Três ou quatro histórias que você não encontrará no livro “Todo aquele imenso mar de liberdade – A dura vida do jornalista Carlos Castello Branco”, de autoria de Carlos Marchi (Editora Record, 560 páginas). Porque o resto está lá. E muito mais. É uma biografia notável do mais importante jornalista brasileiro de sua geração. É daquelas que capturam a atenção do leitor do início ao fim. E que o faz querer mais.
Castellinho dizia que em Brasília, cidade do poder, você deve cumprimentar as pessoas, mas não esperar em troca agradecimentos ou gentilezas. Se cumprimentar o porteiro, o máximo que ocorrerá é ele achar que você não tem poder nenhum, não manda em ninguém, tanto que fala com ele. Moral da história: em Brasília, quem tem poder não fala com porteiro. Verdade até hoje.
Castellinho foi preso várias vezes após o anúncio, em dezembro de 1968, do Ato Institucional nº 5, o que levou a ditadura de 64 a se assumir como tal. Pedia de presente a seus advogados caixas de Bombom Cereja ao Licor – Kopenhagen. Na cela, quebrava os bombons ao meio e bebia o licor, dispensando o chocolate. Não sobrevivia sem sua dose diária de álcool “para vencer a timidez”.
Em 1978, Castellinho foi a Salvador para uma palestra. Um jovem repórter o entrevistou no Bahia Othon Palace. Ao voltar ao jornal, o repórter se deu conta de que se esquecera de perguntar a hora da palestra. Telefonou para Castellinho perguntando. E ouviu a lição: “Meu filho, aprenda: na maioria das vezes, o repórter só tem uma chance. Boa noite”. E desligou sem informar a hora da palestra.
Castellinho foi um dos raros jornalistas que a ditadura de 64 não rotulou como esquerdista. Dentro dos vários governos militares, grupos liberais sempre trabalharam para que a Coluna do Castello não fosse censurada. E não foi. Ao saudá-lo em 1982, na sessão da posse de Castelinho na Academia Brasileira de Letras, José Sarney, amigo dele, disse uma bela verdade: “Ele foi o Congresso quando o Congresso não era”.
O mais lido
Carlos Marchi soube tirar vantagem do privilégio de ter convivido com Castellinho durante uma dezena de anos em Brasília, parte deles na sucursal do “Jornal do Brasil”, onde seu biografado foi colunista político por mais de 30 anos, e ele, repórter. Ao escrever o livro, Marchi se valeu da mesma técnica usada por Castellinho para escrever suas mais de 8 mil colunas: usou a história política do Brasil como pano de fundo.
Esse foi um dos pontos fortes de todo o trabalho de Castellinho. Ele jamais se limitou a encadear episódios inéditos ou conhecidos apenas para deleite dos seus leitores. Os episódios sempre foram citados para ilustrar contextos que ele explorava a fundo. Daí porque se você ler as colunas de Castellinho uma atrás da outra, ficará com a impressão de que leu um pedaço da História do Brasil. E leu. E o objetivo do colunista foi alcançado.
Foi também o objetivo de Marchi. Ao contar a vida de Castelinho, do seu nascimento no Piauí à morte no Rio de Janeiro em 1993, passando pelos períodos em que viveu em Minas Gerais e em Brasília, Marchi revisitou a turbulenta história da política e do jornalismo brasileiros. Fê-lo, como diria Jânio Quadros, o único presidente para o qual Castellinho trabalhou, com o talento de um bom repórter e o apuro de um escritor de primeira.
A grande frustração de Castellinho foi esta: ele não queria ser jornalista, mas escritor. Como escritores foram os mineiros seus amigos Otto Lara Rezende e Fernando Sabino, entre outros. Achava o jornalismo “uma maneira de expressão secundária, uma atividade sem maior importância”. Dizia mais: “O jornalismo, de uma maneira geral, é uma atividade inferior”. Tentou a literatura. Publicou dois livros. Não fez sucesso. Desistiu.
Leitor voraz dos clássicos, um liberal por formação ligado à extinta União Democrática Nacional (UDN), Castellinho atravessou como jornalista duas ditaduras. E com a primeira, de Getúlio Vargas, aprendeu os truques que o levaram a sobreviver à ditadura de 64 como seu cronista mais completo. Hoje, quando as redes sociais cobram um jornalismo combativo, Castellinho dificilmente se daria bem. Não era a dele.
Criticava políticos e governos com elegância. Passava longe da crítica frontal, muito menos grosseira. Desprezava adjetivos. Apresentava os fatos, dissecava as conjunturas, tirava conclusões, tentava antecipar o futuro, mas disfarçava suas opiniões. Ou evitava oferecê-las. “Nunca ofendi ninguém”, gabava-se. Nunca traiu suas fontes de informação. Pelo contrário: poupava-as. Era dono de uma memória prodigiosa. Puxou ao pai.
Políticos de todos os matizes o procuravam para contar o que sabiam. A partir de certo momento, já não precisava procurar ninguém. Deixou de frequentar o Congresso quando ele, acuado pela ditadura de 64, passou a existir basicamente em sua coluna. Por contar o que lhe contavam e analisar com argúcia o que via, incomodou o regime dos generais que se sucederam no poder entre 1964 e 1985. Nem por isso eles lhe cassaram a coluna.
Pelo contrário. Mais de uma vez, Castellinho esteve ameaçado de perder a coluna devido ao compromisso de apoiar o regime assumido por Nascimento Brito, dono do “Jornal do Brasil”. Curiosamente, foi salvo uma vez por Garrastazu Médici, o presidente da fase mais cruel da ditadura, a que torturava e matava presos políticos. Castellinho era amigo de Roberto Médici, filho do ditador, com quem almoçava frequentemente.
A pedido de Roberto, seu pai interveio e mandou soltar um dos filhos de Castellinho, preso com um cigarro de maconha. De novo a pedido de Roberto, Médici levou Castellinho em sua comitiva para uma visita aos Estados Unidos. Isso atenuou a pressão de Nascimento Brito sobre o mais lido colunista do seu jornal. Castellinho retribuiu os favores do ditador escrevendo uma coluna elogiosa quando ele deixou a Presidência da República.
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Ricardo Noblat é jornalista