No sábado, 12 de janeiro, comemorou-se o centenário de nascimento do escritor e jornalista Rubem Braga, grande mestre da crônica no Brasil.
“Sou de Cachoeiro…”
Natural de Cachoeiro de Itapemirim (ES), Rubem Braga começou no jornalismo no fim da década de 1920 e cobriu a campanha brasileira na Segunda Guerra Mundial, na Europa, pelo Diário Carioca. Seus textos sobre a guerra seriam reunidos no livro Com a FEB na Itália, publicado em 1945 e depois reeditado como Crônicas da Guerra – Com a FEB na Itália. Ao longo da carreira, escreveu para algumas das principais publicações do Brasil, como os jornais Correio da Manhã, O Globo e Jornal do Brasil e a revista Manchete.
O primeiro livro de Rubem data de 1936, O Conde e o Passarinho, com crônicas escritas para jornais. Depois viriam muitos outros, como Morro do Isolamento, Um Pé de Milho, Ai de Ti, Copacabana!, A Borboleta Amarela, O Homem Rouco, A Traição das Elegantes, Um Cartão de Paris, O Verão e as Mulheres e Recado de Primavera.
Com o autor, a crônica, considerada então gênero menor da literatura, por sua relação imediata com o cotidiano, ganhou o status merecido de gênero maior. Afinal, a qualidade está na alma e não no gênero, mostrou Braga.
Saudade
A obra de Rubem é marcada, em grande medida, pelo sentimento de saudade, como notou o crítico literário Davi Arrigucci Jr., no texto “Braga de novo por aqui”, que prefacia Os Melhores Contos de Rubem Braga (Global Editora, 1985). E esta saúdade tem bem o sentido dado por Camões, de “A grande dor das coisas que passaram”, verso dileto de Braga, citado inclusive por ele na crônica “O mistério da poesia”, do livro A Traição das Elegantes.
O escritor é chamado de lírico, pelo modo bem particular de observar, acolher, interpretar e retratar o mundo, sempre com palavras simples e no entanto elevadas, solenes, sublimes; pela capacidade de compaixão e afeto. Soube intuir nas coisas simples da vida, nos acontecimentos pequenos de todos os dias, prosaicos só na superfície, na gente simples e pobre, em objetos simples, a grandeza e a dor que todos contêm. Era um lírico solitário, melancólico, às vezes até triste, mas sem pieguismo.
A mítica Cachoeiro de Itapemirim, sua cidade natal, e os personagens de infância, amigos, familiares, cães, passarinhos, árvores, rio, serão continuamente tema das crônicas de Rubem. Essa volta ao passado, essa saudade que agonia o peito nasce sempre, em Rubem, de algum acontecimento do tempo presente, do cotidiano, de um instante que o faz recordar e regressar ao passado. O presente ilumina o passado, o passado ilumina o presente, sístole e diástole luminosas do coração do cronista.
Epifanias
O instantâneo, o súbito acontecimento também acendeu a centelha poética de Rubem tantas vezes. A beleza que o cronista sente e pressente numa passagem, numa paisagem, muitas vezes na repentina aparição de uma mulher – ah, como a mulher enfunou o coração do cronista! –, transforma-se em epifania. Mas, aqui, uma epifania nada sacra, nada de aparições marianas, muito ao contrário; bem terrena, sensual e carnal. Essas epifanias se converterão em crônicas que buscam apreendê-las, no intento talvez de eternizá-las, numa reação do eu-lírico contra o tempo, contra a passagem incoercível do tempo, esse glutão incorrigível que não se sacia e que Rubem parece lamentar. Esse retrato do instante lembra muito o retrato do instante pelo fotógrafo. Ânsia de congelar o mundo, nem que por um instante. A luta para reter aquilo que não pode ser retido, a luta para manter a beleza que, inelutavelmente, se esvai, morre. Ao cronista cabe o esforço épico embora vão de registrá-lo, e Rubem o faz com maestria. O pronto encantamento pelo instante, quando depara com ele, é o motivo de Arrigucci Jr. dizer que Rubem é “um lírico de passagem”. Ao processo de aceleração da vida, desde a Modernidade, à crescente velocidade dos meios e das máquinas ao correr dos anos, bem poderia corresponder uma aceleração da capacidade de sentir, de se emocionar, no lufa-lufa da cidade. E Rubem bem pode encarnar esse homem do coração veloz.
O Velho Braga, como carinhosamente chamavam os amigos, foi talvez o melhor autor em português contemporâneo e é, decerto, um mestre, formado pela leitura dos clássicos, como os padres Antônio Vieira e Manuel Bernardes, além de Camões. E igualmente pelas andanças ciganas pelo mundo, no corpo a corpo com a vida; mergulhado com prazer no senso comum, na prática que gera sabedoria, filósofo da intuição, na tarefa humana e por isso divina de ler o mundo. Nele, entretanto, a erudição confirmava, mais e mais, a vocação para a humildade, esse sentimento que atrai e mantém o homem ligado ao húmus, ao solo, ao chão, evitando arrogâncias aéreas de superioridade.
Amor à vida e à liberdade
A Rubem cabe ainda a qualidade de homem libertário, desde o combate (que resultou em perseguição policial) à ditadura do Estado Novo (1937-45), no governo de Getúlio Vargas. Foi um amante da liberdade de expressão, contra o preconceito, contra a caretice, contra o conservadorismo, característica que sempre o colocou numa posição independente, livre para se irmanar com personagens aparentemente tão diferentes dele, como a roqueira Rita Lee, assunto de uma de suas belas crônicas, e de quem foi grande amigo, quando já um senhor encanecido. Rubem era um amante da vida, dos prazeres e belezas do mundo e bem lembrava, a certa altura, de que há, também, ao lado do sentimento de dever, um outro igualmente elevado e urgente: o sentimento de prazer cumprido.
Rubem morreu no dia 19 de dezembro de 1990, aos 77 anos, no Rio.
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[Guilherme Azevedo é jornalista]