Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O jornalista, segundo José Saramago

Pode até virar tese de doutorado. Por enquanto, é mera desconfiança.

No último livro de José Saramago, Ensaio sobre a lucidez, a palavra ‘jornalista’ ou equivalente surge aqui e ali, inspirando idéias. Ora, se em literatura, normalmente, nenhuma palavra é vã, no caso do Nobel português (que de algum modo representa o Brasil, até o dia em que tivermos o nosso próprio laureado, talvez Paulo Coelho…), no caso de Saramago cada palavra é usada de propósito e com propósitos. Quem é o jornalista, segundo José Saramago?

A história se passa no mesmo país sem-nome em que, quatro anos antes, houve aquela epidêmica cegueira branca do Ensaio sobre a cegueira, e alguns personagens que lá atuaram reaparecem aqui. Agora, a maioria esmagadora da população vota em branco, pondo em xeque as eleições e a própria idéia de democracia, abalando o poder, assustando os vigilantes das urnas.

É preciso investigar. É preciso esclarecer este voto em branco, fruto da lucidez daqueles que um dia foram cegos.

Três características

Depois de ler uma carta em que se acusa certa mulher de ser a promotora do movimento a favor do voto em branco, o presidente observa que o autor da carta poderá dar com a língua nos dentes e contar o que sabe a outras pessoas, ‘capaz mesmo de falar com um jornalista’. O advérbio ‘mesmo’ no sentido de inclusão, mas inclusão que chega a um limite, a um extremo. Contar algo a um jornalista é tão perigoso assim?

Em outra parte, Saramago observa: ‘Os repórteres são em geral dotados de boa memória’ – acrescentando um perigo maior ao fato de ser perigoso contar-lhe algo: o jornalista não esquece o que lhe foi contado.

O autor escreve em outro momento: ‘Os jornalistas da imprensa, da rádio e da televisão que acompanham a cabeça da manifestação tomam nervosas notas’. É interessante ver como o escritor vê o jornalista escrevendo com um nervosismo nascido da pressa, excitação diante do aqui, do agora, neste segundo.

Essas três características compõem um esboço do profissional jornalista, na visão (ou na lúcida cegueira) de Saramago: um profissional cuja boa memória, nervosismo (eu diria ‘paixão’ em lugar de nervosismo) e aguçada audição me fazem lembrar a Fama, ‘Deusa Gigantea’, no dizer de Camões, com numerosas bocas, línguas, ouvidos e olhos, munida de asas, a quem não escapa o menor acontecimento.

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Doutor em Educação pela USP e escritor