O título Em busca do borogodó perdido, tomado do romance de Marcel Proust, talvez intrigue o leitor: tanto pode sugerir humor como um devaneio pelas veredas da memória. Afinal, que borogodó perdido é esse de que fala o autor? Pinçar uma palavra assim tão esfumaçada no tempo e oferecê-la ao leitor só pode soar como um gracejo espirituoso, já que o menu básico desses dias inclui mensalão, gripe aviária, guerra entre traficantes e outros termos de baixíssimo astral. Ou uma indicação de que se trata de alguém do tempo do onça, a ruminar as delícias de uma belle époque há muito esquecida.
No entanto, em suas crônicas, o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos aborda universos diferentes que vão desde os flashes sobre as celebridades até o labirinto mágico das palavras, sem se pretender sério, definitivo ou o tal. ‘Não bebo, não fumo, não cheiro e só minto por obrigação, por saber que é ofício dos que vendem cachaça em palavras, quando escrevo crônicas ligeiras sobre os costumes nacionais’, anotou ele na crônica ‘O Rio encontra São Paulo e juntos fazem um país melhor’.
Pode ser somente uma pose estratégica de eterno aprendiz, num terreno dominado por titãs como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino. Mas o efeito que consegue Joaquim está além de uma mera ‘cachaça em palavras’. Ele pôs no liquidificador influências tão distintas como Beatles, beatniks, new journalism, poetas modernistas, tropicália, o melhor da crônica brasileira e as trabalhou durante 35 anos como jornalista.
Com a régua e o compasso que o Rio de Janeiro lhe deu, Joaquim vai de borogodós e não-borogodós fazendo suas crônicas, enfatizando o não-convencional, as coisinhas miúdas para o homem comum, porém vitais para o olhar sensível do cronista. E o espaço é sempre a Cidade Maravilhosa, seja a de hoje, derramando tragédias por todos os poros, seja a da infância do cronista. E não poderia ser outro o lugar, pois o Rio ‘é uma cidade vocacionada para as coisas do comportamento, o manifesto das modas, a rua, a praia, a beleza das mulheres e do cenário’, diz ele. Mas o seu lado barra pesada pode ser igualmente inspirador, desde que o cronista saiba como combinar gravidade e leveza. É nesse equilíbrio que reside o tom da crônica atual, segundo Joaquim. ‘Não cabe mais o lirismo, a poesia do Braga numa crônica de hoje’.
Duas colunas
Com base nesse princípio é que ele tece as suas crônicas. Há sempre um fato cotidiano a lhe ditar a inspiração, seja um breve diálogo com Gisele Bündchen, seja a lembrança do dia em que foi alvo de uma crítica de Grande Otelo, seja uma festa em que a estrela principal é Vera Fischer, numa das crônicas em que Joaquim declina uma de suas influências, Tom Wolfe, ao escandir as palavras de forma exagerada, como faz o mestre americano. Não existe o nada como inspiração. Há sempre um assunto, por mais fortuito e pequenino que seja, a lhe indicar o caminho. Joaquim poderia dizer ‘meninos, eu vi’. Ele viu e contou, numa crônica impagável do livro, o encontro de Rubem Braga, Fernando Sabino, Otto Lara Rezende e Hélio Pellegrino, na festa do aniversário de 60 anos deste último.
Em suas crônicas, ele se revela também um tremendo frasista. Algumas das suas tiradas: ‘O clichê é uma moda que se usa na língua e dói tanto, só que na orelha do outro, quanto um piercing’; ‘O pai-herói entregou o bastão ao pai-moleque e deu a missão por cumprida’; ‘A nostalgia é uma velhota sem senso de ridículo’; ‘O samba-canção queria a paz de criança dormindo. A crônica pós-hodierna quer o nó na garganta do homem que observa a mulher andando’.
Joaquim Ferreira dos Santos assina uma coluna semanal (às segundas-feiras) e a diária Gente boa, no Segundo Caderno, do Globo. Recentemente organizou Seja feliz e faça os outros felizes, seleção de crônicas de Antonio Maria. Na entrevista abaixo, concedida por e-mail, ele falou de seu novo livro.
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Por que o título obviamente proustiano?
Joaquim Ferreira dos Santos – O título é um casamento de Proust com Zé Trindade, meio a meio. Se o Proust tem os biscoitinhos, as madeleines, como deflagrador das memórias, eu parto da palavra borogodó, que sempre saía da boca do Zé nas chanchadas, para investigar o passado e ver como ele se coloca, se pro bem ou pro mal, hoje. O título tem como primeira intenção o choque de ligar o culto e a mais depreciada, não por mim, das manifestações culturais brasileiras. É também uma apresentação de intenções formais do que virá pela frente. O coloquialismo, o cotidiano, o humor, a despretensão, o jeito à vontade que deve ter uma crônica.
Se levarmos em conta os maiores cronistas brasileiros, veremos que estão todos concentrados, ou vicejaram, no Rio de Janeiro. Coincidência? Ou como se explica essa ‘topografia’?
J. F. S. – Acho que o Rio ajuda. É uma cidade vocacionada para as coisas do comportamento, o manifesto das modas, a rua, a praia, a beleza das mulheres e do cenário. Essa cidade dá dois sambas: um costuma ser publicado nas páginas de polícia, e eu não me interesso por ele até que interfira e prejudique meus assuntos. O outro é o humor, a descontração, coisas que podem parecer clicherosas, mas existem. A cidade tem um jeito de falar engraçado, por exemplo. Enquanto o baiano estréia, está sempre de olho no palco, acho que o carioca está sempre querendo inventar uma moda.
Esse cenário de violência estimula ou inibe o cronista? Ele pode tirar daí um naco de inspiração, sem que o texto fique por demais colado ao real?
J. F. S. – O baixo astral do Rio no momento, com violência e maus governantes por todos os lados, pode dar crônica. Mas sem pesar a mão. Sem transformar a dor num artigo, num manifesto. Eu nasci e fui criado no subúrbio do Rio. Três anos atrás precisei vender a casa onde fui criado, no bairro de Vaz Lobo, e onde ainda morava minha irmã, porque a violência por ali ficou insustentável. Era bala perdida todo dia, traficante passando pelo quintal. Juntei a memória da casa, coisas da minha infância, com a realidade de agora. O texto foi escolhido pelo Humberto Werneck para o Boa Companhia, uma seleta de 42 crônicas, de José de Alencar até hoje, que acabou de ser publicada pela Companhia das Letras.
Em sua opinião, por que o gênero se tornou uma marca registrada nacional?
J. F. S. – Todo mundo escreve crônica. Os ingleses, os americanos. Acho que tem uma crônica brasileira, muito a partir de Rubem Braga, que foi o maior dos mestres, por incorporar um estilo espantoso de misturar poesia, atualidade, ficção.
Numa crônica do livro, você menciona o ‘humildificador’. Dar-se conta da própria desimportância, ou aceitar com humildade as próprias limitações, é o melhor exercício crítico que um autor pode fazer?
J. F. S. – O humildificador é um exercício para qualquer atividade. É a maquininha que te sussurra, ‘menos, meu camarada, menos pose, menos empáfia, menos seriedade, menos onda, menos autoridade, menos tudo que soe pretensão e pompa’. A crônica é por princípio humilde. Dizem que é a literatura de bermudas. O humildificador cai bem no cronista porque, como fazia Braga, ele pode debochar de si próprio, como na cena clássica do cronista diante da página em branco e sem assunto para preenchê-la. A nova geração de ficção brasileira devia passar todo dia no humildificador. É uma safra muito boa, mas que gente metida e sobrecarregada das grandes verdades… Isso acaba dando num texto bem construído, mas chato e sem humor. Querem ser levados a sério. Eu quero ser levado à praia.
Na crônica ‘como encher a boca de clichês’, você faz uma crítica ao reducionismo da linguagem. Esse estreitamento tem atingido também o jornalismo, com seus manuais e suas fórmulas objetivas. Haveria um antídoto para isso? Ou está tudo dominado?
J. F. S. – Eu peço na crônica que se incorporem todas as palavras, inclusive aquelas antigas que foram jogadas fora por muito usadas e marcadas pelo passadismo. Todo mundo quer ser moderno e nunca estar associado a geringonça nenhuma. Todo mundo quer falar difícil e daí o acúmulo dessas expressões da moda, todas querendo agregar valor e quebrar paradigmas que não existem. Assim como tem moda na roupa, tem a moda da boca. Tento mostrar o ridículo disso e lembrar, se me permite citar mais uma vez o velhinho, o bom Braga, que recomendava palavras curtas e velhas, ou seja, aquelas já consagradas, já curtidas pela língua.
Hoje já não se fala mais que fulano é o cronista do jornal, mas colunista. O cronista, no sentido que lhe emprestaram nomes como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, entre outros, perdeu o seu charme (ou a sua função) entre nós?
J. F. S. – Alguns cronistas na verdade são articulistas. O espaço é o de crônica, geralmente no segundo caderno, mas o mundo anda muito sério e todo mundo quer aproveitar seu cantinho para dar uma professorada nos destinos da humanidade. E tome ensaio sobre psicanálise, cinema e outras culturas. A crônica é o contrário. Não quer titulo de doutor. Quer falar do cotidiano, das cenas urbanas, do efêmero, do que poderia ser um piscar de olhos perdido e o autor com sensibilidade transforma aquilo num ensaio do Degas, numas prostitutas do Lautrec. São pequenos quadros de fino bordado, sem heróis puxando a espada e declarando algum grito histórico. Qualquer matéria de jornal, se for aguda, não é crônica.
Qual seria o tom ideal da crônica hoje, que possa diferenciá-la da objetividade do jornalismo diário, sem, no entanto, cair num lirismo parnasiano?
J. F. S. – Não cabe mais o lirismo, a poesia do Braga numa crônica de hoje. Acho que o truque, o borogodó que se persegue, é misturar a tal leveza da crônica, o descompromisso do flaneur que vai andando e caçando suas borboletas, ou seja, seus assuntos, com a temperatura do jornal moderno, mais quente. É um meio termo complicado: a crônica precisa ter um texto diferente, que faça o leitor e a edição respirarem. Mas não pode ser lenta demais que faça o leitor moderno achar sonolenta.
Escrever para jornal tolhe ou impulsiona pretensões mais literárias? Roberto Drummond costumava dizer que o jornalismo é o túmulo da literatura…
J. F. S. – Eu não tenho pretensão literária nenhuma. Nunca escrevi nada que não fosse estimulado pelo bafo do editor na minha nuca cobrando o prazo. Sempre fui pautado. O resto, se literatura, se jornalismo, novo jornalismo, não me cabe a resposta. Acho que o texto jornalístico, de uma reportagem mesmo – e viva Truman Capote, Gay Talese, Norman Mailer, Euclides da Cunha, Tom Wolfe! –, pode ser tão bom quanto qualquer outro.
‘De notícias e não notícias se faz uma crônica’ é o título de um texto de Carlos Drummond de Andrade. No seu caso, de onde vem a inspiração? Quando é que um tema se impõe para você como crônica?
J. F. S. – Não se esqueça de que eu sou da escola do Braga. Quanto menos, melhor. O cara fazia crônica a partir de um nadador passando lá na praia. Não é o meu caso. Sou de origem jornalística. Preciso de um assunto. Mesmo que mínimo para deflagrar a imaginação. A sorte é que na crônica vale tudo. O Verissimo, sem dúvida o maior cronista da atualidade, é mestre nessa mistura de notícias e não-notícias. Tira sabedorias sutis do que na mão de qualquer outro seria o nada absoluto.
Suas crônicas revelam um caleidoscópio de influências literárias, e você mesmo já declinou algumas delas, noutras entrevistas. De que forma autores tão distintos como Tom Wolfe ou Carlinhos Oliveira te inspiram?
J. F. S. – Eu comecei a escrever no fim dos anos 60 e a salada de frutas inicial eram os cronistas, os poetas modernistas, o tropicalismo e as letras dos Beatles a partir do Sargent Peppers. Nos anos 70 descobri o novo jornalismo, principalmente os perfis de Gay Talese sobre Nova Iorque. Misture-se, leve ao forno por 35 anos diários de jornalismo e tente tirar algum borogodó disso.
Você acaba de lançar uma seleção de crônicas de Antonio Maria, além de já ter escrito um perfil dele. Maria foi fruto de uma época, de uma boêmia que a violência crescente do Rio tem sepultado?
J. F. S. – O último cronista da noite do Rio foi o Carlinhos Oliveira. Ele conseguiu captar, primeiro que qualquer outro e com uma sensibilidade que vou te contar, que a barra estava pesando e que era dali pra pior. Ele fez a celebre crônica do assalto ao bar Antonio’s. Ele falou das primeiras garotinhas da zona sul dando aos traficantes no morro. Tudo isso nos anos 70. Antonio Maria foi o grande cronista do Rio dos anos dourados, das boates Vogue e Sacha’s. Tirava cenas engraçadas, charmosas do seu circuito de bar em bar. Hoje, um circuito desses só rende matéria pra página de policia.
Em suas crônicas há referências às vedetes e a um Rio que já não existe mais. Saudosismo? Ou o borogodó está irremediavelmente perdido?
J. F. S. – Eu adoro aquelas vedetes com tudo extra-large, o contrário das novas deusas de hoje. Mas sem saudosismo. Quem me dera uma dessas deusas de hoje. Gosto de brincar com o passado, principalmente porque todas as pessoas já se esqueceram dele e acham que eu estou inventando tudo, que eu sou um craque da imaginação. Gosto de relembrar cenas passadas porque afinal é um dos poucos patrimônios que consegui com o jornalismo. Vi coisas, entrevistei gente curiosa, acumulei um arquivo de histórias que me servem de ganha-pão. Mas não acho que o borogodó esteja perdido. Pelo contrário. Procuro sempre mostrar que essas memórias mentem muito, que o frapê de coco que se tomava no Café Simpatia, na Rio Branco, e pelo qual tantos suspiram, podia ter na verdade um gosto que não chega aos pés do milk-shake de qualquer nova lanchonete de Ipanema. A nostalgia mente muito. O Rio tinha coisas ótimas, não dá para negar, mas acho que, hoje, um passeio pelo final do Leblon é páreo com qualquer saída noturna pela Copacabana dos anos dourados. Tem borogodó de sobra por aí e o que eu quero dizer com o meu modesto livro de crônicas é que o sentido da vida é procurar onde o borogodó se meteu.
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Jornalista, editor do Balaio de Notícias