O escritor José Ribamar Ferreira de Araújo Costa, mais conhecido por José Sarney, publicou Saraminda (2000), um romance delicioso, de alta qualidade, naturalmente muito acima dos textos desarrumados que o autor publica às sextas-feiras na Folha de S.Paulo, dos discursos desconexos que faz no Senado e de alguns dos livros anteriores, como Brejal dos Guajas (1985), assim criticado (posto em krísis, portanto) por Millôr Fernandes:
‘A cidade, que não tem escola, tem professora e alunos, não tendo telégrafo transmite telegramas, não possuindo edifícios públicos tem prefeitura, câmara de vereadores, juizados de casamento, dois cartórios, ostenta uma força policial de pelo menos 12 homens (relativamente, o Rio teria que ter uma força policial de quase meio milhão de policiais), é dominada por dois primos por pais diferentes (!!!!), `ricos e poderosos´, e, tendo só duas ruas (quase uma impossibilidade urbanística; eu sei como desenhar uma cidade de duas ruas, Ele não sabe), tem duas orquestras (ele quer dizer bandas), e comporta ainda mercado, lojas, igrejas matriz etc. O verdadeiro milagre brasileiro!’.
A crítica lhe fez bem! Leiamos pequeno trecho de Saraminda:
‘Seus seios, pontiagudos, brilhavam como o ouro. Talvez fosse esse o maior encanto que a crioula Saraminda, de sangue francês, tenha exercido sobre Serapião Bonfim, o abastado garimpeiro que no final do século passado dominou parte das riquezas da região de Calsuene, entre o Brasil e a Guiana Francesa. Serapião desejou profundamente aquele corpo sensual. Arrematou-o por 10 quilos de ouro, em um leilão em Caiena, capital guianense, e levou Saraminda para o garimpo, onde ela reinaria absoluta. Lá, tornou-se escravo dos caprichos dela. Ela se banhava no rio com cachorros trazidos de regiões distantes e andava despida na carruagem, um tílburi importado da França, cortinas fechadas, somente para enlouquecer os habitantes daquele local’.
Agora, José Sarney na Folha (14/08/2009):
‘Machado de Assis, na crônica célebre sobre o Senado do Império, vê como em sonho a porta sendo fechada sobre as sombras, deslizando nos corredores dos personagens que tinham sido construtores do país, porque o Brasil, suas instituições, foram feitas pelos políticos e, sobretudo, pelo Parlamento. Nada para entrar em pânico nem julgar a instituição maior da democracia, o coração do povo, que é o Parlamento, em seus momentos de crise – uma palavra grega, decisão, que não significava um problema em estado de ebulição –, quando a democracia se enfraquece’.
Barba e cabelo
Destaco: ‘crise – uma palavra grega, decisão’. Só se os atos secretos já afetaram também a etimologia. Crise, do grego krísis, designa momento de escolha, de discernimento. O étimo é o mesmo do verbo krino, separar.
A pessoa pode ou não tomar uma decisão diante da crise para resolver o dilema, também uma palavra de origem grega, díllemma, designando situação em que o indivíduo precisa escolher entre duas saídas contraditórias, já sabendo de antemão que as duas têm prós e contras e nenhuma delas vai resolver a situação.
Depois de escala no latim crisis, crise chegou ao português crise. Tem também os significados de momento decisivo, separação e julgamento. A crise leva à ruptura com o estado anterior. O novo rumo tomado pode ser de melhora ou piora, tanto em medicina como em sociologia, onde o vocábulo é muito usado.
A julgar por nossos cientistas sociais e economistas, o Brasil está em crise desde o descobrimento. Ou, de acordo com os mais pernósticos, desde os tempos em que não podia contar com suas altas consultorias, planos e estudos.
O maestro e compositor Tom Jobim advertiu os que não nos entendem com uma frase de grande sabedoria: ‘O Brasil não é para principiantes’.
O Brasil parece sempre em crise. Todavia a crise que nos afeta hoje é mais política do que econômica e social.
O povo vê de outro modo as sucessivas crises. Uma delas leva até ao aumento da caspa, segundo os cabeleireiros, e também da unha encravada, de acordo com as manicures e pedicures. Foi o que ouvi quando certa vez perguntei sobre uma das crises – esqueci qual – a esses profissionais que liam minha coluna de etimologia na revista Caras, num salão de cabeleireiro, aportuguesamento de coiffeur, que também tem a presença do étimo latino – quietus – na partícula francesa coi, já que a pessoa precisa ficar quieta para que a outra lhe arrume os cabelos.
A mídia está fazendo barba, cabelo e bigode em José Sarney. Mas o ex-presidente da República e atual presidente do Senado está quieto ou está inquieto?
Ocaso político
Joaquim José Felizardo, sobrinho de Luís Carlos Prestes e autor de livros memoráveis, como História Nova da República Velha, divertia seus amigos com observações tão pertinentes quanto jocosas. Afirmava, por exemplo, que figuras como José Sarney, quando estão muito mal, ainda assim estão muito bem, se comparadas com a maioria. E exemplificava com o político gaúcho Nestor Jost: ‘Este, quando está em baixa, é presidente do Banco do Brasil ou ministro da Agricultura. É sua fase negra!’.
Pois José Sarney, a bordo dos 80 anos, navega por mares procelosos. Ainda não tomou nenhuma decisão, a menos que a sua seja ‘deixar tudo como está para ver como é que fica’, expressão retirada de O Leopardo, do italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957), presente no discurso que Tancredi faz ao tio:
‘A não ser que nos salvemos, dando-nos as mãos agora, eles nos submeterão à República. Para que as coisas permaneçam como estão, é preciso que nada mude’.
O romance, recusado por muitos editores, somente veio a lume dois anos após a morte do autor. Faz muitos anos que conta com ampla aprovação da crítica e dos leitores, duas entidades difusas, raramente em acordo.
No caso de José Sarney, a mídia segue uma das maiores paixões nacionais: a condenação de tudo, sem discernir que ele escreveu um grande romance. É preciso fazer o que os gregos faziam: na krísis, kríno, separar.
E dar à crise um título apropriado, que lhe defina exatamente os limites. O felino gattopardo, leopardo, caminhava para a extinção na África e na Ásia quando Lampedusa escreveu seu livro. Ao dar este título para o romance, o autor mostrou que a aristocracia corrupta da Sicília ia tendo o mesmo fim.
Mas o ocaso político de José Sarney, qual será? Em 1999 ele prometeu à mídia que ia deixar a política para dedicar-se integralmente à literatura. Que pena, para ele e para o Brasil, que não cumpriu o propósito!
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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é coordenador de Letras e de teleaulas de Língua Portuguesa; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da Editora Novo Século)