pensar que é por uma questão de seletividade, ainda que no fundo não passe de preguiça mesmo, daí a preferência por textos descomplicados, mesmo porque, como costuma dizer um amigo meu, de complicado já chega a vida.

A propósito disso, dia desses um de meus filhos me pediu que indicasse dez livros que considero fundamentais para uma boa base literária, o que acabou sendo mais trabalhoso do que imaginava, pois percebi que teria que deixar de lado o gosto pessoal para fazer uma triagem compatível com seu estágio intelectual. Ou seja, teria que me colocar no lugar dele para tentar atinar com o tipo de conteúdo e mensagem que lhe dissessem alguma coisa, num período da vida em que tanto as idéias como os projetos ainda estão em gestão, por assim dizer.

De qualquer forma, não me foi difícil destacar a obra que ninguém deveria deixar de conhecer: o Quixote, de Cervantes, que, aliás, foi apontada em recente enquête como o livro mais importante de todos os tempos. Distinção que para mim não foi surpresa, lembrando, como ainda lembro, do impacto que representou descobrir a atemporalidade da alegoria embutida nas desventuras de um herói às avessas, cujos moinhos de vento, Dulcinéias e Roncinantes, sem falar do fiel escudeiro Sancho Pança, de certa forma povoam a vida de todo mundo e, como tal, penso que a de meu filho também.

Batedores de carteira da intelectualidade alheia

Outro livro marcante para mim foi o não menos festejado Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, para o qual alguns intelectuais metidos a besta torcem o nariz, mas que ganhou merecida fama por ter inovado a literatura com o chamado realismo mágico, que no fundo me parece uma releitura do clássico de Cervantes. Não é à toa que a saga dos Buendía na imaginária Macondo seja vista como uma espécie de versão simbólica da história do continente latino-americano, com suas veias abertas, conflitos e utopias. Coisa que o escritor nunca assumiu claramente, preferindo atribuir a obra às histórias que ouvia do avô na infância pobre de Cartagena, as quais, para sua própria surpresa, emergiram aos borbotões como se estivessem em maturação, numa época em que ainda nutria sérias dúvidas sobre a vocação de escritor, conforme revelou depois sobre o processo que o acabou consagrando com o Nobel de Literatura.

Entre tantos livros que me fascinaram, Os Miseráveis, de Vitor Hugo, é outro que não posso deixar de mencionar, até mesmo por ter sido uma das primeiras aquisições que fiz num sebo que freqüentava no centro de Curitiba, de onde costumava levar pilhas de livros que guardo até hoje, alguns já bem puídos e amarelados, que nem cheguei a ler além de algumas páginas, do alto de meu despreparo. Mal do qual pelo visto ainda padeço, pois continuo sem ver atrativos em calhamaços incensados como o Ulisses, de Joyce, Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, e mesmo nos clássicos renascentistas de Dante Alighieri e Goethe, sem falar nos enfadonhos filósofos gregos.

Digo enfadonhos sem menosprezo à importância capital das obras de Platão, Aristóteles, enfim, dos pilares gregos que moldaram o pensamento ocidental. Tampouco vem ao caso questionar o gosto literário de quem quer que seja, pois creio que o mais importante é o hábito da leitura, o mundo de possibilidades que mesmo os livros mais despretensiosos oferecem. Como ninguém nasce sabendo, o processo literário é deflagrado de acordo com interesses e expectativas pessoais que não podem ser impostos ou delegados. Ninguém é obrigado a gostar de um livro pela fama, por ser sucesso de público e crítica, ainda mais que as duas coisas parecem não combinar. Contam-se nos dedos os que conseguem ser best-sellers e ao mesmo tempo agradar a críticos, normalmente ressentidos. Paulo Coelho é o melhor exemplo disso, nosso recordista mundial de venda, com sua mensagem bacaninha e inofensiva, mas esnobado pelos batedores de carteira da intelectualidade alheia.

Sobra o homo boobus

Enfim, o que eu queria mesmo dizer é que um livro não precisa ser necessariamente um clássico para ser interessante e até mesmo fundamental. Basta que esteja à altura da proposta, que seja estimulante e corresponda à expectativa do leitor, em suma, que seja prazeroso e permita algum tipo de aprendizado. Como é o caso, por exemplo, da coletânea de artigos do renomado jornalista americano Henry Louis Mencken, que marcou época nas décadas de 20 e 30, relançada agora sob o título de O livro dos insultos de H.L.Menken, com seleção, tradução e posfácio de Ruy Castro e apêndice de Paulo Francis. Apresentação luxuosa que por si só já faz do livro leitura obrigatória para quem curte, estuda e/ou exerce a segunda profissão mais velha do mundo.

Publicados inicialmente em 1988 e reeditados agora na coleção ‘Jornalismo Literário’, os escritos de Mencken chamam a atenção não só pela erudição e texto primoroso, mas principalmente pelo implacável inventariado sobre os mais diversos assuntos, com ênfase à imprensa, cujas motivações e modus operandi descreve com impressionante atualidade. Como no antológico texto de 1920, em resposta ao livro em que Upton Sinclair denuncia o caráter marrom da imprensa local, ao mesmo tempo que propõe a criação de um semanário controlado por um grupo de notáveis da sociedade americana comprometido com o lema ‘a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade’, no qual Menken, fingindo apoiar as idéias do autor, traça um perfil feroz e devastador do jornalismo dos Estados Unidos que a rigor prevalece até hoje.

Sobra, inclusive para os leitores, que ele chama de homo boobus, uma espécie de cidadão que julga predominante numa sociedade democrática e que seria incapaz de qualquer coisa que possa ser descrita como raciocínio.

‘O mais poderoso cidadão da América’

‘As idéias que lhe entopem a cabeça são formuladas por um processo de mera emoção. Como todos os outros mamíferos inferiores, ele tem sentimentos muito intensos, mas, também como eles, falta-lhe capacidade de julgamento. O que mais lhe agrada no departamento das idéias – e daí, o que ele tende a aceitar como verdadeiro – é apenas o que satisfaz os seus anseios principais. Anseios por segurança física, tranqüilidade mental e subsistência farta e regular,’escreve Menken, decretando que ‘o jornalismo inteligente e honesto, assim como a política inteligente e honesta e até mesmo a religião inteligente e honesta, são coisas que não têm lugar numa sociedade democrática’.

‘E quando existem – prossegue – são curiosidades exóticas, orquídeas pálidas e viscosas, bestas em cativeiro. Tirem-lhes o vapor, a garrafa de leite, a seringa e puf, elas somem.’

Escrevendo na primeira pessoa e assinando as colunas, coisa rara naqueles tempos, iconoclasta admirado por escritores do calibre de Edmund Wilson e Gore Vidal, Menken transtornou a cabeça dos americanos por quase duas décadas com incursões sobre praticamente todos os assuntos, observa Ruy Castro. A ponto de, ao morrer de enfarte, em 1956, depois de oito anos sem poder ler e escrever por causa de um derrame, deixar os redatores de seu obituário em dúvida sobre a melhor qualificação que o definisse – se repórter, crítico, colunista, editor, escritor ou filólogo, no que também foi notável. ‘Eu escolheria todas’, sentencia Ruy Castro, ao fazer as honras do jornalista que chegou a ser considerado ‘o mais poderoso cidadão privado da América hoje em dia’ por, nada menos, nada mais que o New York Times, em 1926, e o mais significativo ainda: conseguir que suas idéias, que aí estão até hoje, fresquíssimas, não fossem embrulhadas junto com o peixe no dia seguinte.

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Jornalista, Santos, SP