‘Com raras exceções, o correspondente bem-sucedido é prima donna, workaholic, egoísta e solitário, às vezes agressivo, às vezes dissimulado.’ (Victoria Brittain)
‘Ele não era um neurótico, prostituído, bandido e bêbado como 99% de todos os demais.’ (Stringer não identificado)
‘Todo o correspondente deveria ser eunuco.’ (F. Birchall, New York Times,1930)
Quanta sabedoria! Estas são algumas das melhores e mais bem humoradas citações do novo livro do jornalista e acadêmico Carlos Eduardo Lins da Silva, Correspondente Internacional, lançado pela Editora Contexto (ver, neste Observatório, ‘Com os olhos no mundo‘). O autor tem plena consciência da dificuldade de escrever sobre tema tão sensível e polêmico:
‘Vou navegar em águas quase inóspitas. Não é muito grande, nem no exterior nem muito menos no Brasil, a literatura teórica sobre o correspondente internacional e sua prática.’
Por falar em dificuldades e ‘águas inóspitas’, gostaria de contribuir para o debate com algumas críticas e comentários. Mas também faço questão de valorizar o excelente trabalho do ‘velho’ correspondente. Apesar de discordar de algumas afirmações, estamos diante de um excelente trabalho sobre correspondentes internacionais.
Creio que o livro é saudosista e até certo ponto tendencioso em relação a uma determinada espécie de correspondente internacional. Um segmento da profissão que por diversos motivos pode estar diante da própria extinção. Mas também aproveito a oportunidade para discutir um possível ressurgimento do jornalismo internacional. Alguns eventos estão merecendo cada vez mais espaço na mídia brasileira e podem apontar um maior interesse do público pelas matérias sobre o mundo lá fora.
Em meio a um verdadeiro tsunami de matérias internacionais que misturam a morte de Osama Bin Laden com o casamento real, o terremoto no Japão e os levantes no Oriente Médio, o novo livro de Carlos Eduardo Lins da Silva ousa tentar desvendar os mistérios e segredo da ‘tribo’ dos correspondentes internacionais. Ou seja, tanto o livro quanto o debate são mais que bem-vindos. Eles são necessários.
Prática corriqueira
Carlos Eduardo Lins da Silva foi correspondente da Folha de S.Paulo em Washington. Fez parte da elite dos correspondentes internacionais por muitos anos, em tempos diversos, mas trabalhou como correspondente, segundo sua própria definição, somente em Washington.
No paper ‘Um paradoxo possível: a trajetória comunicacional de Carlos Eduardo Lins da Silva‘, apresentado à disciplina Pensamento Comunicacional Latino-Americano, do doutorado de Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo (1999/1), o jornalista e professor Edgard Rebouças apontou:
‘O amigo e também correspondente internacional Luiz Carlos Azenha, a quem Lins da Silva pediu que fizesse a apresentação do livro [O Adiantado da Hora : a influência americana sobre o jornalismo brasileiro, Summus, 1991], escreveu a primeira frase com a seguinte provocação: ‘O autor deste livro é americanófilo’. E complementa que o colega encontrou nos Estados Unidos o seu nirvana.’
E isso fica evidente no seu novo livro: ‘Honestamente, eu até hoje prefiro andar pelas ruas de Washington (não de Nova York) ou Vancouver, com segurança e sem tropeções… Mas isso não necessariamente me impede de saber o que se passa no Brasil’, escreve.
Lins da Silva relembra e defende um determinado modelo de jornalismo e identidade profissional:
‘Correspondente internacional vai ser aqui considerado como o jornalista sediado em um país que não o seu de origem com a missão remunerada de reportar fatos e características dessa sociedade em que vive para uma audiência da sua nação materna por meio de um veículo de comunicação.’
E sobre o grau de importância dos jornalistas internacionais, acrescenta:
‘Senioridade dá mais estrelas nas divisas do correspondente. Os mais idosos e os que tiveram cargos de chefia na sede estão, em geral, acima na escala hierárquica.’
‘O enviado especial, embora faça quase exatamente isso, em geral, viaja por períodos curtos e com a missão de cobrir um evento específico e, assim, não se enquadra como correspondente internacional.’
‘O correspondente com vínculos empregatícios regulares com um veículo está acima dos freelancers e dos stringers, estes tratados por alguns entre aqueles com certa dose de humilhação sádica.’
‘O grau mais baixo é o do chamado ‘paraquedista’, que fica apenas algumas semanas num local, em função de algum acontecimento importante, e logo vai para outra missão’.
Os tempos mudaram. Pode ser o grau mais baixo, mas o ‘paraquedista’ ou ‘correspondente baseado em sua própria cidade’, até mesmo o ‘correspondente sem sair de casa’ podem ser não só mais econômicos, mas também mais eficientes e menos dispersivos (ver, rolando a página, ‘Correspondente sem sair de casa‘). Questão de competência e intimidade com as novas tecnologias.
Pelo jeito, Lins da Silva não consegue perceber que muitos jovens correspondentes são diferentes, mas também são competentes:
‘Por mais que o mundo esteja se tornando um ambiente de ‘multitarefas’, e ainda que os integrantes desta geração tenham nascido sabendo como ficar ao mesmo tempo ligados ao Facebook, à TV, ao Google, ao videogame, ao YouTube, possuem um cérebro de ser humano, que não consegue ter um bom desempenho se tiver de ouvir e falar (ou escrever) textos diversos no exato mesmo instante.’
Deve ser mesmo muito difícil viver em um novo mundo. O correspondente da era digital está mais próximo das novas tecnologias e de novos desafios. Está cada vez mais distante dos velhos modelos e das velhas capitais – longe do circuito Helena Rubinstein (Londres, Paris e Nova York), mas buscando novas pautas, novos veículos de comunicação e novos públicos. O correspondente da era digital vive e sobrevive espalhado pelos ‘buracos’ do mundo como freelancer e operando seu kit-correspondente virtual.
Há jornalistas brasileiros – muito dedicados e competentes – trabalhando como freelancers na Nova Zelândia, na Índia, na China e na África. Acreditam no espírito de aventura e ousadia que também já foram tão típicos da profissão. Dispensam o caminho único dos ‘veículos de prestígio’.
Os correspondentes internacionais, principalmente aqueles que trabalhavam para veículos tradicionais, como a TV Globo, por exemplo, durante muitos anos estavam mais preocupados com as suas aulas de tênis, reservas em restaurante caros e as visitas dos patrões do que com a cobertura internacional.
Garra e vontade
Para muitos bons correspondentes de ‘veículos de prestígio’, chupar pautas também era prática corriqueira e aceitável. Eles pagaram um preço alto pela crise econômica que atingiu os tais veículos de prestígio, mas pagaram preço ainda maior pela displicência e descaso com o público.
Ser correspondente internacional, muitas vezes, era prêmio para jornalista dedicado e disciplinado, ou forma de ‘esfriar’ certos repórteres que se envolviam em dificuldades. O escritório de Londres da Globo, por exemplo, no charmoso prédio da WTN, durante muitos anos teve dezenas de profissionais espalhados em muitos metros quadrados com milhões de dólares em equipamento produzindo essencialmente ‘passagens’ no estacionamento. Hoje, os grandes escritórios dos veículos de prestígio não passam de mera lembrança, nostalgia e saudosismo.
Em minha opinião, Lins da Silva defende não a ‘tribo’ dos correspondentes, mas uma espécie muito específica de jornalista que vive no exterior: os ‘bons’ correspondentes dos ‘veículos de prestígio’.
Aqueles mesmos correspondentes – nem todos, é claro – que no final do século passado levavam vida de diplomata, se achavam ‘embaixadores’ de seus países ou de seus veículos jornalísticos.
Os ‘correspondentes dinossauros’ – assim como as grandes empresas de jornalismo, os tais ‘veículos de prestígio’ – lutam para sobreviver. Mas, apesar das críticas e ironias, proliferam novas formas de fazer jornalismo internacional. E não só os jornalistas freelancers ou stringers trabalham de forma solitária para pequenas empresas, muitas vezes em condições precárias. Hoje, muitos leitores se cotizam e fazem doações para enviar seus blogueiros especializados ou ‘novos’ correspondentes para cobrir os grandes eventos internacionais.
Jovens e inexperientes correspondentes em condições difíceis não significam necessariamente maus jornalistas. Alguns dos nossos melhores profissionais também foram jovens um dia e trabalhavam com poucos recursos. Compensavam a falta da experiência com muita garra e vontade de acertar. Estamos recuperando um outro passado. Eu também estive lá. Vi com meus próprios olhos.
Contra o jornalista-cidadão?
Para Lins da Silva, ‘a pessoa comum, o cidadão, é incapaz de exercer a atividade com a mesma competência se não tiver alguma formação profissional específica para tanto… O jornalista-cidadão pode dar importantes contribuições ao jornalismo e à sociedade, e o tem feito. Mas depender apenas dele para coberturas é extremamente arriscado’.
‘Minha convicção é de que o correspondente é necessário agora, tanto ou mais do que foi no passado… Só ele pode dar ao cidadão o conteúdo de que necessita para se localizar corretamente na fartura informativa contemporânea… Mesmo que a maioria da audiência não ligue muito para os temas internacionais, eles precisam ser bem cobertos por bons correspondentes.
‘Os veículos jornalísticos chamados ‘de prestígio’ são os que têm de dar conta da tarefa. Não importa em que tipo de plataforma opere (impressa, eletrônica, virtual), o veículo de prestígio é quem tem condições de ir mais a fundo na elaboração dos fatos.
‘Além disso, depender demais dos jornalistas-cidadãos expõe o veículo jornalístico a riscos enormes quanto à credibilidade das informações oriundas dele.’
Mas, afinal, quem são os ‘bons’ correspondentes? Quais são os veículos de prestígio? E o mais relevante: o que ainda é considerado ‘credibilidade’ em um mundo de tantas fraudes e mentiras produzidas por veículos de prestígio como o New York Times, por exemplo?
Não creio que estamos diante de uma questão excludente. Não se trata de depender unicamente de uma nova forma de fazer jornalismo. Estamos diante de uma alternativa aos correspondentes tradicionais. Sem dúvida, eles merecem continuar existindo e garantindo seus privilégios. Que não são poucos. Mas, cada vez mais, terão que enfrentar um novo mundo com mais competição e menos privilégios.
Melhor emprego e alguns eventos
Acredito que o penúltimo capítulo, ‘Dois expoentes’, com 38 páginas ou quase um quarto do livro, sobre o trabalho de dois quase desconhecidos jornalistas americanos, John Reed e William L. Schirer, apesar de interessante seria dispensável e foge à proposta do livro.
Afinal, o autor diz que o livro ‘tem o objetivo de fazer uma exploração analítica dessa função profissional… com ênfase nos brasileiros da virada do século’. Poderíamos ter lido mais sobre grandes nomes do jornalismo internacional brasileiro, principalmente aqueles que ainda lutam para evitar a extinção da tribo.
Assim como o livro, esse capitulo é muito ‘americano’ e saudosista. Mas este comentário pode não ser necessariamente uma crítica negativa. Também pode ser considerado um elogio.
A título de contribuição para futuras edições que certamente virão, podemos constatar alguns erros de revisão nas páginas 61 (eram pagas por ‘contra’) e 136 (‘solados’ rasos). Mas esses pequenos deslizes, assim como o trabalho dos correspondentes internacionais, novos ou velhos, são considerados erros menores diante da grandeza da obra como um todo.
Correspondente internacional, de Carlos Eduardo Lins da Silva, é leitura indispensável para quem ainda sonha em fazer parte da elite do jornalismo ou de uma determinada ‘tribo’ de correspondentes. Pelo menos, antes que ela acabe. Afinal, como tão bem descreve o autor, ‘o melhor emprego do mundo, depois de se ter sido correspondente estrangeiro, é ser correspondente novamente’.
E já que estamos diante de um possível ressurgimento do jornalismo internacional, aproveito para recomendar o seminário ‘A cobertura internacional e seus novos desafios’, na Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), Campus Rudge Campos, São Bernardo do Campo, na terça-feira, 10 de maio, das 9h às 13h. O evento pretende ‘descobrir como as agências de notícias estão se adaptando à era digital, o contrafluxo de informação neste novo ambiente virtual, e entender como os canais de notícia 24 horas operam frente aos novos agentes da informação’. Terá a participação de jornalistas internacionais renomados, velhos e novos, como Oliver Boyd-Barett, Alberto Gaspar (TV Globo), Maria Cleidejane Esperidião e Pedro Aguiar.
E para quem não pôde ir a São Bernardo, também recomendo o programa Jornalismo em Debate da Rádio Ponto da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) sobre jornalismo internacional: ‘Coberturas internacionais: da morte de Bin Laden ao casamento real; dos conflitos na Líbia ao terremoto no Japão. O que o Brasil tem a ver com isso?’, disponível aqui.
******
Jornalista, professor de Jornalismo da UFSC, autor do Antimanual de Jornalismo (Editora Senac SP)