Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O jornalismo literário no relato de viagens

Em trânsito, um ensaio sobre narrativas de viagem(Ed. Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo), livro lançado na quarta-feira (10/8) pelo escritor e jornalista Renato Modernell, é resultado de sua tese de doutorado em Letras, concluída em 2009. Mas é também uma análise do jornalismo literário em estado puro, o que transforma sua leitura em prazerosa viagem conceitual e existencial. Não se trata apenas de um livro sobre relatos jornalísticos de viagens – é também, ele mesmo, uma viagem ao interior do gênero e da vida de alguns de seus mais significativos representantes.

Modernell conduz o leitor por um roteiro elaborado com precisão jornalística, num trem imaginário que vai percorrendo estações e recolhendo os guias que irão conduzir as reflexões do autor sobre o que vem a ser esse gênero. Desde a partida, os passageiros são convidados a se imaginar como uma das duas principais espécies de viajantes: a dos “polianos”, que como Marco Polo transitam sem pressa, fazendo do trajeto e do próprio movimento o objetivo da viagem; e a dos “colombianos”, que como o genovês Cristóvão Colombo têm um objetivo, um ponto de chegada e um resultado a contabilizar em seu retorno.

Uma de suas citações é o texto sobre as diferenças entre o turista e o viajante, de Cecília Meireles, convidada a “embarcar” no Rio de Janeiro. Mas o roteiro de Modernell começa muito antes, nas figuras do arcano 56 do tarô egípcio, que representa o peregrino, e do viajante, também identificado pelo número 56 entre os hexagramas do I-Ching.Passa ainda pelos relatos de Heródoto, no século 5 a.C, considerado o decano dos autores de narrativas de viagem. A lista inclui ainda, entre outros, sir Richard Burton, os brasileiros Graciliano Ramos e Osman Lins, Gabriel García Márquez, Jack London e George Orwell, mas se concentra especialmente nos italianos Antonio Tabucchi e Tiziano Terzani e no americano Nick Tosches.

Outros meios

A obra de Tosches escolhida por Renato Modernell é A última casa de ópio, reportagem escrita originalmente para a Vanity Fair, na edição de setembro de 2000. Transformado em livro, saiu primeiro na França, e depois nos Estados Unidos, em 2002. A edição brasileira foi publicada pela Conrad Editora, em 2006. Relata a viagem de um novaiorquino – o próprio Tosches – ao extremo Oriente, na tentativa de encontrar uma casa de ópio à moda antiga. O trajeto geográfico é também uma viagem no tempo e uma peregrinação do autor para dentro de si mesmo.

Antonio Tabucchi contribui com Mulher de Porto Pim, coletânea de nove textos nascidos de uma viagem do autor à Ilha do Faial, no arquipélago dos Açores. Modernell analisa a estrutura dos relatos, buscando o DNA do jornalismo no que é literatura, e conduz o leitor a uma viagem literária e jornalística por dentro da obra de Tabucchi. O escritor italiano chegou a alimentar dúvidas sobre se realmente esteve nos Açores, ou se testemunhou, ou de alguma forma teve contato direto com alguma das histórias que conta. Anos depois, lembra Modernell, o autor manifestava seu estranhamento em relação à obra.

O estranhamento quanto aos lugares visitados também aparece, em formato mais literário, no livro de Tiziano Terzani intitulado Um adivinho me disse, escolhido por Renato Modernell para ilustrar outro aspecto do jornalismo de viagem. Como correspondente de publicações ocidentais no Oriente, Terzani parte da narrativa jornalística mas acaba envolvido por elementos de ficção impostos pelo próprio tema que dá origem a seu livro: em 1976, em Hong Kong, ele consultou quase fortuitamente um adivinho chinês que o advertiu incisivamente para evitar viagens aéreas no então distante ano de 1993. Ao decidir passar todo aquele ano evitando embarcar num avião, ele teve a oportunidade de viajar em navios, trens, carros e mesmo a pé, o que lhe deu uma grande oportunidade de conhecer lugares e pessoas muito instigantes.

Ave, patrocinador

Modernell conduz o trem de sua tese com maestria. Seu leitor vai viajar dentro de muitas viagens, e ao chegar à última estação estará convencido de que é possível manter uma relação criativa e fiel entre o jornalismo e a literatura.

Um jornalismo em estado de arte não é propriamente o que encontramos corriqueiramente nos cadernos de turismo dos jornais brasileiros. Num desses textos, certa feita, um repórter da Folha de S.Paulo, percorrendo a Borgonha a convite de uma fábrica francesa de automóveis, não encontrou lugar mais adequado para inserir seu patrocinador no relato do que o trajeto entre um vinhedo e outro, numa estrada onde, segundo afirmou, podia-se “sentir toda potência e desempenho do modelo” XPTO.

Como demonstra Modernell, dá para fazer melhor, muito melhor.