A Editora Intermeios Cultural lançou Era tudo mentira – A verdade jornalística,do jornalista e professor Marconi Oliveira da Silva. O livro é composto de doze ensaios enfocando a notícia jornalística e sua relação com a verdade e a falsidade ou entre aparência e realidade como se apresentam nos fatos jornalísticos. Com base numa visão de linguagem ligada às novas investigações na perspectiva cognitiva e filosófica de Wittgenstein, Marconi Oliveira da Silva adota uma metodologia em que a teoria é aplicada numa análise da notícia em que procura encontrar as referências e diferenças entre o fato “real” e o fato jornalístico. O objetivo central das pesquisas realizadas para elaboração dos artigos é demonstrar que a verdade jornalística é uma criação de uma nova realidade. Realidade construída de inúmeras facetas das aparências do ente e da vida. Marconi Oliveira da Silva é graduado em Filosofia e Comunicação Social (Jornalismo), mestre em Filosofia e doutor em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco. É professor aposentado de Jornalismo no Departamento de Comunicação Social da UFPE e pesquisador na área da epistemologia e da linguagem jornalística. É autor dos livros O mundo dos fatos e a estrutura da linguagem – a notícia jornalística na perspectiva de Wittgenstein (Edipucrs/1998) e Imagem e Verdade – jornalismo, linguagem e realidade (Annablume/2006).
O genuíno jornalismo informativo é representado pela notícia e pela reportagem. São através destes dois tipos de relatos que o jornalismo luta para conquistar as mentes e os corações dos leitores, no dizer de Clóvis Rossi. Para atingir, portanto, a razão, a inteligência, as sensações e a emoção do leitor, é preciso despertar o interesse e manter sua atenção.
O interesse é acordado quando se lhe revela a vida e o mundo. E entenda-se como vida e mundo a comédia humana, a fragilidade e contingência dos homens, os esforços para possuir uma vida de maior dignidade, e o mundo exterior que é tão pequeno e é ao mesmo tempo tão desafiador.
É o acontecer na cultura que mais estimula o interesse do leitor, pois cultura é o próprio fazer do homem. É sua imagem refletida nos objetos e no trabalho; é o conjunto das práticas, das técnicas, dos símbolos e dos valores; Em outras palavras, na cultura o indivíduo se vê e vê os outros. E é o jornalismo que amplia essa visão e oferece uma melhor visibilidade das ações do homem na sociedade.
O acontecer no mundo vira fato jornalístico pela notícia — a informação com características de novidade e publicada nos jornais, rádios e televisões — , e pela reportagem que procura interpretar o mundo, ou pelo menos busca um sentido para os fatos aparentemente desconexos e fora de contexto.
O objetivo que nos propomos nesta investigação é saber se é possível o jornalismo revelar o mundo, tal como é, na sua essência e no seu ser, se o que se apura dele é só a sua aparência. Também o modo como as coisas parecem a nós é apenas um fato sobre o mundo, mas que precisa de confirmação pública e se presta à dúvida sobre o modo de ser das coisas.” (AUSTIN,1993:61).
Buscamos apoio teórico na obra Introdução à Metafísica de Heidegger. O filósofo, numa posição oposta à de Platão, diz que a aparência e o ser pertencem ao mesmo ente, ou, que é pela aparência que o ser se revela, se desoculta.A aparência revela a essência do ser, no sentido original grego. Porém, o aparecer e parecer próprios da aparência também podem enganar e confundir, quando há uma justaposição de aparência não próprio do ser do ente, como é o caso das famas de pessoas criadas pelos Meios de Comunicação de Massa. Essa é uma aparência para ocultar o ser.
Os mass media não são os responsáveis únicos pelo acobertamento do ser. Eles fazem parte de uma cultura e de um mundo criados para a alienação do ser do ente. Diante dessas hipóteses, apresentaremos a posição crítica de Nietzsche sobre o mundo exterior que abafa e apaga o mundo interior. Depois vem o caso de Édipo como a própria personificação da tragédia da aparência. Em resumo: é esta realidade cercada por muros de aparências que o jornalismo vai apreender/ perceber o mundo. Mas, sendo a atividade jornalística engajada na comunicação de massa, não seria próprio do jornalismo exacerbar as aparências do mundo? Em outros termos, o jornalismo cria uma segunda aparência do mundo que se diz referência. O que os leitores, ouvintes e telespectadores recebem pelos relatos noticiosos e reportagens, nada mais são que aaparência da aparência da realidade. E por ser uma segunda aparência sem correspondência com a realidade do ser, há uma exasperação violenta das diversas aparências do mundo. E elas se apresentam com tanta veemência e autoridade referencial que passam a valer por si mesmas. Talvez, por isso, o mundo jornalístico é tão encantador e superlativo. Nenhuma realidade é mais evidente que a realidade jornalística.
O Ser e sua Aparência
Platão é o defensor da aparência como simples aparência, no sentido de cópia da verdadeira realidade. O sofista, por sua vez, cria um simulacro – a cópia da cópia– ,e apresenta essa imagem como o verdadeiro ser, a verdadeira verdade, visto que nega a existência da falsidade. Porém, para o filósofo grego as aparências além de não revelarem a realidade são produções de imagens e não de coisas reais. A essência do ser não pode ser encontrada nas aparências. Por outro lado, a falsidade existe quando se apresenta o não-ser (imagem) como sendo a própria realidade. Essa posição, segundo Heidegger, não corresponde ao pensamento e a linguagem dos gregos da mesma época de Platão. É comum o entendimento que a aparência pode delimitar o ser, mas é também a sua revelação.
A atividade jornalística no seu papel de apresentar o mundo para a sociedade corre sempre o risco de apreender a aparência do mundo, sem contudo alcançar o ser do ente que essa aparência revela e oculta concomitantemente. Também há o perigo eminente de transformar um fato na opinião ou na versão desse fato. E como a sociedade vive mergulhada nas aparências para parecer ser-mais se revestindo de ter-mais, o jornalismo cria também o seu próprio fato.
O entendimento comum diz que o real é constante e o aparente é o que emerge e se volta a ocultar. Ora, o permanente, o ordinário e o cotidiano não interessam tanto ao jornalismo quanto o inusitado, o insólito e a anormalidade. E quando esse fora-do-comum torna-se estável sua importância diminui não sendo mais objeto de matérias jornalísticas. Portanto, quando se poderia chegar a essencialização do ser do ente, a imprensa se ausenta.
Há três modos de aparecer: 1. o parecer como esplendor e iluminação; 2. o parecer e aparecer como aparência, como o parecer-externo a que algo advém; 3. o parecer como mero parecer, o aparentar algo. O “parecer” (2) é o aparecer no sentido de mostrar-se, no sentido de parecer como esplendor (dos santos), como do parecer enquanto aparentar. Em outras palavras “a essência do parecer está no aparecer”. Exemplo: as estrelas brilham e ao iluminar estão presentes. “Brilhar <parecer> significa aqui exatamente o mesmo que ser.”. (HEIDEGGER,1959:140).
Há uma conexão interior do ser com a aparência. Assim sendo, o aparecer faz o ser sair do estado de ocultamento. O ente é como tal, se põe e está em estado de desocultamento. Daí se poder dizer que o ente é, enquanto ente, verdadeiro. “Ser ente implica: apresentar-se, aparecer manifestando-se, oferecer-se, ex-por algo. (HEIDEGGER 142). Em outros termos, a forma como as pessoas, os fatos, as idéias e as opiniões aparecem, partindo do pressuposto de que todos agem eticamente, deve refletir o ente verdadeiro.
O ser está disperso na multiplicidade do ente, que enquanto aparece, é um parecer de prestígio, esplendor e fama. É verdade que a fama nem sempre corresponde ao ser, ou pelo menos não tem a permanência esperada, mas sempre é um modo de ser. Como pelos os meios de comunicação de massa a fama passou a ser mera celebridade, quase o oposto ao ser, o jornalismo enfrenta mais esta dificuldade em apresentar o mundo real, no que ele tem de verdade.
Doxa,geralmente compreendida apenas como opinião, significa também segundo Heidegger aspecto prestigioso entendido como fama, parecer como simples aspecto que algo oferece, parecer como brilhar, isto é, “aparência” como mero parecer. É por isso, que o aparecer que pode ser visto deriva para opinião. O ser, portanto, oferece uma vista grandiosa que o ente tem nele mesmo e que pode oferecer de si. O problema que aqui se coloca tem duas limitações: uma que é o mostrar a situação objetiva em sua plenitude essencial, e a outra dependendo das perspectivas, a vista que se oferece pode ser outra.
“Esta vista sempre é, ao mesmo tempo, a que nós nos forjamos e fazemos. Ao experimentar e explorar o ente, constantemente nós formamos pareceres de seu aspecto. Com freqüência ocorre isso sem que vejamos com rigor a coisa mesma. Por qualquer caminho, e por razões quaisquer, chegamos a um parecer acerca da coisa. Nós formamos uma opinião dela. Pode ocorrer que o parecer que sustentamos não tenha pretexto algum na coisa. Então é mero parecer, suposição.” (IDEM,142-143).
O ditado diz que a aparência engana, mas tal engano reside na aparência mesma.. Ela engana o homem e o leva a ilusão. “Mas o iludir-se só é uma entre outras maneiras, conforme as quais o homem se move num triplo mundo, no qual estão encaixados o ser, o desocultamento e a aparência.” (IDEM,149). A origem de erros e enganos está no fato que o ser e a aparência se implicam mutuamente, isto é, há sempre a possibilidade de mudança de um em outro.
O ponto chave da questão, segundo Heidegger, é que o ser, consiste no aparecer e no oferecer aspectos e pareceres, tendo sempre a possibilidade de ter um aspecto que encubra e oculte o que o ente é em verdade. É por isso que o tempo e a história são aliados do jornalismo e das ciências em geral no sentido de que as aparências de hoje foram (no passado), ou poderão ser (no futuro) quebradas e desfeitas fazendo emergir o verdadeiro ser do ente no seu próprio aparecer. Não se pode despachar a potência histórica da aparência por ser “subjetiva”, pois o ser essencializa a partir do desocultamento. (IDEM,145). A história, que sendo aliada da revelação do ser do ente, pode, todavia, ser manipulada em benefício dos poderes e das ideologias dominantes ocultando o ser e dificultando a sua revelação. É o que veremos com Nietzcshe e sua posição sobre a cultura artificial e filistéia.
A falsa e a verdadeira cultura
A luta de Nietzsche é contra a superficialidade e a favor da libertação do homem da falsa cultura. Quer mostrar que existe apenas uma cultura que é aquela que manifesta a natureza do homem. E para demonstrar com mais clareza como a relação do homem com o mundo é dificultada pelo falseamento da cultura, o filósofo se utiliza de algumas metáforas. São elas: oposição entre exterior seminterior; aparência semrealidade; forma semconteúdo; superfície semprofundidade.
O postulado da cultura artificial é o da ruptura do homem em duas partes. Ora se chama o interior ora o exterior. Nos dois casos a cultura exerce uma função de um fetiche, um engodo. São como que máscaras, cascas, peles, véus, cortinados, vestimentas que servem para a dissimulação. Assim como o Lobo mau carrega pedras ingestas no seu interior, também podemos transportar saberes que denunciam a oposição entre o interior e o exterior.
A cultura artificial passa a ser a expressão ingênua da natureza, é um acréscimo que pretende independente e que se poderia se desfazer como de uma roupa. A cultura seria assim excedente e serviria, assim como a vestimenta para o espetáculo e enganar o espectador que confunde o fundo pela forma. A arte, a objetividade, a cientificidade, o puro conhecer isento de vontade, tudo é considerado vestes de pompa e mentira.
“Se pelo menos, o homem moderno fosse corajoso e decidido, ele não seria, também em suas inimizades, apenas um ser interior: ele a baniria; agora, contenta-se em revestir envergonhadamente sua nudez […] os homens passam a ser compêndios encarnados e, por assim dizer, abstrações concretas.” (Considerações extemporâneas. II,§5,63).
Mas há uma vontade de aparência, de simplificação e de superficialidade que é uma espécie de manto. Em outros termos, é a propensão do conhecedor que toma e quer tomar as coisas em profundidade, em multiplicidade, pelo fundamento.(Para Além do bem e do mal.230,288). O artificialismo é sintoma de cultura decadente, que simula alegria e saúde, mas é feita de pedaços e peças, portanto, efêmera e sem futuro. Vive do passado e da morte. Confunde cultura histórica, cultura e acumulação de conhecimento.
A verdadeira cultura é comparada a uma planta que elimina a erva daninha do desenvolvimento humano. Isto é, a partir do exterior nada pode ser acrescentado ao ser humano. Porém, há uma cultura que Nietzsche chama de filistéia que abafa o crescimento do homem. É uma cultura livresca. erudita, jornalística, criando uma ilusão de uma verdadeira cultura.
A cultura é algo que deve ser digerido com calma, sem estardalhaço, mas geralmente, não é o que acontece. A cultura livresca se enche com tempos, costumes, artes, filosofias e religiões alheias e esse sujeito dessa cultura torna-se enciclopédia ambulante. “Todo filosofar moderno está política e policialmente limitado à aparência erudita, por governos, igrejas, academias, costumes e covardias dos homens.” (Da Utilidade e desvantagem da história para a vida.§4,63).
Na dicotomia aparência e realidade Nietzsche apaga a oposição entre feio e bonito, teoria e prática, imagem e realidade, e tenta captar firmemente no olho a pintura universal da vida e da existência. A tarefa do homem, portanto, é deixar de ser joguete, pois no vir-a-ser tudo é oco e enganoso.
“O enigma que o homem deve resolver, ele só pode resolvê-lo a partir do ser, no ser assim e não ser outro, no imperecível. […] uma tarefa descomunal ergue-se diante de sua alma: destruir o que vem a ser, trazer à luz tudo o que é falso nas coisas.” (Considerações extemporâneas. III, §3, 75).
A originalidade do ser humano consiste em ter pensamento próprio, não deixar que as coisas, opiniões, passados, livros etc se imponham e dificultem a visão original. No entanto, a pompa das palavras quando o homem tenta enfeitar a realidade (natureza), dificulta essa originalidade já que é uma tendência da inconsciente vaidade humana o apego ao enfeite, quinquilharias e pó dourado de mentiras. Mesmo assim é necessário e imprescindível reconhecer por debaixo das aduladoras cores e camadas de pintura o verdadeiro homo natura. (Para além do bem e do mal.230,288).
É dever do filósofo e de todo cidadão procurar a verdade, ser no mundo com os outros, enfim pensar. E como ninguém tem o monopólio da verdade, da cultura e da natureza, é preciso pensar e descobrir que cada opinião é um esconderijo e cada palavra uma máscara. A missão é conjunta .
Um aspecto importante da cultura é a atitude diante da história. Há três tipos de atitudes: 1.história monumental – que é a procura de modelos e mestres do passado para satisfazer as aspirações; 2.história antiquária – quem compreende a história de sua cidade e a tem como fundamento da vida presente; 3.história crítica – é a história de quem olha para o passado com a finalidade de condenar tudo o que atrapalha a realização de seus próprios valores. É a terceira posição que para Nietzsche a história universalizará e igualará o desigual, despreciará a diferença e valorizará os efeitos e não as causas.
História é acontecimento, mas o acontecimento não é um necessidade lógica e racional. Se assim fosse, todos deveriam cair de joelhos e percorrer toda a escada dos “sucedidos”. Por outro lado, todos os fatos são burros e estúpidos, mesmo que adorados como bezerros de ouro. Ainda mais a história sempre carimba: “era um vez”, a moral: “não deveis”. E o pior de tudo é que se acredita numa história e num passado onde a maioria dos fatos e eventos são inventados pelos próprios homens.
“Do mesmo modo que um leitor de hoje não lê todas as palavras (ou muito menos sílabas) de uma página — em vez disso tira, de vinte palavras, mais ou menos cinco ao acaso, e “advinha” o sentido que supostamente compete a essas cinco palavras.[…] ainda hoje “inventamos” algum evento. Isto tudo quer dizer: estamos, desde o fundamento, desde antiguidades — habituados a mentir. Ou, para exprimí-lo de modo mais virtuoso e hipócrita., em suma, mais agradável: somos mais artistas do que pensamos.” (Para além do bem e do mal. §192, 280).
Há uma dominação histórica sobre o homem que se faz, por exemplo, pela democracia, socialismo e outras formas mistificadoras como a religião. Para acabar com isso, é preciso ensinar ao homem o futuro do próprio homem como sua vontade de homem, e preparar grandes riscos e ensaios coletivos de disciplina e aprimoramento.(IDEM, §203, 282). É preciso também uma transvaloração dos valores, sob cuja nova pressão e martelo uma consciência seria acerada, um coração transformado em bronze, para suportar o peso de uma tal responsabilidade. Caso contrário o homem permanecerá como “animal-rebanho”, animal anão dos direitos. Concluindo, o homem se encontra numa encruzilhada que leva a dois caminhos: ou segue o tempo e suas honras (fama), ou procura a realização da vida, da originalidade. O segundo caminho é mais árduo pois não se aceita que o homem seja original.
“[…]a má vontade contra o homem original aumentou a tal grau que Sócrates, entre nós, não teria podido viver e , em todo caso, não chegaria aos setenta anos.”.( Considerações extemporâneas. III.§6,76).
Jornalismo cativo do (a)parecer
Diz E. Emeryque os jornais não criaram as notícias, mas a notícias criaram os jornais, porque com o surgimento da imprensa a informação passou a ser colhida e manipulada de acordo com o interesse público. A notícia tornou-se uma mercadoria produzida com a finalidade de satisfazer uma procura. (EMERY,1965:16).E foi essa demanda que acabou configurando a informação jornalística como aquele fato que eclodiu na sociedade e que traz características de inusitado e de insólito. Assim, tudo que foge do cotidiano e seja de interesse do leitor pode ser um fato jornalístico, isto é, uma notícia.
O que aparece no mundo de forma exacerbada interessa ao jornalismo. Agora, o que parece do que apareceu não aflora necessariamente do fenômeno em si, mas é uma aquisição da imprensa. Ela estabelece a importância, valor e interesse dos fatos sociais que poderão virar notícias. (Esses critérios não são aleatórios, estão fundamentados na pessoa humana contingente e na comunidade.) No panorama da diversidade das perspectivas forma-se e forja-se uma determinada vista de um aspecto. E os aspectos mudam constantemente sem que o repórter se aperceba. O fato mesmo perde o seu parecer próprio e adquire outro comum a fatos semelhantes. É um mero parecer, uma suposição. Assim, dificilmente o ente do ser humano ou social será desocultado.
Talvez as ciências sociais possam aproximar-se mais do ente do ser pela metodologia e pesquisa. No caso em estudo os fatores novidade e o imediato não permitem maiores aprofundamentos e investigação em busca do sentido do acontecimento. Ficam valendo, por questões pragmáticas, os critérios para a escolha dos fatos. A verdade (alétheia) dos fatos ou a relação entre o aparecer e o parecer ficaria sob responsabilidade do chamado jornalismo opinativo que tentaria admitir este ou aquele modo de ser. Contudo, a opinião girará em torno do fato jornalístico que não mais corresponde totalmente ao fato real e, por ser opinião, escolherá um aspecto independentemente da abertura do ente do ser. Por outro lado, a reportagem interpretativa, mesmo fugindo da opinião, também está acorrentada pelos significados dados pelo próprio jornalismo informativo.
O mundo que importa ao jornalismo é o humano, a sociedade, a vida pública, as maneiras de pensar e agir. Enfim, é o espaço onde os homens atuam no social, na política e na cultura. Todavia, segundo Nietzsche, se vive do exterior escondendo o interior. A cultura oculta o ser originário do homem. O que se vê do mundo é sua exterioridade que se apresenta falsamente como correspondente de uma interioridade. Contudo, falta a originalidade do ser humano com pensamento próprio para interpretar o mundo. Ele já faz parte de um rebanho que pensa igual pensando ser diferente. Como diz Coreth, “assimilamos em nosso saber muitas dessas coisas tão natural e evidentemente que parecem fazer parte integrante de nossa própria imagem e compreensão do mundo, ou seja, que entraram codeterminantemente na totalidade de nosso mundo”. (CORETH, 1973:65)
O pensamento original caberia ao filósofo, em particular, e a filosofia ,em geral, assim como especialmente a liberdade de expressão competiria a imprensa. Porém os governos temem a ambos, e para diminuir esse temor contratam-se “intelectuais”, “filósofos” e assim se fica na aparência de ter filósofo ao seu lado. Com a imprensa ocorre algo semelhante : a aparência é que todos os cidadãos têm voz dentro da democracia, mas o que se realiza é a liberdade de expressão da burguesia, segundo os marxistas.
O que prevalece teoricamente dentro de uma sociedade democrática sedimentada no liberalismo, é que cada indivíduo não só tem o direito de criar seus próprios mecanismos de expressão e opinião, como também, na soma de todas as opiniões, idéias e interesses individuais ou grupais, os modos de ser do mundo venham à tona. No entanto, a totalidade de pareceres particulares nunca poderão conduzir a realidade total, mas a apenas trechos limitados da realidade. E isto porque a vivência e a experiência que se tem do mundo já é mediado pela linguagem, pelas ideologias e pelo aparelho conceitual que dirige nosso olhar para o mundo. Ou como diz Adorno e Horkheimer “os homens receberam o seu eu como algo pertencente a cada um, diferente de todos os outros, para que ele possa com tanto maior segurança se tornar igual.” (ADORNO, HORKHEIMER, 1985: 27). Mas é precisamente aí que reside a força do jornalismo: informar o que já se sabe, o que já se viveu e vive, enfim, reforçar o mundo estereotipado. Esse é seu destino, e não tem como fugir.
O permanente, a cultura autêntica, a vida normal não interessam ao jornalismo. Pois o jornalismo é cativo do fato produto de um aparecer. Melhor dizendo: há uma atração irresistível pelo parecer que produz fatos com sentido e significados predeterminados. Paradoxalmente, é na persistência e no estável que haveria a possibilidade do ente do ser se manifestar, isto é, o autêntico e o inautêntico se revelariam ou se desocultariam.
As possíveis e impraticáveis saídas para o jornalismo chegar à verdadeira realidade, ou pelo menos não criar outra aparência, são as seguintes:
a) Uma teoria que explique o que a aparência significa: O fornecimento dessa teoria viria do sistema econômico/financeiro e do sistema político predominante no país. Exemplo: o capitalismo e a doutrina liberal ou o neoliberalismo poderão ser os fundamentos para as formas de vida (Wittgenstein) ou ordens de vida (Weber) dentro da sociedade onde os fatos e acontecimentos eclodiram.
b) Do confronto de várias teorias sairá a mais satisfatória:As academias e os pesquisadores apresentam as mais diversas teorias que tentam explicar o que acontece no mundo e na sociedade em oposição ou não ao ideário capitalista. Exemplo: teorias de cunho socialista/marxista, estado do bem-estar social, a terceira via entre socialismo e capitalismo, anarquismo, utopias diversas, teoria de sistemas, teoria da justiça etc etc etc.
c) Uma ideologia no sentido de enfeitiçamento: As ideologias assim como os mitos procuram explicar o mundo de forma não racional. É a produção do encantamento, enfeitiçamento e a busca de explicação e solução pelos mitos. Dentre as instituições há a religião que nega o mundo real e supervaloriza as ações éticas e morais que se coadunem com o mundo celestial e espiritual. A cidade de Deus de Santo Agostinho. Outro reino de Deus. Deus e sua palavra são parâmetros e explicação dos acontecimentos do mundo.
d) Um constructor teórico para o qual a realidade deve corresponder: O esquema construído por M.Weber tem por objetivo mostrar ordens de vida conflitantes como “adequados e possíveis”. “Não pretendem mostrar que não há ponto de vista do qual os conflitos não possam ser resolvidos numa síntese mais elevada. Como iremos ver facilmente, as esferas individuais de valor estão preparadas com uma coerência racional que raramente se encontra na realidade. Mas podem ter essa aparência na realidade […] (WEBER,1974:242-243). Pode oferecer uma racionalidade que a realidade pode assumir.
e) Ver e mostrar o que aparece como parece: Parece ser esse o mundo de ação do jornalismo: relatar o que parece o fato. Isto é, se há uma certa concordância social (manipulada ou não, pouco importa) sobre o que parece ser o fato, essa versão e esse modo de ver será, pelo menos provisoriamente, o modo de ser do fato jornalístico. A entrevista jornalística (como gênero e como técnica ) se enquadra nessa perspectiva.
f) Os fatos se explicam e significam em si mesmos, não havendo transcendência ( faits-divers): Os fatos que emergiram na sociedade se resumem nas respostas a quem?, que?, quando?, onde?, como? e porquê? que elucidam a si mesmos. São apenas a enumeração dos incidentes que compõem o próprio fato singular. É o relato do agir do homem no que ele tem de mais paixão e emoção. Não é propriamente um agir humano baseado na vontade, liberdade e racionalidade como classifica a ética escolástica, mas um ato humano fisicamente considerado, ou seja, um ato do homem sem a responsabilidade ética por faltarem nele os três elementos acima relacionados.
Conclusão
O singular é o reino e o paraíso do jornalismo. Este singular é o ente que quando aparece como novidade e fora do círculo do cotidiano, e portanto sendo um parecer de prestígio é passível de virar notícia. O ser está disperso na multiplicidade do ente, que ao aparecer esplendoroso revela o ser. Porém, no mesmo processo do aparecer o ser do ente pode se ocultar e dele se fazer apenas uma suposição. Tomar a aparência pelo ser mesmo. O brilho da estrela pela estrela. Ou ainda, dos vários aspectos como o ente aparece se perceber apenas um, quer dizer, aceitar uma parte pelo todo. O que jornalismo faz é seguir as pegadas do aspecto que se impôs e da suposição (opinião-doxa) sobre o que parece do fenômeno. Cria uma segunda aparência.
A história das pessoas, da sociedade e do mundo em geral, vai retirando todas as dobras que revestem e ocultam o ser do ente. É o verdadeiro Édipo que é ocultado pela fama e pela glória do Édipo Rei. Para o jornalismo, entretanto, importa a fama e a glória do protagonista, não ele próprio. O personagem cego, mendicante e marginalizado do seu povo, não pode ser mais notícia. Como ele, há milhares de pessoas que superlotam as cidades. Como ele, há milhares de indivíduos que nasceram predestinados a viverem miseráveis sobrevivendo do que sobra da sociedade. Se alguém, no entanto, furar indevidamente o bloqueio da indigência humana, poderá ser notícia por causa dessa proeza. É a mulher velha que aprendeu a ler. É o favelado que escreveu um livro. É o faxineiro de uma escola pública que entra para a universidade.
Outra dificuldade que enfrenta o jornalismo é que, como o ser e a aparência se implicam mutuamente, haverá sempre mudanças sucedendo-se. As aparências podem não corresponder mais ao que se esperava. O velho pode se apresentar como o novo e o novo como o velho. É essa possibilidade que as sociedades e regimes fechados (fascistas) aproveitam para enganar e falsificar a realidade. Mais uma vez, o jornalismo seguirá a estrada do que é apresentado com a aparência do novo. Parece que o jornalismo é refém do seu tempo e do mundo que é porta-voz.
Mudando o homem e a sociedade mudará também o jornalismo, mas isso não é fácil. A vida da aparência que é acessível apesar de iludível é a luta do homem para fugir da uniformidade, da mesmice e da massificação. Mas não é fácil como afirma Adorno e Horkheimer:
“Pela mediação da sociedade total, que engloba todas as relações e emoções, os homens se reconvertem exatamente naquilo contra o que voltara a lei evolutiva da sociedade, o princípio do eu: meros seres genéricos, iguais uns aos outros pelo isolamento na coletividade governada pela força.” (ADORNO, HORKHEIMER, 1985: 47 ).
O ser não é o objeto do jornalismo, mas a sua exterioridade quando extrapola os limites do mais e do menos em relação ao que é considerado normal. Isto é, poderão transformar-se em notícias os fatos que tragam no seu bojo os superlativos: o mais rico, o crime mais escabroso, o mais inteligente, o anão menor do planeta, o presidente e a estrela. É a cadela vira-lata que morde o cachorro pitbull que morde a cabeça de menino de 5 anos.
O que aparece é o pathos que interfere no ethos. É o patético do acontecimento que comove o leitor e desperta sentimentos de piedade e de tristeza. É da tragicidade e da crueldade na e da vida humana que pode brotar o ser do mundo. Porém, o constrangedor e a paixão que envolvem emocionalmente os fatos humanos são os ingredientes que o jornalismo se utiliza não para encontrar o ser das coisas, mas para expor só o que considera como compreensível para o leitor e despreza tudo que julga como incompreensível.
Se o mundo é o que se percebe. Se é o mundo é que vemos, o receptor do jornal, rádio e televisão terá que aprender a vê-lo de duas formas: pelo olhar direto sobre o mundo real no qual se encontra inserido e pela comparação com o mundo jornalístico tão envolvente e tão “real”. Essa segunda aparência do mundo apresentada pelo jornalismo é a força do próprio jornalismo, pois ele se apresenta bem estruturado, destacado e ainda serve de catarse para o leitor. Em outras palavras, o leitor compreende muito mais do que poderia dizer e definir, mas deixa para o jornalismo a tarefa de expressar o seu pensamento por não se sentir capaz de elaborar tal discurso.
Acreditando ser o mundo como uma totalidade e o ser como um todo, o homem se descobrirá a si mesmo na medida em que vai interagindo no sentido desse mundo transformar-se na sua casa, a casa do ser. O jornalismo dificulta essa trajetória, mas paradoxalmente, para a maioria dos leitores, é uma das poucas maneiras de contato com um mundo (jornalístico) que pode ser confrontado consigo mesmo.
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Édipo Rei é notícia
Como demonstração e exemplificação de como o jornalismo apresenta os fatos referenciados como uma nova realidade, ou seja, uma realidade jornalística, iremos transformar a história de Édipo em matérias noticiosas, para que se possa perceber a distância entre o fato real e o fato jornalístico.
A razão da escolha do mito edipiano se deve à tentativa de separar as questões éticas pertinentes à apuração e redação dos eventos dos acontecimentos e fatos que são por si mesmos opacos e burros, isto é, não se deixam apreender na sua essência. No caso em estudo, o próprio personagem desconhece o seu verdadeiro ser e só vive pela aparência. E como para o jornalismo interessa o que aparece e o que parece, se verá uma história jornalística que é diferente dessa mesma aparência edipiana. Édipo passa a ser notícia mostrando uma aparência que não revela o verdadeiro Édipo e deixa de ser noticia quando se torna o verdadeiro Édipo. A sua morte só merece uma pequena nota.
Homem derrota a Esfinge
A esfinge que vinha devorando os cidadãos de Tebas, já há algum tempo, foi destruída, ontem, por um homem conhecido po Édipo da cidade de Corinto, que decifrou o enigma proposto por ela.
O enigma que levou tanta gente à morte era o seguinte: qual o animal que pela manhã anda de quatro pés, à tarde com dois pés e à noite com três pés? Édipo respondeu que esse animal é o próprio homem, que quando é menino engatinha, já na juventude e maturidade se locomove com os dois pés, e na velhice usa uma bengala para se manter erguido.
Desde o assassinato de Laio, a deusa Juno mandou para Tebas a Esfinge para punir a cidade pela morte do rei. Geralmente, ela ficava em cima de uma rocha do monte Citero e propunha o enigma, e quem não soubesse decifrá-lo era devorado por ela. Parecia um monstro feminino, pois tinha o rosto e o busto de mulher, o corpo de leão, a cauda de dragão e asas semelhantes às das Harpias.
Édipo Casa com Jocasta
Com muita festividade, casaram-se, ontem, Édipo e Jocasta, nas dependências do palácio da cidade de Tebas. Jocasta é a viúva do rei Laio que foi assassinado por ladrões, na Fócida, numa encruzilhada entre Delfos e Dáulia, algum tempo atrás. O noivo recebeu de Creonte filho de Meneceu, regente de Tebas, a mão da irmã, como agradecimento por ele ter salvo os cadmeus da Esfinge que a todos devorava.
Édipo ganhou ainda, na mesma cerimônia, o trono que antes pertencera a Laio. É a primeira vez que um coríntio assume o poder em Tebas, pois todos sabem que Édipo é fiho de Políbio, rei de Corinto, e de Mérope. Ninguém estranhou o casamento e a doação do trono a Édipo, um estrangeiro, já que Tebas mantém boas relações com Corinto como demonstrou o empréstimo que fez àquela cidade no primeiro ano da guerra do Peloponeso.
Peste dizima Tebas
Passados mais de vinte anos de prosperidade, o reinado de Édipo vem sendo muito assolado por uma peste que é uma verdadeira e triste calamidade pública pela destruição de centenas de vidas. Até agora, as preces feitas nos santuários e os apelos aos oráculos foram todos inúteis. Os médicos desconhecem a origem e a causa da Moléstia.
A doença começa com um calor na cabeça e um vermelhidão nos olhos. A boca da cor de sangue exala um hálito fétido. Depois vêem os espirros e uma roquidão. Quando chega ao estômago há muitos vômitos de biles e muitas convulsões no interior do corpo. A temperatura interna é tão alta que muitos doentes se jogam nas cisternas para saciar a sede. As mortes acontecem entre o sétimo e o nono dia com muita diarréia e astenia. Com medo de contágio e mesmo numa combinação de sentimentos de desespero e apatia, os tebanos estão jogados à própria sorte, e com isso, a peste vai os matando como a um rebanho. Muitas casas estão vazias e já são poucos os que choram os seus mortos. Os corpos dos moribundos se amontoam e pessoas quase semimortas rolam nas ruas e perto de todas as fontes na ânsia por água. Os templos nos quais muitos se alojam estão repletos de cadáveres daqueles que morreram dentro deles.
O número de mortos é tanto que já não se segue os rituais funerários. Valendo-se das fogueiras dos outros, algumas pessoas, antecipando-se às que as haviam preparado, jogam nelas seus próprios mortos e lhe ateiam fogo. Outros cadmeus lançam os seus cadáveres que carregam em alguma já acesa e vão embora.
Além da epidemia os frutos da terra morrem ainda dentro dos seus rebentos, as grandes manadas de bois adoecem e o ventre das mulheres não conseguem segurar os embriões e abortam. Tudo isso tem levado os tebanos a ver nos acontecimentos toda a confirmação do oráculo de Delfos em que Apolo diz que a peste só cessará quando o assassino de Laio for julgado e assassinado ou expulso da cidade.
NOTA: Édipo ordenou, ontem, por decreto, que o assassino de Laio não seja acolhido por nenhum habitante de Tebas; que ninguém o hospede, nem o admita às súplicas e aos sacrifícios aos deuses, nem o banhe com com a água lustral; que todos o afastem de suas casas, que seja para todos um ser impuro.
Mistério chega ao fim: Édipo é o assassino de Laio
Os cidadãos de Tebas estão perplexos com os crimes atribuídos ao seu rei considerado como o primeiro, o mais poderoso e o melhor dos homens
Por incrível que pareça, as investigações comandadas pelo palácio tebano, apontaram, ontem, o rei Édito como o possível assassino de Laio, acontecido há muito tempo numa encruzilhada entre Delfos e Dáulia.
O que reforçou a descoberta do assassino de Laio foram os oráculos que atribuíam ao crime sem castigo todo o sofrimento advindo pela peste. Até então, não havia sido possível descobrir nada por falta de testemunhas. Foi só através de Tirésias, um adivinho velho, cansado e cego que se deu início a novas revelações. Tirésias afirmou, com muita coragem, que Édito era o assassino de Laio, e portanto, o criminoso tão procurado. No entanto, Édito não aceitou a revelação pois achava que Tirésias e Creonte estavam planejando roubar o seu trono com inveja de sua glória que se iniciou quando derrotou a esfinge.
Mesmo acusando Tirésias de loucura, Édito foi se recordando de um fato que aconteceu com ele muito parecido com o crime de Laio. As coincidências eram as seguintes: Laio foi morto numa encruzilhada, no encontro das estradas quevêm de Delfos e de Dáulia; tudo aconteceu um pouco antes de Édito se tornar rei de Tebas; Laio era alto, tinha cabelo grisalho e era parecido com ele; no dia do crime Laio ia num carro e acompanhado de cinco guardas e, entre eles, um arauto. Porém, mesmo sem aceitar que matou Laio, contou para Jocasta o que lhe aconteceu. “Ia eu não muito longe da encruzilhada, quando vieram ao meu encontro um arauto e um homem grisalho que ia num carro de cavalos; o cocheiro e o velho quiseram afastar-me violentamente do caminho; cheio de cólera, batí no cocheiro que me empurrava; o velho quando me viu passar ao lado do carro, aproveitou a ocasião e bateu-me com o chicote na cabeça; não sofreu o mesmo, porque logo, com uma pancada de cajado que levava, o atirei do carro abaixo; e matei também todos os outros”.
Depois que foram ouvidas todas as testemunhas, os fatos adquiriram novos significados e revelações. A verdade é que Édito, mesmo sem saber, matou o próprio pai e casou com a mãe com a qual teve quatro filhos. É um parricida e maculou o sangue dos pais e dos filhos que também são seus irmãos.
Desespero faz Jocasta se matar e Édipo furar os olhos
Após as assombrosas revelações Jocasta penetrou no vestíbulo, cheia de desespero, foi até o quarto nupcial, arrancando os cabelos com as mãos, e depois de entrar, fechou violentamente a porta por dentro e invocou Laio. Recordou-se do casamento a que saiu este filho que devia matar o pai e ter filhos com a mãe. Chorou sobre o leito em que, duplamente infeliz, teve um marido dum marido e filhos dum filho. Depois se enforcou com uma corda. Édipo com todo custo conseguiu arrombar a porta e desprendeu a corda. Em seguida, com uma dor insuportável, arrancou o alfinete de ouro do vestido de Jocasta e furou os olhos, dizendo que não mais veriam os males que sofrera e as desgraças que tinha causado. Dos seus olhos escorria um derrame escuro, era sangue em torrentes.
Não suportando mais tanto sofrimento, pediu a Creonte que o levasse para fora da terra, num lugar em que não possa falar a nenhum dos mortais. Pediu ainda para viver nas montanhas, no Citero, que considera com sua única terra, pois era lá que deveria ter sido morto por ordem dos pais.
E antes de partir implorou a Creonte que cuidasse de suas filhas Polinice e Ismena. Antígona foi a única filha que acompanhou o pai.
NOTA: Depois de longas viagens pela Ática, onde recebeu asilo de Teseu, Édipo morreu ontem em Colona, um burgo perto de Atenas. Contam alguns tebanos que Creonte e as filhas de Édipo o chamaram de volta, pois o oráculo previra que o país que tivesse sua tumba seria protegido pelos deuses. Édipo recusou-se a voltar.
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As notícias que são a matéria prima tanto do jornalismo informativo quanto do opinativo servem de base para outras matérias como editoriais, colunas, comentários, artigos, e crônicas. Nas reportagens interpretativas se buscaria o sentido e o significado dos fatos assim como uma base contextual. Artigos, por exemplo, utilizariam os fundamentos das ciências humanas e sociais na busca de um aprofundamento. Em outras palavras, se tentaria arrancar os fatos do reino da aparência para fazer emergir o reino do ser, da verdade. Mas, isso é possível?
Vários enfoques ou um conjunto deles podem ser alçados, mesmo assim, parece-me que a aparência de Édipo é tão brilhante e gloriosa que o ser de Édipo é o que parece ser. É uma tragédia da aparência, pois ao descobrir o seu verdadeiro ser, morre instantaneamente seu aparecer que é sua fama, mas que não corresponde ao ser do ente. É como se a luz não pertencesse a estrela ou não fosse a estrela mesma. A luz é sua aparência e a manifestação do seu ser. No entanto, com Édipo acontece o contrário.
Como o jornalismo poderá alcançar ou penetrar o ser através de uma aparência, se muitas vezes ele próprio é o criador dessa aparência? Por isso, muitas vezes, vai buscar interpretações extemporâneas com o intuito de compreender o que se passa. Assim, poderá dizer:
“Édipo é o símbolo do homem que oscila entre o nervosismo e a banalização. Ela compensa sua inferioridade (a alma ferida) por meio da ativa busca de uma superioridade dominadora. Mas seu sucesso tornar-se-á a causa de sua derrota.[…] Ele representa o conflito assassino que dilacera a alma do coxo: a ambivalência entre a vaidade ferida e a vaidade triunfante. Por sua vitória sobre seu pai, Édipo não escapa à sua própria vaidade.[…] Ao furar os olhos ele recusa ver. Este gesto, expressão do paroxismo do desespero, é ao mesmo tempo o símbolo da recusa definitiva de ver. O olhar interior se cega. A culpa é reprimida ao invés de ser sublimada. O remorso aterrorizador não conseguiu tornar-se arrependimento salutar. A cegueira vaidosa é completa, a luz interior se apaga, o espírito morre.” (CHEVALIER;CHEERBRANT,1988).
É um texto que como se vê usa o protagonista como modelo de comportamento humano, mas não revela o ser de Édipo. Foge assim do fato propriamente dito e da possibilidade de ver o verdadeiro Édipo.
Para Freud e a psicanálise a lenda grega é uma tradução do mundo da fantasia de uma criança para a suposta realidade. Em outros termos, a lenda, na verdade, é a história de todo homem que sonha casar com a mãe como afirma Jocasta na peça de Sófocles. É todo menino que deseja possuir fisicamente a mãe e tenta seduzí-la mostrando-lhe órgão masculino que está orgulhoso de possuir. Procura depois livrar-se do pai que o tem como rival. E assim, novamente, o Édipo jornalístico é deixado de lado para servir de paradigma da inevitabilidade do destino que condenou todo menino a passar por esse complexo.
Poder-se-ia também recorrer a crítica marxista do capitalismo as razões do comportamento de Édipo que busca o sucesso, mesmo que tenha de usar meios ilegais e não éticos. A sua ignorância é sua alienação. Na verdade ele sabia o tempo todo quem era, mas a sociedade burguesa precisa de heróis e ídolos para que a massa se conforme com sua situação de espoliado. É só quando a cidade e seus cidadãos não suportam mais tanta miséria e sofrimento, é que Édipo é considerado culpado e tudo o que fez pelo povo é esquecido. Aqui a predominância e o valor é da aparência. Importa o que aparece e como parece. Também aqui o jornalismo poderia descobrir o Édipo verdadeiro, mas não o encontraria, pois o capitalismo não se interessa pelo ser, mas pelo ter.
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[Marconi Oliveira da Silva é jornalista e professor]