Determinados livros possuem características imaginativas e singulares, são dinâmicos. Refazem ou confirmam, de modo criativo, os acontecimentos históricos dos seus personagens principais. Ou ainda, de maneira aguda, podem ser ‘o machado para o mar enregelado que temos dentro de nós’. É o caso do recente lançamento de Kafka e a Marca do Corvo (Geração Editorial, São Paulo, SP, 2009, 186 Páginas, R$ 26,00), de autoria da premiada escritora brasileira Jeanette Rozsas, diretora da União Brasileira de Escritores (UBE), que levou três anos em pesquisas e viagens ao exterior, para escrever a primeira biografia romanceada de Franz Kafka (1883-1924).
O interessante são os diálogos metamorfoseados na construção dos trechos, extraídos dos próprios livros, diários e cartas do gênio de Praga, histórica e muito antiga, a cidade das torres, capital da atual República Tcheca, banhada pelo rio Vltava. ‘A idéia era fazer não mais um livro de tese, mas um romance biográfico. E voltado ao público jovem e também ao adulto não acadêmico, portanto a linguagem não deveria ser nem infantil demais nem intelectualizada em excesso. Fora que eu precisei contextualizar: a época em que K. viveu, as paisagens, as viagens, a política reinante, a religião, enfim, dar ao leitor um relato o mais próximo possível do que foi Praga em fins dos séculos XIX e o ambiente no qual o escritor cresceu e viveu.’ A autora revela a luta de um homem contra os seus próprios demônios, o amante que tem medo do amor, e o principal: o nome Kafka, em tcheco, significa corvo. Uma marca, nódoa e sinal para sempre na sua existência.
A materialização do pesadelo
Kafka e a Marca do Corvo tem apresentação do crítico e também ficcionista Nelson de Oliveira. ‘Kafka continua vivo graças a seus escritos e principalmente aos escritos de outros escritores que, magnetizados pelo absurdo kafkiano, transformaram o escritor tcheco no protagonista de outra aventura literária: sua própria vida.’ E acrescenta sobre o livro: ‘Revela, com as cores enfáticas e cativantes da arte romanesca, o labirinto de angústias, impasses, realizações e paixões de Kafka.’ Observa-se também, pelos agradecimentos da escritora, a presença iluminada do paulista Modesto Carone, ganhador do Jabuti 1999 com o romance Resumo de Ana (Cia. das Letras, São Paulo, SP, 1998), ex-professor de Literatura da Universidade de Viena (Áustria), Unicamp e USP, um dos maiores estudiosos, conhecedores da vida e grande tradutor da obra de Kafka. No mesmo nível, não podemos esquecer, uma raridade nos melhores sebos, o sempre útil Kafka: vida e obra (Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, RJ, 1979, 5ª. Edição) do pensador, pesquisador, filósofo e escritor fluminense Leandro Konder.
Jeanette Rozsas – perguntada no final do ano passado, quais os três livros mais bacanas que leu em 2008 – respondeu de maneira enfática que ‘Os três, hmmm… deixa ver. Já sei: Kafka, Kafka e mais Kafka. Por quê? Leiam que vocês saberão.’ A literatura do tcheco ‘é, no mínimo, perturbadora. Por meio de situações intoleráveis, Kafka dá voz à penosa condição humana num mundo que já começava a se esfacelar. Sua obra parece profética ao anunciar o abandono, o sofrimento, o espanto diante do inexplicável, do tenebroso, do absurdamente sem sentido. Felizmente a morte o colheu antes dos horrores a que estaria, sem dúvida, condenado nos campos de concentração, onde morreram suas irmãs, sobrinhos, cunhados e muitos dos seus amigos. O campo de concentração é a materialização do pesadelo kafkiano’.
Discurso onisciente e triunfante
Por mais que determinados fatos sejam abordados, comentados e repetidos, sempre há maneiras diferentes para contá-los. O pai de Kafka, autoritário, as quatro paixões de sua vida – quatro mulheres surpreendentes –, o grande amigo e confidente Max Brod (responsável pela não destruição, e posterior divulgação, da obra de Kafka), a mãe, as irmãs, a cidade de Praga, são apresentados com emoção numa ficção cativante. Também o menino tímido, o jovem inseguro e hesitante, o adulto magro, alto, desajustado e estranho que se debate à procura do sentimento infinito e salvador da liberdade e os absurdos da penosa condição humana, relatados de maneira concisa, cruel, absurda e seca em seus livros.
Outro fato interessante: a autora não se limita a descrever o conhecido, mas incorpora à história a chamada genialidade irreal, moderna, na qual autor e obra se confundem, numa narrativa simples, cronológica, cinematográfica, pontuada pela ‘intensa e meticulosa pesquisa que alicerça toda a construção’, como bem observa Nelson de Oliveira. Maior que a morte, o mito Kafka continua vivo no discurso onisciente e triunfante, magistral no exemplar da espontânea Jeanette Rozsas, ricamente ilustrado com imagens da época do escritor e obras consultadas, no final da publicação.
Leituras kafkianas
(para reler, relembrar e estimular a memória)
‘Precisamos de livros que nos afete como um desastre, que nos entristeça profundamente, como a morte de alguém a quem tenhamos amado mais do que nós mesmos, como ser banido para florestas isoladas de todos, como um suicídio. Um livro deve ser o machado para o mar enregelado que temos dentro de nós’ (Cartas).
‘Corvo, dizia eu, corvo da desgraça, que estás fazendo aí em meu caminho? Onde quer que eu vá, acho-te a encrespar tuas ralas penas. Importuno!’ (Diários).
‘Alguém certamente havia caluniado Joseph K., pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum’ (O Processo).
‘Certa manhã, ao despertar de sonhos intraqüilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso’ (A Metamorfose).
‘Querido Pai. Tu me perguntaste recentemente por que afirmo ter medo de ti. Eu não soube, como de costume, o que te responder, em parte justamente pelo medo que tenho de ti, em parte porque existem tantos detalhes na justificativa desse medo, que eu não poderia reuni-los no ato de falar de modo mais ou menos coerente’ (Carta ao Pai).
‘Vermes, longos e gordos como meu dedo mindinho, rosados e manchados de sangue, retorciam-se, fixos no interior da ferida, para a luz, com suas cabecinhas brancas e suas numerosas patinhas. Pobre rapaz, não tens salvação’ (Um Médico Rural).
‘Nossa cantora chama-se Josefina. Quem não ouviu, não conhece o poder do canto. Não existe ninguém a quem seu canto não arrebate, prova de seu valor, já que em geral nossa nação não aprecia a música’ (Josefina, a Cantora ou A Cidade dos Ratos).
‘Mas lá no seu íntimo, o jejuador não deixou de compreender as circunstâncias novas, e aceitou sem dificuldades que não fosse colocada sua jaula no centro da pista, como número excepcional, porém que a deixassem de fora, próximo das quadras, local além do mais, bastante concorrido’ (Um Artista da Fome).
‘O oficial mostrava com o dedo o caminho exato que seguia a mistura de água e sangue. Enquanto ele, para tornar mais gráfica possível a imagem, formava um bojo com ambas as mãos na desembocadura do cano de saída, o explorador ergueu a cabeça e procurou tornar ao seu assento, tateando atrás de si com a mão. Viu então com horror que o condenado tinha obedecido ao convite do oficial para ver mais de perto o ancinho.’ (A Colônia Penal)
Trecho do livro
Um pedido impossível de atender
‘A obra de Kafka vinha crescendo, apesar dos períodos inférteis. Mas ele é pouco publicado. Aos 39 anos, mantinha-se praticamente inédito. Desanimado, teve uma séria conversa com Brod:
`Max, você é meu melhor amigo. Você me acompanha há anos e sabe o quanto sofro para escrever. Mas a pior desgraça é quando não consigo produzir, quando meu corpo inteiro me põe de guarda a cada palavra; cada palavra, antes que eu a escreva, começa a olhar para todos os lados à sua volta; as frases literalmente se quebram sob minha pena, vejo o que há ali dentro e imediatamente sou obrigado a parar.´
`O trabalho de um escritor não é constante, Franz. Quantas e quantas vezes não nos deparamos com a total falta de idéias. Não você, meu amigo. Você é um escritor prolífico.´
`Mas não escrevo apenas romances. Em períodos mais férteis, escrevo ensaios, artigos para jornais, revejo os escritos para futura publicação. Eu não consigo ser editado, Max.´
`Consegue sim, ora. Você já tem livros editados e boas críticas. Só não publica mais porque não quer. Eu mesmo o apresentei a mais de um editor. Você pôs tantos obstáculos, que acabou não publicando.
`Eu sou grato a você, mas sei que sou difícil nesse ponto. Fico inseguro, quero eu mesmo fazer modificações. Não admito, de forma alguma, que pretendam mexer no que escrevo.´
`O que você precisa é se tornar um pouco mais acessível, transigir um mínimo, só isso.´
`Na verdade, quando releio meus textos, não acho que sejam particularmente importantes e nem que devam ser jogados no lixo. Meu julgamento oscila entre os dois pólos.´
`Você é exageradamente crítico em relação à sua literatura. E a si próprio também. Aliás, acho que os dois se confundem, você e sua obra.´
Franz torna-se mais grave:
`Max, quero lhe pedir um favor especial: quando eu morrer, você fica incumbido de destruir tudo o que já escrevi. Ou, pelo menos, você fica incumbido de destruir tudo o que já escrevi. Ou, pelo menos, toda a minha correspondência, meus diários, os inéditos e alguns contos que eu mesmo selecionarei para que sejam eliminados, Vou deixar por escrito esta determinação e quero que você seja o testamenteiro.´
`Mas nem pensar! Esqueça essa loucura. Mesmo que você deixe um pedido como esses por escrito, em testamento, saiba que não vou cumpri-lo jamais. Seria um verdadeiro crime e não serei eu a cometê-lo.´’
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Jornalista e escritor, Belo Horizonte, MG