Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O livro, quando morre, vira “conteúdo”

O artigo de Tim Adams no Observer de domingo (6/12) (em inglês, acesso gratuito) versa sobre o tema-clichê do momento, para o qual confesso que minha paciência anda curta: o futuro dos livros na era do Kindle e tal. Mas faz isso de forma brilhante – e meio perturbadora. Segue seu naco inicial em tradução caseira:




‘Duas observações isoladas sobre literatura atraíram minha atenção nos últimos dias e se recusam a me abandonar. A primeira é de uma entrevista de Don DeLillo, autor do grande épico moderno Submundo. DeLillo contava como continua escrevendo numa máquina de escrever, e disse o seguinte: `Eu preciso do som das teclas, as teclas de uma máquina de escrever manual. Os braços martelando a página. Gosto de ver as palavras, as frases, à medida que se formam. É uma questão estética: ao trabalhar, tenho um senso de escultor sobre a forma que as palavras vão adquirindo.´


‘A segunda era um anúncio local em minhas páginas amarelas sobre um ‘game’ para Nintendo DS que contém cem livros clássicos. O cartucho vende-se assim: `A Coleção 100 Livros Clássicos transforma seu Nintendo DS numa biblioteca portátil que contém romances de leitura obrigatória de autores icônicos como Charles Dickens, Jane Austen, William Shakespeare e muitos mais. Segure o DS como um livro e vire as páginas em touch screen. A Coleção 100 Livros Clássicos permite vários tipos de pesquisa, tais como procurar um livro que combine com seu estado de espírito, ou que tenha um formato específico como leitura breve´. A trilha sonora que pode acompanhar a leitura desses clássicos inclui o efeito enlatado de lareira crepitando.


‘Em algum ponto, essas duas observações pareciam entrar em conflito, numa espécie de paradoxo, mas demorei um pouco a entender qual era ele. Tinha, claro, alguma coisa a ver com o fato de que Don DeLillo, destacado romancista americano do presente, se aferra à tecnologia do passado, enquanto a tecnologia Nintendo do presente se apropria da velha palavra impressa do romance. Mas não era exatamente isso.


‘Trata-se mais de compreensões distintas do aspecto físico dos atos de escrever e ler. Os fabricantes do sucesso comercial da Nintendo acham que Shakespeare é um `autor icônico´ de `romances de leitura obrigatória´, mas ao descrevê-lo dessa forma traem alguns dos efeitos colaterais de seu produto – tratam toda a literatura como se fosse apenas texto, conteúdo, algo para se rolar numa tela ao sabor de seu `estado de espírito´. DeLillo, que entende um bocado sobre a diferença entre literatura e conteúdo, resiste claramente a essa idéia. Escrever, para ele, é um ato altamente físico; o sentido se desvela e toma forma em palavras e sentenças individuais, e sua aparência externa é fundamental para aquilo que comunicam.


‘É bem possível que este Natal marque o momento em que a idéia Nintendo de literatura – e de leitura – ganhará precedência sobre a concepção de DeLillo. O crescimento nas vendas do Kindle e do Sony Reader – que conseguem armazenar milhares de textos, clássicos ou não, e um dia, quem sabe, poderão prover acesso digital a qualquer livro jamais escrito – parece indicar que vivemos um momento iPod: os livros, e em particular os romances, podem muito bem estar prestes a ter o destino de discos e CDs.’


Em transformação


Até este ponto do artigo, eu pensava aquilo que venho pensando ultimamente. Sim, é claro que cedo ou tarde a venda de livros de papel sofrerá com a concorrência dos e-readers, mas isso pouco importa por dois motivos:


1. Eles certamente não desaparecerão – na pior das hipóteses, após verem suas vendas minguar ao longo de muitos anos, vão se transmutar em caros objetos de charme, itens de colecionador artisticamente trabalhados (destino que, por razões físicas, não estava ao alcance de discos e CDs);


2. Lida numa tela ou em resmas de papel, literatura continuará a ser literatura, uma palavra depois da outra, e portanto nada se perde.


O motivo 1 continua firme, mas confesso que o 2 foi abalado pela segunda parte do artigo, em que o autor discorre doutamente – e sem ranço tecnofóbico, embora passe muito longe do aplauso acrítico – sobre o caráter ‘solipsista’, centrado no ego e infinitamente dispersivo que o universo online exibe ao lado de, e entrelaçado com, seus irresistíveis trunfos. O artigo termina assim:




‘Por enquanto os Kindles e similares são aparelhos isolados, mas certamente não vai tardar o dia em que eles e os milhares de livros que contêm serão agrupados com todos os outros aplicativos obrigatórios num único computador que mediará nossas vidas: mais texto indiferenciado para combinar com nosso estado de espírito. `Tecnologias´, observa Sherry Turkle, `nunca são apenas ferramentas, mas objetos evocativos. Elas nos fazem ver a nós mesmos, e ao nosso mundo, de forma diferente.´ Será que uma pessoa que está `sempre online´ terá concentração para ler os grandes romances sociais – essa forma superior de `interação´ com o mundo – numa tela? Será que alguém conseguirá enxergar longe o bastante além de si mesmo para escrever um?’


Julguei entender por fim aquela história de palavras que tomam forma numa máquina de escrever: não estamos falando tanto do aspecto físico do ato, uma vez que as letras também tomam forma no Microsoft Word, e sim de um modo de ver o mundo. De estar no mundo. Um mundo que nos chega inteiramente mediado por uma tela que é ‘a nossa cara’ – a tal ponto que nossa cara passa a ser ela – talvez não seja mesmo o mais fértil dos mundos para um certo tipo de escritura ambiciosa cuja leitura requer um esforço que, sendo grande, é uma pequena fração do que o autor despendeu – aquilo que Tim Adams simboliza em Don DeLillo.


É claro que isso não seria o fim da literatura, apenas uma de suas transformações. E talvez o raciocínio todo tenha algo de paranóico, caso em que o ‘autor icônico’ não poderia ser mais apropriado. Mas fiquei pensando.

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Jornalista e escritor, publicou o romance histórico Elza, a garota, além de O homem que matou o escritor e As sementes de Flowerville, entre outros