Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O golpe num romance bem-escrito

Ao fim de um dia de grande neve, acabo de ler o estupendo livro de Moacir Japiassu, Quando Alegre Partiste. É curioso, pois ainda recentemente lamentei-me, aturdido que estava, e ainda estou, com a total incapacidade de pessoas escreverem de uma maneira minimamente decente e correta em português. Com os diabos, não peço que escrevam bem num idioma estrangeiro, mas maltratar assim a língua pátria já é demais. E, entretanto, é o que vemos diariamente nos jornais, sites, blogs e outros meios de comunicação por aí.

Mas, esperem, Moacir Japiassu é um mestre da língua. A facilidade com que esse sertanejo com passagem por Minas, Rio, São Paulo e atual anacoreta na Serra do Mar escreve só não é assustadora porque é, em primeiro lugar, um encanto. As velhas carolas que ele cita em Quando Alegre Partiste e que figuravam na Marcha da Família com Deus Pela Liberdade diriam certamente que o baixinho de pele muito clara e cabelo avermelhado deve ter partes com o Tinhoso. Prefiro dizer que ele recebeu de Deus (um Deus em que ele não acredita, como tampouco acredita em Belzebu) um talento imenso, digno de um Eça de Queirós, de um Machado de Assis, de um Nélson Rodrigues.

Por que falo em Nélson? Certamente não é por afinidade ideológica. Naqueles dias de 1964, tão bem retratados no livro, Nélson representava tudo o que Japi, então jovem jornalista, desprezava. Mas a qualidade que eu mais admirava em Nélson como escritor, cronista e teatrólogo, era sua incrível capacidade de captar o modo de as pessoas falarem e reproduzi-lo em seus diálogos. Japiassu tem esse mesmo imenso talento, com a vantagem de usá-lo em duas claves: a nordestina, como nos mostrou em Concerto Para Paixão e Desatino e A Santa do Cabaré, e a carioca, com o típico falar, as expressões, a gíria, a graça das ruas do Rio de Janeiro.

Sombra que passa

Japiassu e eu conhecemos muito bem aquele Rio de que ele nos fala agora com tanto sabor e eu também já conhecia o autor, mas de vista, do Departamento de Pesquisas do Jornal do Brasil, do qual a Editoria de Esportes, na qual eu trabalhava, era vizinha. Não éramos correligionários. Japi mostrava-se um esquerdista tão inflamado quanto seus cabelos fogosos. Eu, embora nunca admirador da milicada que tomara conta da nação, jamais morrera de amores por João Goulart, por Leonel Brizola e os pseudodemocratas que queriam transformar o país numa República Sindicalista.

Quando Alegre Partiste retrata à perfeição a noite negra que se abateu sobre o Brasil e a inocência de personagens como o próprio autor e seus amigos, levados pelo idealismo a sonhar e a lutar por um país um pouco melhor, um pouco menos burro, um pouco mais próximo das nações civilizadas.

O livro tem um prólogo sensacional de Giulio Sanmartini, que viveu, no Palácio Guanabara, ao lado do governador Carlos Lacerda, as emoções diametralmente opostas às que assaltavam Japi e muitos dos jornalistas por ele retratados nas redações do Jornal do Brasil, Correio da Manhã, Diário de Notícias, Diário Carioca. Só os nomes desses vetustos órgãos, há muito falecidos (o Jornal do Brasil está morto, mas não sabe) enchem de saudades aqueles que, como nós, viveram a época.

Sim, saudades daquele Rio, daquela Copacabana, daquela Ipanema que nunca mais vão existir. Na grandeza de alguns, na mesquinharia de outros, na inocência, na indecência, na vitalidade, na filhadaputice, no drama e na comédia daquela cidade que representou tanto na vida de um país e hoje, para parafrasear outro escritor ilustre cujo nome me abstenho de citar, é uma mera sombra que passa – entre balas perdidas.

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Jornalista