Há uma crença não escrita de que não se deve escrever bem, falar bem sobre poetas vivos. De que os melhores poetas são mortos. De que, em palavras de Buffalo Bill ressurreto, poeta bom é poeta morto. Às vezes, algum amigo, alguma caridosa alma concede, e admite, e fala, e propaga que aquele sujeito que comete uns poeminhas é até um bom poeta. Concede e fica a esperar o supremo agradecimento, do poetinha. Mas a melhor homenagem sempre se deixa, sempre será feita depois do poeta morto. Então ele será único, inesquecível, rival dos deuses.
Isto não é novo. É tão velho e humano, desumano, que se repete em todas as latitudes. Alguém concebia Federico Garcia Lorca (1898-1936) em vida com os olhos que souberam depois do seu fuzilamento? Alguém alcançava o gênio de Charles Baudelaire (1821-1867) com os olhos que o vêem depois do seu fogo e sofrimento? E Cruz e Sousa (1862-1898), no Brasil, o genial poeta negro, sempre lembrado com esse adjetivo, negro, para fazê-lo um gênio menor, como a dizer ‘para negro foi um gênio muito grande’? Em Cruz e Sousa difícil é saber o que é maior, se o seu talento, se o seu sofrimento, a sua luta heróica para se fazer um homem.
Nelson Cavaquinho, num samba antológico, já pedia que ‘me dêem as flores em vida, o carinho, a mão amiga, para aliviar meus ais’. Bem dito. O comum da gente já mata os artistas, os poetas, de descaso ou de fome. Quando não, das duas maneiras. Descaso? Sim, até quando os aceita. Por exemplo, contenham o riso pois o que vou dizer não é anedota: a um escritor eu vi e ouvi dizerem: ‘Você é poeta! Então sabe as palavras certas para a coroa de flores para um defunto amigo. Que palavras escrevo? ‘, e senti, ouvi-o responder baixinho: ‘Escreva: Vá para o inferno’.
A outro, eu já ouvi pedirem, melhor dizendo, exigirem: ‘Você que é poeta, improvise agora – vamos, se é poeta, improvise…’. O comum da gente tem da poesia e dos poetas a mais funda e desprezível e desprezadora ignorância. Dizem de alguém que vive nas nuvens, ‘é um poeta’. E aqui e ali, os mais letrados, acrescentam, ‘é um filósofo’. Vêem no poeta um alambicado, afeminado, emasculado. Ou um homem, quando concedem, que lhe basta viver de brisa, para assim melhor comer poesia.
Compreendam, por favor: o escrito até aqui não é um nariz-de-cera. É uma introdução ao poeta Alberto da Cunha Melo.
Verso e prosa
Se aqui irrompesse o breve, de espírito, de magoado sem lágrima a correr, seco, que se molha a conhaque e se queima a cigarro, até atingir um câncer flor verdade, então eu escreveria:
Moro tão longe, que as serpentes
morrem no meio do caminho.
Moro bem longe: quem me alcança
para sempre me alcançará.
Não há estradas coletivas
com seus vetores, suas setas
indicando o lugar perdido
onde meu sonho se instalou.
Há tão somente o mesmo túnel
de brasas que antes percorri,
e que à medida que avançava,
foi-se fechando atrás de mim.
É preciso ser companheiro
do Tempo e mergulhar na Terra,
e segurar a minha mão
e não ter medo de perder.
Nada será fácil: as escadas
não serão o fim da viagem:
mas darão o duro direito
de, subindo-as, permanecermos.
Mas isto apenas consigo como uma cópia, porque são versos de Alberto, no poema ‘Um cartão de visita’. ‘Moro tão longe que as serpentes morrem no caminho…’. Todos os dias eu o encontro no ônibus. Somos quase vizinhos. Que sorte a minha, que infelicidade a sua, de ter uma cascavel com o meu veneno alcançando-o . Com o chocalho da minha voz, chamo-o. Ele vem e senta ao meu lado. ‘Como vai a saúde, Alberto?’, pergunto, porque vejo em seus olhos uma sombra. ‘Boa, para a minha idade’, responde. E conversamos. Melhor dizendo, escuto-o . Melhor, aprendo. Porque Alberto, alheio à assistência do ônibus que se enche, sem medo da zombaria ou do motejo da gente, põe-se a falar sobre poesia, com a mais pura sinceridade e desarmamento. E me fala da estupidez da distinção entre rimas ricas e rimas pobres. E me abre os olhos para os versos belíssimos de Camões cheios de rimas ‘pobres’. E me ensina, quase me grita:
– O Camões ruim está muito acima da média da poesia em língua portuguesa.
No ônibus, as pessoas me olham. Quem é o interlocutor? Eu, covardemente, quase lhes imploro: eu não tenho culpa. E me dá vontade de lhes dizer: esse homem com a idade de 63 anos, que vocês ouvem com a voz gasta por milhares de cigarros, esse Alberto da Cunha Melo no ônibus de Casa Caiada, às sete horas da manhã, esse homem em que não enxergo roupas, corpo, cabelos, só os seus olhos com uma névoa, esse homem é um clássico da nossa poesia. Vocês duvidam?
Questionário
Cai um silêncio de ondas longas
e sucessivas como a chuva.
E que silêncio será esse
que cai assim antes de mim?
Fauna marinha, gestos lentos
de anjos calados golpeando
um polvo em fúria que me espera
(sob os sonhos). Há quanto tempo?
Poucos amigos, tudo salvo,
ainda temos nossas raivas
e uma esperança ilimitada
nos setembros. Mas, até quando?
Caem livros silenciosos
das prateleiras: baixa a luz
morna e abundante sobre as capas.
Que foi feito de tanta noite?
A esperança nova se agarra
entre as barreiras e as ossadas
de nossos morros. E por que
morremos antes de salvá-la?
Este Alberto que me fala enquanto o motorista estronda a música no rádio, num brega infernal, esse Alberto que me fez interromper, bem, a leitura de As flores do mal, é o poeta que não se dá conta do aperto de gente em volta, porque a essa altura faz uma mesura, com um pedido de desculpa aos parnasianos, que estão há quilômetros deste coletivo:
– Olavo Bilac tinha razão ao dizer que a rima pode revelar um verso novo, que antes não sabíamos. Eu descobri isso, na prática.
Ele não precisa repetir essa verdade em versos de memória (a sua não é de caminhos trilhados, mas de caminhos que virão):
Ave Ano 2000
Só agora sabemos, quando
outro século bate à porta:
tudo tocado pelo Homem
tem o cheiro de coisa morta,
e o som do réquiem, som da nênia
dos morteiros sobre a Chechênia,
e dos vagidos africanos
sobre as favelas tropicais,
som de escopeta de dois canos,
anunciando-nos, com susto,
que ainda impera César Augusto.
Os versos brancos não são uma invenção moderna, nem sempre a poesia teve rima, ele me diz. E eu, como um novo Burguês Fidalgo, lhe pergunto: ‘Então os clássicos antigos faziam poesia sem rima?’ (Me dá vontade de perguntar se existe poesia em prosa, mas me calo):
– Não. A rima vem da Idade Média, com a grande influência árabe, talvez.
Então ele se levanta, para descer do ônibus. Além do fato de ser um falante esquisito, as pessoas não o vêem, sinto. O poeta não vêem. De O homem invisível de H.G.Wells (1866-1946) me lembro. O poeta é o homem invisível. E penso, sem mais vontade nenhuma de voltar a Flores do mal, que essa ignorância vai além do círculo de trabalhadores que viajam neste ônibus. Alcança o próprio poder público. O poeta Alberto da Cunha Melo, aos 63 anos, recebe a graça, a condescendência, a generosidade dos governantes que lhe permitem trabalhar em uma biblioteca pública. O pagamento para tão alta distinção não chega a dois salários mínimos. Este é o prêmio para a sua poesia. Então me lembro, vendo-o assim partir para o trabalho doado, óbolo governamental, me lembro do que um dia escreveu, antes desta viagem em 2004.
Relógio de ponto
Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim os jogos,
a poesia, todos os pássaros,
mais do que tudo: todo o amor.
De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e atravessaremos os córregos
cheios de areia, após as chuvas.
Se alguma súbita alegria
retardar o nosso regresso,
um inesperado companheiro
marcará o nosso cartão.
Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim as faixas
da vitória, a própria vitória,
mais do que tudo: o próprio Céu.
De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e lavaremos as pupilas
cegas, com o verniz das estrelas.
Obrigado, poeta. Eu também, à minha maneira, sigo para o meu relógio de ponto. E compreendo bem, como compreendo, que tudo que levamos a sério torna-se amargo. Até a poesia, e mais precisamente o amor. Mas isto só saberei dizer em prosa.
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Jornalista e escritor