Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O maestro da lama

A certa altura de Quantum of Solace, James Bond é interceptado por um guarda de trânsito boliviano. Baixinho, gordinho, arrogante, ele dispara ao agente 007:

– Sus documentos, por favor!

É a cena mais simples do filme. Mas nas duas vezes em que o vi, a platéia desabou em gargalhadas. Não estava rindo do guardinha em especial. Estava rindo de si mesma, porque naquele momento era a platéia que estava espelhada na tela. Hollywood tem às vezes a peculiaridade que Fernando Pessoa se atribuía – finge a dor que de fato existe. É muitas vezes Hollywood, e não os cinemas independentes do terceiro mundo, quem melhor enxerga o tragicômico das republiquetas de bananas. Podemos lamentar que seja assim – mas assim é.

Se Albert Broccoli, o mentor da veia humorística de James Bond, fosse vivo, já teria recortado a foto do prefeito do Rio César Maia, no ocaso de seu governo, regendo uma orquestra imaginária na sua Cidade da Música. Na platéia, meia dúzia de funcionários públicos para atender o limite determinado pelos bombeiros. Do lado de fora, a magnífica construção de Christian de Portzamparc soterrada sob a lama e o lixo. No subsolo, 600 milhões de reais enterrados, tomados da população do Rio de Janeiro – que deverá desembolsar mais 11 milhões de reais por ano apenas para manter a estrutura aberta.

5 segundos entre o lamaçal e o lixo

A Cidade da Música, da qual as Organizações Globo conseguiram no último minuto extirpar o nome de Roberto Marinho, com o qual seria batizada, ficará até se desmanchar por completo como um belo monumento à coragem de se colocar dinheiro público num projeto sem qualquer estudo sério de viabilidade, com o único propósito de perpetuar o nome de um prefeito pessimamente avaliado. Um elefante branco cultural marcando uma gestão em que a cultura foi esfacelada de todas as maneiras possíveis: a Riofilme levada á falência; a aplicação dos incentivos municipais do ISS marcada seja pelo dirigismo (durante dois anos, só se pôde produzir com dinheiro do município obras ligadas à chegada da família real ao país, 200 anos atrás), seja pelo mais profundo mistério (30% de todos os recursos captados pelos produtores culturais foram aplicados em ‘obras’ cujo teor nunca foi divulgado).

Várias empresas de grande porte foram impedidas de aplicar em cultura na cidade do Rio de Janeiro porque o prazo de cadastramento levava menos de 5 segundos (isso mesmo: 5 segundos), enquanto o governo, depois de ser obrigado a desistir do escândalo Guggenheim, torrava dinheiro do município para o prefeito ter os seus cinco segundos de Herbert von Karajan entre o lamaçal e o lixo. Werner Herzog não faria melhor.

Ópera-bufa

O que acontecerá em breve com o belo projeto arquitetônico é difícil dizer. Provavelmente o mesmo que aconteceu com o igualmente belo Hotel Nacional, ali perto, à beira do mar de São Conrado, projetado por Oscar Niemeyer, fechado há mais de 20 anos e hoje num estado de decomposição que desafia as autoridades sanitárias. O Hotel Nacional foi palco de muitos eventos culturais de grande porte na cidade: o Free Jazz Festival e o FestRio (Festival Internacional de Cinema do Rio), para não ir mais longe. Hoje, o município não tem como controlar os ratos que o habitam e o perigo que suas ruínas representam para a população.

O prefeito César Maia, em seu momento de James Levine da Barra da Tijuca, traçou a mais notável caricatura do legado que deixou à cidade. É como a extraordinária foto de Jânio Quadros com um pé virado para cada lado que deu a Erno Schneider o Prêmio Esso de Fotografia em 1962, com a diferença que Jânio não fê-lo porque qui-lo, e César Maia ensaiou seus patéticos movimentos. Quando regeu Anton Bruckner (1824-1896) em São Paulo, o maestro Daniel Baremboim foi chamado pela crítica de ‘sobrenatural’. Nosso Zubin Mehta tropical provavelmente leu o texto pela metade. Encerrou a sua jornada dando ao Rio a ópera-bufa que a cidade não merecia.

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Jornalista