A reforma luterana, que segundo a tradição teria começado em 1517, fez com que a igreja católica perdesse o controle absoluto das grandes massas. O protestantismo trouxe uma nova relação entre clero e crentes. No catolicismo o sacerdote é o intermediário entre Deus e os fiéis, mas no luteranismo o chamado pastor é um orientador, o fiel deve ler a Bíblia e outros textos, sendo tão somente orientado pelo sacerdote.
Para fazer frente a essa reforma, a Cúria romana deu início ao Concílio de Trento (1545-63), conhecido como o da contra-reforma, que estabeleceu o comportamento da igreja para estancar a evasão de fiéis para o cristianismo inaugurado por Martinho Lutero. Entre essas medidas, pensando que a leitura de alguns textos era nociva aos fiéis, o papa Paulo IV, ou Gian Pietro Carafa (1476-1559), papa de 1555 a 1559, mandou fazer um elenco das leituras proibidas aos fiéis sob pena de excomunhão. Surgiu assim, em 1559, a primeira edição do Index Librorum Proibitorum (Índice dos livros proibidos). As condenações contidas nesse index eram tão severas que na morte do papa foi um pouco amenizado. Aliás, Paulo IV passou à história pelo excessivo rigor de seu, felizmente curto, governo. Quando de sua morte o povo em revolta invadiu o palácio da Inquisição e jogou no Rio Tibre sua estátua.
O índice, que tinha como objetivo eliminar os livros diabólicos, ao incluí-los simplesmente os tornou fascinantes. Nas suas inúmeras edições ampliadas, formou um incrível elenco que inclui autores de A (Alfieri, Vittorio – 1749-1803, maior dramaturgo italiano) a Z (Zola, Émile – 1840-1902, o maior representante do naturalismo francês), tornando-se um guia dos livros que não podiam deixar de ser lidos, um extraordinário centro de orientação, a fonte para quem tente entender o mundo através dos livros.
Nome atenuado|
Além de livros sacros como o Talmüd, o Corão e as versões da própria Bíblia não ‘autorizada e corrigida por oportunas anotações deduzidas pelo padre e aprovada com a autoridade da Sé Apostólica’, podemos encontrar no Index autores que marcaram sete séculos da cultura ocidental: Dante Alighieri (1265-1321), Giovanni Boccaccio (1313-75), Nicolò Machiavelli (1469-1527), Nicolau Copérnico (1473-1543), Ludovico Ariosto (1474-1533), Galileu Galilei (1564-1642), René Descartes (1596/1650), Baruch Spinoza (1632-77), Voltaire, François-Marie Arouet (1694-1778), Immanuel Kant (1724-1804), Stenddhal, Henri Beyle (1783-1842), Honoré de Balzac (1799-1850), Gustave Flaubert (1821-80), Gabriele D’Annunzio (1863-1938), André Guide (1869-1951), Curzio Malaparte (1898-1957), Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Alberto Moravia (1907-1990).
A Revolução Russa de 1917 chamou a si o papel de ‘guia do proletariado mundial’. Poucos anos depois o ainda monsenhor Eugenio Pacelli (em 1939, eleito papa Pio XII) tentou, com o ministro das relações exteriores da União Soviética, organizar o catolicismo no país. A tentativa foi infrutífera, a ponto de o prelado declarar que a maior vergonha do século fora a igreja ter perdido o controle das massas populares. Quando chegou ao papado, mandou que a cada fim de missa fossem rezadas algumas orações pedindo o fim do comunismo. Como este não acabou com as orações, a Cúria, sob João XXIII, resolveu promover o Concílio Vaticano II, que em vez de combater um sistema político resolveu modernizar o seu.
Ora, o Index era totalmente incompatível com essa modernização e, mais ainda, os fiéis estavam pouco ligando para a excomunhão. Dessa forma, em 15 de novembro de 1966, quando era papa Paulo VI, a Congregação para a Doutrina da Fé, que nada mais é que o novo nome, atenuado, da Inquisição, resolveu anular o Index, que em sua longa existência e 33 edições havia imposto condenações para a obra total (opera omnia) e 4.191 para obras singulares.
Sucesso
Mas parece que o espírito do Index na cúria romana continua mais vivo que nunca. No início de maio foi anatemizado o filme baseado no livro O Código Da Vinci, de Dan Brown, best-seller lançado em 2003 e com mais 40 milhões de exemplares vendidos no mundo inteiro. No próprio ano do lançamento li a edição italiana e pensei em algo que ouvira há anos dito pelo jornalista Paulo Francis: é raríssimo na história da literatura mundial um trabalho bom com mais de 300 páginas. O Código tem 500, das quais, sem ser iconoclasta, penso que a metade poderia ser eliminada sem fazer falta. Esse é o meu pensamento, e não uma verdade absoluta.
A trama do livro é um mistério confuso numa narração repetitiva, e seu ponto polêmico trata de um Jesus Cristo não-divino, que se casou com uma mulher, essa sim líder, dos discípulos que espalharam o evangelho. O filme avivou a ira do clero católico: antes do lançamento o cardeal Ângelo Amato, secretário da Congregação para a Doutrina da Fé (sempre presente a multisecular a inquisição) incitou os fieis a boicotar as bilheterias. O cardeal nigeriano Francis Arinze, da Cúria Romana, foi mais fundo, conclamando os fiéis a levar o filme aos tribunais, declarando que os cristãos não podem ficar de braços cruzados, devem valer-se dos meio legais para impedir a exibição filme, que seria desrespeitoso ao fundador da igreja.
Mas aqui cabe uma pergunta, por que a própria igreja não recorre aos tribunais? A resposta é simples: claro que existem meios legais para tutelar a fé. Se a igreja se sente ofendida com o filme de Ron Howard pode, representada por um advogado, recorrer à procuradoria da República, que seria obrigada a dar início às investigações e, caso tivesse a igreja razão, poderia chegar a obter o seqüestro das películas. Mas nada pode ser feito, pois logo na página 4 do livro, diz o autor: ‘Este livro é uma obra de fantasia. Personagens e lugares são invenção do autor e têm o escopo de conferir veracidade à narração. Qualquer analogia com fatos, lugares e pessoas, vivas ou mortas, é absolutamente casual.’
Há 40 anos a igreja havia compreendido que quanto mais um livro é proibido mais é lido, que o catálogo dos livros diabólicos era por sua vez diabólico, pois que condenava os livros… ao sucesso. Esquecendo disso, a Cúria deu sua grande contribuição ao sucesso de bilheteria que o filme vem tendo.
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Jornalista