Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O desafio de sobreviver na globalização

[do release da editora]


O mal-estar na globalização, do jornalista Luciano Martins Costa, está na coleção Economia & Negócios da editora A Girafa, mas trata na verdade dos ‘problemas que afligem homens e mulheres do mundo corporativo’, das angústias típicas dos gestores de empresas privadas e órgãos públicos diante de suas responsabilidades com o estado do mundo. São problemas comuns nessa fase de recrudescimento do processo de globalização, marcado pela tecnologia da informação e pelo terrorismo internacional.


A partir de 1999, na tentativa de entender o ‘modelo mental’ que predomina no ambiente de negócios, o autor fez centenas de entrevistas com gestores de empresas privadas e órgãos públicos, de gerentes intermediários a presidentes de multinacionais, numa ampla discussão sobre os valores tecno-econômicos da sociedade, que possibilitaram que grandes empresas adquirissem, em muitos casos, mais importância do que o Estado. Permeando esse poder, a vulnerabilidade do sistema econômico.


Luciano Martins Costa é jornalista, escritor, ensaísta. Foi repórter especializado na investigação do crime organizado e do crime corporativo. Dedicado ao estudo da gestão como aluno de organizações como Juran Institute, Fundação Dom Cabral, Amana-Key e outras, é conferencista com experiência internacional e consultor de estratégia de comunicação para reposicionamento de empresas e gestão de crise.


É colaborador do Observatório da Imprensa desde 2003, dedicado especialmente à seção ‘Saídas para a mídia’, na qual analisa propostas para a superação da crise financeira e de gestão que aflige os veículos brasileiros de comunicação.




Introdução


Luciano Martins Costa


O mercado mundial de divisas negocia diariamente um volume de quase US$ 2 trilhões. O número de subnutridos crônicos em todo o planeta alcança a cifra de 852 milhões de indivíduos, segundo a FAO – Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação. Mais de 2 bilhões de indivíduos estão excluídos dos benefícios básicos da modernidade, como habitação, saneamento e garantia de nutrição, segundo relatório divulgado na 11ª reunião da Unctad – Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento. O secretário-geral da ONU, Kofi Annan, anuncia resultado de pesquisa, na qual se constata que dois terços dos cidadãos do planeta – incluídos habitantes das democracias que lideram a economia mundial – não se sentem representados por seus governantes.


Estudiosos das principais universidades do mundo apontam o rápido desmanche de quase todos os paradigmas que sustentaram até aqui o modelo de desenvolvimento nascido com a Revolução Industrial. Nas grandes cidades de todo o mundo, os cidadãos mais bem aquinhoados não conseguem viver seu bem-estar e muitas pesquisas revelam que mesmo os bem-aventurados estão infelizes. Responda rápido: como você classificaria a soma dessas realidades? A mãe de todas as crises? O triunfo perverso do capitalismo? Apocalipse? O fim do Estado democrático? Ou oportunidade?


Educado para tomar decisões com base em contextos muito claros, demonstrados em relatórios e planilhas produzidos sob padrões confiáveis e certificados internacionalmente, o gestor contemporâneo está colocado diante de uma situação nova, na qual boa parte do que aprendeu não faz muito sentido. Por exemplo: os números no início do parágrafo acima indicam o mais elevado patamar que o comércio de moedas jamais alcançou, indício inequívoco de um dinamismo nunca antes registrado nos negócios globais. Os números seguintes demonstram o altíssimo grau de vulnerabilidade em que se encontra o sistema econômico internacional. O resultado da equação é a falta de sustentabilidade do sistema social, que afeta com igual impacto as grandes corporações de negócios, os fundos previdenciários públicos, a estabilidade dos governos e, em última instância, o bem-estar dos indivíduos.


Uma monstruosa contradição se apresenta diante da razão: quando o ser humano alcança níveis de conhecimento jamais sonhados sobre si mesmo e sobre o Universo; quando a tecnologia permite tangibilizar pela primeira vez o sentido de humanidade, pela criação de uma rede de comunicação realmente global; quando se vislumbra a possibilidade de superação dos limites naturais da vida por conta de uma ciência capaz de recriar organismos, somos apresentados à sensação diária de que a humanidade recuou alguns séculos e se encontra novamente lançada às disputas tribais, ao combate corpo-a-corpo por alimento, como nos primórdios da civilização.


É fato inconteste, comprovado em sucessivos estudos que informam os fóruns sobre o estado do mundo há mais de uma década, que o planeta não tem como suportar o ingresso, no rol dos indivíduos com direito a uma vida digna, daquele terço da população mundial atualmente excluído. As fontes de alimentos, as formas de produção e a necessidade de preservar o que resta da diversidade biológica do planeta não completam uma conta razoável para a capacidade dos setores produtivos de atender as necessidades mínimas dos que estão fora do sistema, se os programas de inclusão continuarem a dar resultado.


Por outro lado, a hipótese de se retardar a melhoria da distribuição de oportunidades, presente implicitamente em algumas decisões protecionistas de governos de países desenvolvidos, se revela desastrosa: não existe estratégia de segurança capaz de conter a pressão dos excluídos contra os muros dos bem-aventurados. Por último, se é possível falar friamente sobre a questão, a própria sobrevivência do sistema mundial de negócios depende da expansão dos mercados, o que exige, segundo o Banco Mundial, que se considerem as possibilidades de consumo da base da pirâmide. Preservar a diversidade biológica do planeta e produzir para os pobres. Eis o desafio completo, sem o qual parece não haver futuro.


Quem, em sã consciência, pode se considerar seguro nessa circunstância? Quem, em pleno uso da razão e do conhecimento, pode afirmar seu completo bem-estar diante das contradições do sistema econômico mundial do qual é protagonista? Em muitas organizações de negócios, aqueles que procuram agir em favor de mudanças são ridicularizados. Não são raras as ocasiões em que os mais críticos são deslocados para as chamadas ações de responsabilidade social, como um exílio que os afasta das decisões de negócio. E por toda a parte é perceptível a sensação de mal-estar.


‘Quando, com toda justiça, consideramos falho o presente estado de nossa civilização, por atender de forma tão inadequada às nossas exigências de um plano de vida que nos torne felizes, e por permitir a existência de tanto sofrimento, que provavelmente poderia ser evitado; quando, com crítica impiedosa, tentamos pôr à mostra as raízes de sua imperfeição, estamos indubitavelmente exercendo um direito justo, e não nos mostrando inimigos da civilização’. Esse raciocínio foi exposto por Sigmund Freud em 1929, em sua obra O mal-estar na civilização, mas cabe perfeitamente no estado de espírito que se percebe neste começo do século XXI.


Durante duas décadas, pude conviver com executivos de diversos setores empresariais, gestores públicos e políticos. Entrevistei cientistas, militantes de organizações humanitárias – entre os quais o diretor do Programa de Desenvolvimento Humano da ONU e o diretor do Programa de Melhores Práticas em Desenvolvimento Sustentável –, além de empresários, gerentes e alguns chefes de organizações criminosas. Acredite: encontrei nestes últimos uma visão muito mais clara sobre a natureza de seus ‘negócios’ do que entre algumas celebridades do mundo acadêmico e empresarial. Estudei as origens de algumas expressões culturais que são sacralizadas no ambiente cultural dos gestores, de cujos fundamentos são recheadas muitas teses sobre liderança, estratégia e produtividade.


Participei, como jornalista e gestor, dos primeiros passos da Internet e tive a oportunidade de criar e dirigir um produto bem sucedido no setor de conteúdos online. Em 1998 e 1999, convidado pelo escritor prêmio Nobel Gabriel García Márquez, tive o privilégio de me juntar a uma dezena de jornalistas de várias partes do mundo, que se dedicaram a estudar a linguagem da mídia no ambiente da globalização. Isso ocorreu num projeto chamado O Jornal Ideal, quando então discutimos intensamente as novas formas de comunicação e percepção da realidade.


A partir de 1999, pude conviver com gestores de variadas formações, desde prefeitos de pequenos municípios e gerentes de postos do Instituto Nacional de Previdência Social (INSS) a presidentes de grandes corporações com atuação mundial. Entrevistei centenas desses protagonistas da história recente, utilizando o método jornalístico que objetiva desenhar perfis pelo levantamento de premissas e modelos mentais. Constatei muitas evidências de que o capital conhecimento está sendo subvalorizado no ambiente dos gestores e que, além disso, um conhecimento capital pode estar sendo ignorado nas organizações. Esse equívoco estratégico pode estar na origem de muitos conflitos que assombram o mundo. Como resultado, temos uma elite poderosa como poucas antes na história da humanidade, mas com baixo nível de consciência sobre seu papel e uma pobre noção do legado que está deixando.


Esses são os construtores da globalização: pessoas que passam boa parte de suas vidas trafegando pelo mundo ou participando de teleconferências, nas quais se consolida o grande sistema econômico e social sem horizonte de saída. A maioria deles se tornou refém de um sistema de poder que emascula o homem e masculiniza a mulher. A executiva adormece na lista das mulheres mais poderosas do mundo. E quando desperta, seu nome foi apagado das agendas de eventos. Ainda assim, sofrem quase todos da síndrome do Super-homem (ou da Mulher-maravilha) que faz a delícia dos psicanalistas.


Um desses personagens, presidente regional de uma multinacional muito bem posicionada em seu setor, se negava reiteradamente a posar para fotografias em revistas e jornais. Oficialmente, havia uma razão plausível para isso: um colega de diretoria havia sido seqüestrado por criminosos alguns anos antes. Mas ele não resistia à tentação de aparecer na televisão, num desses talk-shows nos quais empresários e executivos têm a oportunidade de falar de suas idéias e de sua responsabilidade social. O apresentador do programa também é o esperto empreendedor de um concorrido encontro anual de presidentes de empresas, que reúne numa ilha paradisíaca do litoral brasileiro a nata da economia nacional.


Vaidade e vulnerabilidade andam juntas. Um desses convidados especiais ‘investiu’, num desses encontros, cerca de 120 mil dólares para fazer boa figura entre seus pares. Teve a oportunidade de apresentar seus projetos sociais durante o evento. Contratou consultores, uma empresa especializada, mobilizou diretores e gerentes. Um repórter cuidadoso constatou que suas ações de responsabilidade social valiam exatamente 120 mil dólares. A assessoria de imprensa a serviço da empresa conseguiu contornar a situação com silogismos e bom relacionamento, convencendo o jornalista de que o executivo agira de boa-fé e que, afinal, o balanço social da empresa acabaria esclarecendo as coisas.


São pessoas educadas. As mais bem educadas de seu meio. Por essa razão, pagam um alto preço emocional por sua presença num jogo em que há poucas chances de uma mente bem educada se sentir à vontade. A globalização levou o capital e suas regras a todos os rincões do planeta. Colhe de lá um retrato sobre o estado do mundo que choca as pessoas conscientes. O agente do desenvolvimento, investidor, administrador, estudioso, cidadão em sua plenitude, sofre da angústia que, segundo Freud, acompanha a civilização: não vê o esforço de sua disciplina resultar em um mundo melhor. E o sonho da plenitude no mundo globalizado se torna fonte de mal-estar.