No 20º andar do prédio envidraçado da Times Square, onde trabalha, David Remnick suspira e jura que não vai fazer de novo.
Há dois anos, ele inventou para si a missão de escrever a biografia do presidente Barack Obama, ao mesmo tempo em que comandava a Redação da New Yorker, uma das revistas mais prestigiadas do país e semanal. Sem pedir licença. O resultado de 16 meses extenuantes de trabalho é um estudo hiperdetalhado de 586 páginas (são 720 em português) sobre a vida do primeiro presidente negro dos EUA até o momento em que ele chegou ao poder, em janeiro de 2009. Lançado em abril nos EUA e agora no Brasil, A Ponte – Vida e Ascensão de Barack Obama é calcado em fatos e entrevistas. Não bastassem as complicações inerentes à biografia de um filho de uma americana branca do interior e de um estudante de intercâmbio queniano e negro no início do movimento pelos direitos civis nos EUA, criado em Seattle, no Havaí e na Indonésia, o personagem é o presidente dos Estados Unidos.
‘Obama chegou ao cargo com 47 anos, tendo sido senador estadual e organizador comunitário e perdido uma eleição local. Aí, foi para o Senado [federal] americano, fez um discurso. E, quatro anos depois, virou presidente. Como? Quem é esse cara?’, questiona Remnick. Pelo texto fluido e a pesquisa exaustiva do jornalista, descobre-se um Obama humano, com pequenezas e ambições distintas da figura sebastianista da campanha e mais próxima do homem que pena para tornar real, sob tormenta, as promessas feitas a um país enlevado pela esperança que viu nele.
Apesar de o livro A Ponte ter como pano de fundo a questão racial, o biógrafo David Remnick diz que Barack Obama não se sente confortável falando sobre o tema e não há como esperar que fale disso abertamente. ‘Obama foi superformal na entrevista, havia mais gente na sala’, lembra Remnick. ‘Perguntei sobre raça, mas só depois ele veio no corredor e disse: `Não me ajuda em nada falar sobre raça, sobretudo se improviso. Tudo o que falo é aumentado´.’ Remnick, que entrevistou por e-mail Roberto Mangabeira Unger, professor de Obama em Harvard, também é irônico sobre o acadêmico brasileiro, cujo depoimento é transcrito em uma página e meia em A Ponte. ‘Ele é muito enrolado, né?’
Na obra, há simpatia pelo democrata (Remnick diz ser de centro-esquerda e aprovar o governo), mas nenhuma condescendência com lapsos ou distorções biográficas feitas pelo próprio. O jornalista, que vê a questão racial como tema subjacente do livro, recebeu a Folha para uma conversa sobre o presidente americano.
***
‘No contexto americano, ele é de centro-esquerda’
O que o surpreendeu mais durante a pesquisa?
David Remnick – Muita, muita coisa. Sobre seus pais, a vida em Chicago. Não é que eu tenha descoberto algo enorme, mas milhares de detalhes me surpreenderam.
Você faz um retrato mais humano e menos etéreo da mãe de Obama, Ann Durham, que os da imprensa ou do filho.
D.R. – É, a imagem de uma hippie de meia-idade, sonhadora. Na verdade, ela era uma mulher interessada em temas nos quais nem as pessoas na esquerda americana estavam interessadas, uma acadêmica séria e de certa forma uma feminista antes de haver o movimento feminista.
Obama parece ter herdado mais o temperamento dela que o do pai.
D.R. – Eu acho. Tem um livro novo que coloca Obama como o produto do socialismo queniano do pai dele. Mas a personalidade do Obama é radicalmente diferente da do pai – alcoólatra, errático, gritalhão, carismático e fracassado. Obama está longe de ser um fracasso e longe de ser socialista. No contexto americano, ele é de centro-esquerda. Presidentes não se elegem sendo totalmente de esquerda neste país.
‘Raça não tem sido parte de sua política’
Democratas mais ao centro reclamam que ele forçou a barra para a esquerda com a reforma na saúde e que essa é uma das razões pelas quais ele está tendo problemas agora. O sr. não concorda?
D.R. – Concordo, as pessoas têm problemas diferentes com Obama. Acho que ele conseguiu muito. Não tem opção fácil no Afeganistão e, sem pacote de estímulo econômico, as coisas estariam piores – um pacote maior não passaria. Já o avanço na saúde pode parecer pequeno, mas para nós é enorme.
O que o surpreendeu depois da posse?
D.R. – A manutenção de algumas políticas antiterrorismo, o fato de ele ser péssimo em formar relações com outros líderes mundiais. Política é muito mais importante do que personalidade, mas esse distanciamento frio tem peso político.
Na primeira vez que o sr. entrevistou Obama, vocês falaram de raça, algo subjacente na campanha eleitoral. Como Obama lida com isso?
D.R. – Raça não tem sido parte da política americana sob Obama. Quando surgiu, acidentalmente, foi lamentável, no incidente com Henry Louis Gates Jr. [professor de Harvard negro preso por um policial branco quando tentava entrar em casa, o que Obama acusaria de estupidez]. Não houve um grande diálogo. Creio que ele sabe que a melhor coisa a fazer nesse sentido é ser um bom presidente. A barreira foi quebrada, há um presidente negro.
‘As chances [de reeleição] são boas’
Durante a campanha, alguns comentaristas evocaram a imagem de Obama como uma figura messiânica. As expectativas foram alimentadas além das possibilidades?
D.R. – Há duas grandes razões para a euforia entre a eleição e a posse de Obama. Uma é a saída de George W. Bush. A outra é que, não muito diferente do Brasil, a divisão mais dolorosa e persistente na sociedade sempre foi a racial. E agora se tem um presidente negro. É um milagre. Então, por algum tempo, há a sensação de que não foi uma eleição qualquer. Só que essa questão da raça só se consegue uma vez, agora nem estamos falando disso – e Bush se foi e acabou. Aí você acorda no mundo real, com a situação mais conturbada que de costume e tem que começar a tomar decisões políticas. É aí que sua popularidade sofre um golpe.
Obama tinha a ideia de que seria assim?
D.R. – Acho que seus assessores políticos sabiam perfeitamente que em nenhum caso dava para a popularidade ficar como estava e sabiam que ele teria de começar a tomar decisões políticas. E ele teve de tomá-las ainda mais rápido, o que acaba descontentando alguns. Além disso, ele não foi tão eficiente em comunicar suas políticas e conquistar empatia como o foi na campanha. Houve uma diferença radical entre o candidato e o presidente. Como presidente, viu-se o sujeito de sangue-frio, mas não se viu nada mais emocional.
O sr. vê chances de ele se reeleger em 2012?
D.R. – Não gosto de fazer previsões, acho que é a pior forma de jornalismo. Mas acho que sim. Se a economia melhorar um pouquinho e não houver nenhum desastre, as chances dele são melhores que as de qualquer um.
***
Trecho de A Ponte
Numa definição genérica, a família de Barack Obama é muito grande. Abrange diversos credos, raças, idiomas e continentes. Ele tem uma avó adotiva numa aldeia perto do Lago Vitória que só fala luo e suaíle; um meio-irmão mestiço que fala mandarim fluente e trabalha com comércio no sul da China.
[…] Obama voltou para Chicago e aguardou o início de sua vida pública. Abner Mikva, referência na política liberal independente de Chicago, além de juiz do Tribunal de Apelação, oferecera a ele o cargo de assistente, e, embora Obama tenha recusado, os dois se tornaram amigos […] Mikva começava a entender que Obama, embora fosse menos ávido e sedento de sucesso que Bill Clinton, não era modesto em suas ambições. ‘Pensei: esse cara é mais ousado do que Dick Tracy’, disse Mikva. ‘A gente não chega a Chicago e finca a própria bandeira sem mais nem menos.’
***
Reforma textual e iPad revitalizaram The New Yorker
Dada como moribunda em 1998, quando David Remnick assumiu como editor-executivo, a New Yorker virou, em tempos de crise, uma das revistas mais bem-sucedidas dos EUA. Respeitada – e querida – como a principal revista da inteligentsia americana, é a única, entre as comerciais, a se amparar ainda nas longas reportagens e em um jornalismo de tom mais literário.
Neste ano, o periódico fundado em 1925 tornou-se também um dos mais bem-sucedidos no meio eletrônico, ao lançar versão para iPad celebrada como uma das melhores ideias editoriais para o tablet, atrás apenas da Wired, a revista de comportamento e tecnologia publicada pela mesma Conde Nast. Isso, e uma revitalização nos textos, que devolveu à revista o caráter mais literário e aprofundado das reportagens, sem tirar o verniz pop trazido pela ex-editora Tina Brown, garantiram aumento de vendas entre o público de 18 a 34 anos em mais de 50% nos últimos três anos.
Hoje a revista celebrizada pelos cartuns e capas irônicas vende pouco mais de 1 milhão de exemplares, sobretudo entre o público de maior escolaridade e renda média-alta. É mais do que a celebrada Economist (830 mil). E menos que as semanais Time (3,3 milhões) e Newsweek (1,6 milhão).
******
Jornalista