Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘O jornalismo é feito de muitos conteúdos não-noticiosos’

O jornalismo literário conquistou nos últimos meses um atuante fórum no Brasil. Trata-se da Associação Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL), com sede em Campinas, São Paulo. A iniciativa é dos jornalistas-professores Edvaldo Pereira Lima, Sergio Vilas Boas, Celso Falaschi e Rodrigo Stucch, pesquisadores e praticantes de longa data do gênero. Há quase três anos a equipe mantém uma experiência em jornalismo literário no portal Texto Vivo – Narrativas da Vida Real, mantido pela ABJL.


Entre as idéias que norteiam a proposta da ABJL está a criação de um curso pioneiro de pós-graduação em Jornalismo Literário, que já conta com uma primeira turma formada em 2005, em Campinas. Desenvolvido em parceria com o Cesblu (Centro de Educação Superior de Blumenau), o curso já se estende por várias cidades, como São Paulo, Brasília e Porto Alegre. A ABJL planeja ainda pôr em prática outros dois grandes projetos: o Concurso Nacional de Jornalismo Literário e o Seminário Brasileiro de Jornalismo Literário, em parceria com instituições nacionais e internacionais.


‘O diferencial está em querermos dar maior pluralidade ao modo de se praticar o jornalismo e a literatura de não-ficção’, afirma Sergio Vilas Boas nesta entrevista concedida por e-mail. Jornalista premiado, autor de Perfis e como escrevê-los e Biografias & biógrafos – jornalismo sobre personagens (ambos publicados pela Summus Editorial), entre outros livros, Sergio faz defesa veemente do jornalismo literário, visto pela grande imprensa no Brasil como prática em desuso.


Sergio nota que o jornalismo literário já existia no Brasil bem antes do new journalism ser aclamado como revolução nos EUA, nos anos 1960. Por aqui já contávamos com as reportagens de Euclides da Cunha e com as experiências da revista Realidade. E hoje – observa Sergio – o JL está presente em lançamentos de clássicos do gênero (vide a série ‘Jornalismo Literário’ e a reedição da obra de Truman Capote pela Companhia das Letras), em experiências como a da ABJL e até mesmo em veículos da grande imprensa, como Zero Hora e Correio Braziliense, que investem em matérias nos moldes do jornalismo literário.


Apostar todas as fichas apenas no caráter objetivo do jornalismo é limitá-lo. Não basta apenas responder às perguntinhas clássicas (‘onde’, ‘quando’, ‘quem’, ‘como’ e ‘por quê’) que compõem o lead básico de uma notícia. ‘O jornalismo é feito de muitos outros conteúdos não-noticiosos’, diz Sergio. Mas ainda persistem mitos que atribuem ao jornalismo a objetividade fria de uma pesquisa de laboratório. ‘Por incrível que pareça, isso ainda é muito forte no Brasil, como marketing e como fé cega’, diz Sergio na entrevista, a seguir.


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A proposta da ABJL é ser uma ‘academia sem muito academicismo’. Qual é o diferencial desse projeto?


Sergio Vilas Boas – Por ‘academia sem academicismos’ [risos] quisemos dizer que somos pesquisadores-narradores abertos, sem formalidades, pompas, fardões, feudos, sectarismos e ‘chás-com-rosquinhas’. Brinco que ‘a realidade é a nossa preferência’. O diferencial, bem, acho que está em queremos dar maior pluralidade ao modo de se praticar o jornalismo e a literatura de não-ficção, não apenas na forma, mas principalmente no conteúdo.


A ABJL está lançando em várias cidades um curso de pós-graduação lato sensu em Jornalismo Literário. Como está sendo a recepção a essa iniciativa?


S. V. L. – A receptividade está sendo extraordinária, e não se restringe apenas a pessoas interessadas em cursar a nossa pós-graduação, que é pioneira no Brasil. Universidades nos procuram para parcerias, cursos e palestras; redações de jornais e revistas dispostos a renovações nos procuram para consultorias; jovens narradores talentosos oferecem reportagens realmente especiais toda semana para publicarmos no Texto Vivo, portal mantido pela ABJL; profissionais de outras áreas de humanas buscam intercâmbios. E por aí vamos.


De que forma esse curso está estruturado? Qual a sua duração?


S. V. L. – O curso segue rigorosamente os parâmetros do MEC para as pós-graduações lato sensu (nível de especialização). A duração total, da primeira aula à entrega dos trabalhos finais, é de um ano.


No Brasil o jornalismo literário é visto como uma prática em desuso, datada das experiências do new journalism nos Estados Unidos, nos anos 60. O que é mito e o que é verdade nessa afirmativa?


S. V. L. – Visto como ‘prática em desuso’ por quem? Eis a questão. O fato de a imprensa de grande circulação no Brasil ter tentado desconsiderá-lo – creio que foi isto o que você quis dizer na pergunta – não significa que o jornalismo literário esteja ou tenha estado, de fato, em desuso. É um equívoco pensar, por exemplo, que jornalismo literário é sinônimo de new journalism, ou que o jornalismo literário começou com o new journalism, nos anos 1960. Errado. Jornalismo literário existe pelo menos desde o século 19. O Brasil não tem tradição em jornalismo literário, mas teve também suas experiências, como as reportagens de Euclides de Cunha e de João do Rio e algumas matérias de O Cruzeiro, de Realidade e do Jornal da Tarde em seu início.


O atual momento histórico é bem diferente, no Brasil. Há coleções de livros clássicos de Jornalismo Literário à disposição; há cursos específicos, como o nosso, da ABJL; há portais, como o Texto Vivo, que veiculam reportagens especiais e perfis fora do padrão atual, que gira em torno do trinômio estatística-celebridade-performance; jornais, como o Zero Hora e o Correio Brasiliense, que têm apresentado experiências interessantes com pautas, métodos e escritas; muitas faculdades de jornalismo incorporaram a disciplina jornalismo literário em seus currículos. E tudo isso num contexto de ‘beco sem saída’ do jornalismo impresso, e que, inevitavelmente, o empurrará para um movimento de renovação. Outro fator que contribui para a aceitação do jornalismo literário no Brasil é a crescente demanda do público por narrativas de não-ficção, já evidente em biografias, memórias, livros-reportagem, relatos de viagens, ensaios etc.


Um mito? Há aquele de sempre: o mito de que jornalismo é tão objetivo quanto uma pesquisa de laboratório feita com ratinhos. Por incrível que pareça, isso ainda é muito forte no Brasil, como marketing e como fé cega.


Críticos do lead têm identificado na manutenção dessa técnica jornalística uma das razões do crescente desinteresse dos leitores pelos jornais.De que forma o jornalismo literário pode contribuir para alterar esse cenário?


S. V. L. – O lead foi inventado para facilitar a vida de quem faz jornalismo, ou seja, para facilitar a vida dos jornalistas. Não foi para facilitar a vida de quem ‘consome’ jornalismo, ou seja, os leitores. Há uma incrível hipocrisia em torno disso. Faz-se uma coisa e diz-se outra. Até porque o jornalismo, evidentemente, não é só ‘boletim sobre o que aconteceu horas ou minutos atrás’. O jornalismo é feito de muitos outros conteúdos não-noticiosos. A maior contribuição que o jornalismo literário pode dar, de imediato, é com as reportagens especiais (mas não estou me referindo a ‘notícias alongadas para publicar no fim de semana’ nem a ‘artigos escritos por especialistas estrangeiros traduzidos para o português’). Estou me referindo a reportagens narrativas, autorais, transparentes, algo que valha a pena guardar pelo conteúdo aprofundado, pela forma artística e pela postura de compartilhamento por parte do repórter-autor.


Além de preparar profissionais para atuar no ramo, que estratégias a ABJL planeja desenvolver para sensibilizar editores para a importância do jornalismo literário?


S. V. L. – Apresentar pesquisas de receptividade do público, opondo a forma usual à forma narrativa; trazer à tona estudos de ponta sobre como jornais e revistas de outros países estão lidando com a perda crescente de leitores e de assinantes (uma das ações para reverter o quadro é exatamente resgatar no jornal o foco nas histórias reais sobre pessoas de carne, osso e alma); realizar anualmente seminário internacional para intercâmbios culturais, já que a prática do jornalismo literário está muito evoluída em outros países; criar um concurso nacional anual para premiar (e quem sabe publicar) narradores talentosos de jornais, revistas, rádio, tevê e internet. Criar uma revista mensal só de reportagens feitas com o ‘espírito’ do Jornalismo Literário etc. etc.


Nos últimos anos, cresceu no Brasil o número de jornalistas que adotaram o livro-reportagem como espaço privilegiado para narrativas de fôlego. Seria esse o único recurso para se contar uma história com qualidade, nos moldes do jornalismo literário?


S. V. L. – Evidentemente que esse não é o único recurso. Mas, na falta de outras mídias, o livro se impõe, até porque nele a liberdade autoral é bem maior. O problema (ou talvez a solução, dependendo do ponto de vista) é que o livro, no Brasil, não é um produto cultural de massa. As tiragens são baixas, os preços são extorsivos e o cuidado com as edições é mínimo.


Segundo um certo ponto de vista, a prática do Jornalismo Literário requer um espaço ampliado, hoje cada vez mais disputado na mídia impressa. Que alternativas práticas poderiam ser contrapostas a essa visão?


S. V. L. – A eficácia do jornalismo literário está universalmente consolidada e testada em matérias mais longas. É um fato. Mas já temos experiências muito interessantes nos EUA e na Espanha, por exemplo, com reportagens mais curtas (de 3 mil a 6 mil caracteres) e com colunas-narrativas (em que o colunista sai a campo, faz entrevistas, observa e não divaga). O argumento da ‘falta de espaço’ é utilizado conforme a conveniência. Mas ainda não se pratica jornalismo literário em larga escala no Brasil por uma questão de mentalidade fechada, desconhecimento, preguiça, burocracia e um certo ‘autojulgamento moral’. Isso não tem nada a ver com número de caracteres, recursos financeiros ou leitores. O fato é que ainda é mais cômodo deixar tudo como está, e por isso o jornalismo impresso está como está: cada vez menos interessante e redundante.


De acordo com sua experiência, em quais países são encontradas hoje as melhores práticas do jornalismo literário?


S. V. L. – Os EUA, claro, vêm em primeiro lugar, disparadamente. Não só pelo volume de produção e pelo enorme público cativo, mas pelo amadurecimento dessa prática, que se manteve ativa por mais de um século, ininterruptamente. Hoje, nos EUA, não se discute mais se jornalismo literário é ou não é jornalismo ou se jornalismo é ou não é literatura, essas coisas de ‘o ovo ou a galinha’. Discute-se, sim, é como fazê-lo bem, corrigindo eventuais exageros do passado e adaptando ao presente as melhores experiências. Vejo muita aceitação dessa prática também na Espanha e na América hispânica, principalmente no México e na Colômbia.


Em sua opinião, existe uma fronteira entre o jornalismo e a literatura?


S. V. L. – Existem algumas, sim. Ao falarmos em literatura estamos falando de texto (oral ou escrito). E se falamos de literatura de ficção, sabemos que a invenção é permitida (quando não absolutamente necessária), e que o autor-ficcionista não tem de se comprometer com a legibilidade de seu texto. No jornalismo é o contrário: não se pode inventar e tampouco ser hermético ou excludente. Outra coisa: na literatura de ficção tudo é premeditado com vistas a um efeito. Em jornalismo, não. Em jornalismo a vida real é tudo. Mas, mesmo se mantendo estritamente dentro do real, é possível ser bastante artístico. Arte não é monopólio da literatura de ficção. E mais: se estou falando de ‘vida real’, estou necessariamente falando de subjetividade. A subjetividade, que é inerente à vida e à arte, é inerente também ao jornalismo literário. O público não espera que um repórter-narrador aja como um noticiarista.

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Jornalista, editor do Balaio de Notícias