Mais de duas décadas depois, Alberto Dines reincidiu em Stefan Zweig. Fruto, como ele mesmo afirma no prólogo desta terceira edição de Morte no Paraíso, de motivações e estímulos que o premiam desde quando terminou as duas primeiras, em novembro de 1981 e em janeiro de 1982.
Ainda conforme suas palavras, a retomada começou a ser elaborada quando passou a colecionar valiosas contribuições de leitores que conheceram o personagem. Uma viagem a Salzburgo para um congresso que lembrava os 50 anos da morte de Zweig e uma garimpada em Estoril – à época em que residia em Lisboa – onde o mesmo Zweig passara férias em 1938, que se revelaram francamente proveitosas, fizeram o resto.
As ditas contribuições de leitores configuram o que se poderia chamar de interação literária, expressão um tanto estranha em tempos em que interatividade e congêneres se anunciam como exclusividade das tecnologias televisivas, dos reality shows da vida e das mídias de caras, bocas, bundas e sucesso a qualquer custo e a qualquer pretexto.
Bom saber, portanto, que livros podem se fazer em veículos interativos, ainda mais quando já tiveram sua existência posta a risco em favor dos e-books.
Tudo bem que tal prerrogativa limite-se ao gênero das biografias. Interagir com as aventuras de Harry Porter, por exemplo, não passaria mesmo de coisa lúdica, independentemente da idade do agente (leitor) que protagoniza a interação.
Dispensável lembrar que o pressuposto para a interação literária, mormente no caso de uma obra da densidade de Morte no Paraíso, reside na qualidade do produto ou, numa acepção mais subjetiva – e portanto mais aplicável – na receptividade deste junto ao distinto público leitor. Obedecidos tais critérios, resulta que apenas as boas biografias – e portanto apenas os bons livros – merecem dar-se à interatividade.
Resta, pois, admitir que Alberto Dines logrou fazer um ótimo livro em cima de outro, já bom por natureza, tanto que seus leitores, na forma de ‘valiosas contribuições’, indiretamente (subjetivamente) pediram bis.
O livro e o tijolo
Nada mais gratificante para o escritor, rotineiramente descrito como um ser solitário, abandonado, fustigado por dúvidas, ameaças, maus presságios e pesadelos.
No caso específico de Dines, ou da relação Dines/Zweig, porém, talvez seja útil ir além do axioma escritor bom = livro bom. Aqui, biógrafo e biografado se aproximaram por obra e graça do destino, e não em função de aquele passar a rastrear este pura e simplesmente por força do ofício.
O primeiro, aos oito anos de idade, foi apresentado ao segundo, já em plena idade madura e mundialmente famoso. O encontro matutino, colegial (no sentido de uma escola boa, entidade educacional hoje quase reduzida às reminiscências saudosistas), funcionou como poderosíssimo e definitivo start para o menino curioso; cuja curiosidade, a propósito, já vinha sendo sábia e estrategicamente adubada pelos seus pais.
Zweig está para Dines assim como Monteiro Lobato está para tantos de nós, brasileiros da era pré-TV ou, no máximo, dos primórdios desta, no sentido de iniciação literária, de refinamento intelectual ou de tentações cosmopolitas. Um batismo e tanto, de dar inveja a qualquer nativo dessas plagas tropicais e provincianas minimamente motivado a fazer a própria cabeça em tempo hábil.
E assim chegamos ao ponto. Onde situar, no atual contexto, e no plano das idéias: (1) a biografia que, de tão magistralmente bem-feita, veio de novo à luz, e (2) seu obsessivo e tenaz biógrafo, fadado a ler, a escrever e a fazer jornalismo com rara competência desde o momento em que, na infância, vislumbrou o biografado, tipo assim um passe de mágica ou uma performance da fada-madrinha, sinceramente preocupada com o futuro do seu protegido?
A pergunta – ou a provocação, vá lá –, faz todo o sentido a partir do momento em que atrelamos a supracitada interatividade literária – ou o prazer de ler – a parâmetros fundados em faixas etárias mais novas.
Aí o bicho pega. Se biografias não morrem – bem ao contrário ressuscitam, assomam, irrompem, eclodem, por vezes assombram (como está muito bem posto em Morte no Paraíso) – a quantas anda a real autonomia de leitura entre as galeras para as quais as duas grandes guerras não passam de chatices que caem no vestibular? Idem para a efervescência cultural da Europa dos anos 1920 e 30, para os pogroms, as diásporas, os exílios, a literatura de exílio, etc, etc.
Recentemente, João Ubaldo Ribeiro, em O Globo, discorreu sobre a matéria, concluindo que hoje o pessoal (as galeras) é incapaz de distinguir um livro de um tijolo. Não foi contestado. À mesma época, Luiz Garcia, do mesmo matutino e reconhecido amante das boas leituras, bateu na mesmíssima tecla.
De modo que não se trata aqui de questionar se a obra de Dines é boa ou não. Que é boa já se sabia (ou se deveria saber) há 20 anos. Recebeu apenas oportuna e ótima guaribada, uma imposição artística a que sucumbiu seu autor. Ademais, se não existe almoço grátis, não há editor besta dando sopa por aí.
Passes de mágica
Na Viena de antanho havia ‘desperdício de cultura’, diz lá pelas tantas Dines no livro. Pois é. Enquanto isso, no exuberante paraíso tropical que atraiu o deprimido Zweig a ponto de sugá-lo para suas entranhas pelo resto da eternidade, rola uma carestia de cultura (ou pelo menos um desábito de ler, ainda mais história, cultura, biografias…) digna de se ombrear aos indicadores sociais africanos.
Tanto que Dines, mal-acostumado à burrice geral, por egresso de um tempo onde ser apresentado a um grande escritor no pátio da escola era um grande barato, com inúmeros e promissores desdobramentos, incorreu nesta última edição de Morte no paraíso naquilo que se poderia chamar de presunção de cultura.
Exemplo: cita Sigmund Freud referindo-se a suas dificuldades com a prótese bucal. E isto numa nota de rodapé. Quem, ou quantos mesmos, sabem por aí o motivo de tal prótese? Ou mesmo quem foi seu portador?
Biografias, a despeito de imortais, têm que enfrentar essa barra. Ou, mais precisamente, quem têm que encarar são os biógrafos e demais escritores.
Coisa assim como encarnar um Sísifo contemporâneo, condenado a empurrar livros lá pra cima, onde pontificam as galeras iletradas e monossilábicas, que sistematicamente os fazem rolar ladeira abaixo.
Exagero? Pessimismo em overdose?
De qualquer modo, não houve, nem há, passes de mágica nem fadas-madrinhas. Houve, e é dramaticamente necessário que continue a haver, berço, família, culto à inteligência, ao convívio sadio e à alegria de viver.
E aí, não só para biógrafos e jornalistas consagrados, mas para quem quer que seja de bem com a vida, só resta olhar para trás e agradecer de coração.
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Médico e jornalista